Direito de morrer

Ser humano não pode se transformar em samambaia de leito

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

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30 de março de 2005, 20h06

O que é a vida humana? Poderíamos defini-la fisiologicamente como um aglomerado protéico que se mantém ativo pela queima de Adenosina Tri-Fosfatada (ATP) obtida numa reação química em que o oxigênio é absorvido e o gás carbônico liberado.

Outra forma de defini-la seria referir-se aos seres fotossintetizantes que obtém a energia do sol, absorvem gás carbônico e liberam oxigênio. Nenhuma destas definições, obviamente, é suficiente para definir a vida humana.

A vida humana não é apenas a síntese da luz em energia, tampouco é apenas a queima de ATP. Nem mesmo o mais insensível e paquidérmico dos seres definiria a vida humana de maneira tão estritamente fisiológica.

O conceito de vida humana alberga o conceito fisiológico e acrescenta o conceito de dignidade humana. O conceito de dignidade da pessoa humana é, inclusive, mais importante que o próprio conceito fisiológico.

Pessoas com deficiência física ou mental podem viver dignamente e, portanto, estarem vivos sob a ótica humana e social. Parte da fisiologia pode estar afetada e, ainda assim, a vida sob a égide da dignidade restar íntegra.

Outras, sem qualquer deficiência, podem estar à margem da vida propriamente dita ao arrastarem sua existência num mundo de mendicância e exclusão de qualquer atividade digna. A vida fisiológica pode estar íntegra, mas a vida digna restar sepultada.

Portanto, ao falarmos de vida humana não falamos apenas da respiração que até mesmo os vegetais dentro de nossa geladeira fazem. Quando falamos de vida humana não falamos apenas de ingerir alimentos, coisa que o gado também faz no pasto.

Falamos do diferencial da dignidade. Dignidade, portanto, é o elemento valorativo que secciona o mundo humano do mundo vegetal e animal. A dignidade é a gênese do conceito humano de vida.

É desta vida, que não é meramente vegetativa nem bovina, que falamos. O ser humano — evidentemente — não pode se pautar apenas por parâmetros vitais que descrevam o pé de alface da geladeira ou o porco em sua pocilga.

Vida e dignidade aproximam-se de verdadeiros sinônimos quando tratamos do conceito de vida humana. Assim, a vida humana é, primordialmente, o respeito aos direitos fundamentais do homem de maneira a inseri-lo como cidadão no mundo. Em razão do conceito não bovino e nem vegetativo é que a morte digna é direito fundamental do homem.

O ser humano tem o direito a não ter prolongada sua vida de maneira a transformá-lo numa samambaia de leito hospitalar. A chamada “distanásia” é espetáculo de sadismo da pior qualidade. A morte é uma das poucas coisas democráticas que temos neste mundo de desigualdades. Do nobre ao simplório todos sucumbirão ao inexorável término da vida.

A questão é saber quando podemos dizer que a morte chegou. A continuidade de atividades que tanto caracterizam a vida humana quanto qualquer outra vida não são critérios diferenciadores. O só fato de haver respiração e funcionamento vegetativo de órgãos não é o suficiente para afirmarmos que há vida.

A questão crucial para a caracterização da morte, portanto, não são os critérios que servem para o tomate e o boi, mas o critério que nos separa destes seres: o funcionamento do cérebro.

O Conselho Federal de Medicina (CFM nº 7.311/97) já se manifestou que até mesmo contra a aceitação da família do paciente deve haver interrupção do uso de equipamentos que mantenham a vida vegetativa em caso de morte encefálica.

Os médicos, respeitados os parâmetros da Resolução do CFM nº 1480 de 08 de agosto de 1997, é que tem a exclusiva competência para afirmar se houve ou não a morte.

Para usarmos o termo técnico, a verificação de “coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia” confirmada por exames complementares conduz à declaração de morte do paciente.

Antes desta constatação, porém, o paciente tem o direito de não sofrer distanásia que é tratamento desumano e degradante vedado por nossa Constituição no artigo 5º, III.

A distanásia é prolongamento indefinido daquilo que só poderia ser considerado vida para plantas ou semoventes. É, também, prática ilícita e abominável. Espetáculo de sadismo que deve ser evitado pelos profissionais pautados pela ética.

O Código de Ética Medica estabelece em seu artigo 6º que o médico “Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral…”. Portanto, torturar alguém com um inútil prolongamento vegetativo é tortura tanto física quanto moral e não pode ser realizada pelo médico. Tal tortura é vedada, também pelo artigo 49 do Código de Ética Médica.

Além disso, nos termos do artigo XII da Declaração Universal dos Direito do Homem, ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada. No mesmo sentido, a Constituição Federal assegura o direito à vida ( que , como falamos é a vida humana e não fisiológica) e reforça o direito à liberdade de opção quando consagra o direito à intimidade em seu artigo 5º, X.

Da mesma forma, o Código de Ética Médica em seu artigo 56 dá ao paciente o direito de decidir sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.

Em suma, a ortotanásia não é o direito a morrer, mas o direito a — sendo inexorável a morte — morrer com dignidade. Vida sem dignidade não é vida humana. A ortotanásia é o direito do paciente a morrer e preservar — até o último instante — sua condição de ser humano.

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