Status de ministro

STF julga ações contra blindagem de presidente do Banco Central

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28 de março de 2005, 18h10

A constitucionalidade da Medida Provisória que deu status de ministro ao cargo de presidente do Banco Central deverá ser julgada nesta quinta-feira (31/3) pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Convertida na Lei nº 11.036/04, a MP garantiu que o presidente do BC tenha foro privilegiado nas suas contendas judiciais.

A questão, que está sendo relatada pelo ministro Gilmar Mendes, foi suscitada pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade — ADIs números 3.289 e 3.290 — ajuizadas pelo PFL e pelo PSDB, respectivamente. O tema já chega ao Plenário com parecer desfavorável do procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, para quem a edição da MP não observou os requisitos de relevância e urgência padecendo assim de inconstitucionalidade.

Fonteles lembra em seu parecer (veja a íntegra abaixo) que “não há relevante interesse público” para justificar a imediata transformação do cargo de presidente do Banco Central em cargo de ministro de estado. Mesmo porque, segundo ele, em meados de 2003, foi editada Lei que reorganizou a presidência da República — e desde então “não se constata modificação das circunstâncias fáticas ou jurídicas justificadora da alteração legislativa”.

O procurador-geral aponta ainda que a transformação do cargo visou a concessão de prerrogativa de foro para o presidente do Banco Central, cujas ações fiscais e eleitorais estão sendo apuradas pelo Ministério Público Federal. Nesse sentido, Fonteles invoca a regra constitucional de que “é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria (…) processual penal”.

Além disso, ele lembra que o assunto trata da reorganização do Banco Central, que deve ser feita por lei complementar, não cabendo assim a edição de MP.

Foro privilegiado

A questão também está relacionada com a discussão, no STF, da constitucionalidade da Lei nº 10.268/02, que estendeu a prerrogativa de foro para os ocupantes de cargos públicos mesmo depois de seu desligamento. Ou seja, os ex-ministros de estado ganharam o direito de serem julgados exclusivamente pelo STF.

A tese está sendo contestada em ADIs ajuizadas pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) e pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). As ações contam com parecer favorável de Fonteles e com o voto do relator, ministro Sepúlveda Pertence. O julgamento foi interrompido no final de setembro do ano passado por pedido de vista do ministro Eros Grau e ainda não retornou à pauta de votações.

Leia o parecer da PGR

Parecer nº 3.729/CF

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 3.290-9/600 – DF

Relator: Exmo. Sr. Gilmar Mendes

Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB

Requerido: Presidente da República

Ação direta de inconstitucionalidade em face da Medida Provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004, que altera disposições da Lei n° 10.683, de 28.5.2003 e da Lei n° 9.650, de 27.5.1998, transformando o cargo de Presidente do Banco Central do Brasil em cargo de Ministro de Estado.

Inconstitucionalidade formal e material, por violação ao art. 37, caput (princípio da moralidade), ao art. 62, caput, § 1º, I, “b” e III, aos arts. 52, III, “d”, 76, caput, 84, I, II e XIV e 87, parágrafo único, I, e ao art. 192, todos da Constituição da República.

Parecer pela procedência da ação.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO RELATOR,

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, em face da Medida Provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004, que altera disposições da Lei n° 10.683, de 28.5.2003 e da Lei n° 9.650, de 27.5.1998, transformando o cargo de Presidente do Banco Central do Brasil em cargo de Ministro de Estado.

1. Eis o teor da Medida Provisória n° 207/2004:

“Art. 1o Os arts. 8o e 25 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 8o ……………………………………………………………………………

§ 1o ……………………………………………………………………………

……………………………………………………………………………

III – pelos Ministros de Estado da Fazenda; do Planejamento, Orçamento e Gestão; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Assistência Social; do Trabalho e Emprego; do Meio Ambiente; das Relações Exteriores; e Presidente do Banco Central do Brasil;

……………………………………………………………………………” (NR)

“Art. 25. ……………………………………………………………………………

……………………………………………………………………………


Parágrafo único. São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União, o Ministro de Estado do Controle e da Transparência e o Presidente do Banco Central do Brasil.” (NR)

Art. 2o O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado.

Art. 3o O art 5o da Lei no 9.650, de 27 de maio de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 5º …………………………………………………………………………….

……………………………………………………………………………

VIII – execução e supervisão das atividades de segurança institucional do Banco Central do Brasil, relacionadas com a guarda e a movimentação de valores, especialmente no que se refere aos serviços do meio circulante, e a proteção de autoridades.

Parágrafo único. No exercício das atribuições de que trata o inciso VIII deste artigo, os servidores ficam autorizados a conduzir veículos e a portar armas de fogo, em todo o território nacional, observadas a necessária habilitação técnica e, no que couber, a disciplina estabelecida na Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003.” (NR)

Art. 4o O exercício das atividades referidas no art. 5o, inciso VIII, da Lei no 9.650, de 1998, com a redação dada por esta Medida Provisória, não obsta a execução indireta das tarefas, mediante contrato, na forma da legislação específica de regência.

Art. 5º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.” (ênfases acrescidas)

2. Sustenta o requerente, em síntese, que a medida provisória impugnada viola o art. 62, caput, § 1o, inciso III c/c o art. 192, os artigos 52, III, “d” e 84, I e XIV, todos da Constituição da República. Por fim, pede a concessão da medida cautelar com eficácia ex tunc (fls. 2-13).

3. Vossa Excelência, em despacho de fls. 81, aplicou ao feito o rito do art. 12 da Lei n° 9.868/99.

4. O Presidente da República prestou informações a fls. 86-97, afirmando que a Medida Provisória n° 207/2004 não padece de qualquer dos vícios de inconstitucionalidade alegados pelo requerente.

5. O Advogado-Geral da União manifestou-se pela improcedência da ação (fls. 118-127).

6. Vieram os autos a esta Procuradoria-Geral da República para manifestação.

7. O controle da regularidade constitucional das medidas provisórias deve ser realizado em três níveis:

1º – controle dos pressupostos constitucionais para edição de medida provisória. Fiscalização dos requisitos de relevância e urgência.

2º – controle da matéria veiculada pela medida provisória. Cabe questionar se a matéria pode ser objeto de medida provisória, tendo como base os parâmetros constitucionais do art. 62 da CRFB/88.

3º – controle da constitucionalidade do conteúdo normativo da medida provisória em face dos princípios e regras da Constituição de 1988.

8. Nesse sentido, passa-se à analise do objeto de controle de constitucionalidade da presente ação.

I – A INEXISTÊNCIA DOS REQUISITOS DE RELEVÂNCIA E URGÊNCIA

9. Necessário se faz, em caráter preliminar, analisar a possibilidade de aferição, pelo Poder Judiciário, da ocorrência dos pressupostos de relevância e urgência para a edição de medidas provisórias. Para tanto, nunca é demais buscar os ensinamentos retirados do modelo constitucional italiano e da doutrina que sobre ele se construiu, em face de seu indiscutível caráter matricial em relação ao modelo brasileiro.

10. GUSTAVO ZAGREBELSKY, por exemplo, indica que o controle, por parte da Corte Constitucional, haverá de ater-se não ao mérito da valoração política em relação à necessidade e urgência, mas à congruência em relação ao escopo constitucionalmente estabelecido. Este tipo de controle, que atende a uma hipótese de excesso de poder, na forma de desvio, foi entendido como admissível quando os pressupostos “revelem-se manifestamente insubsistentes, ou quando ocorra um contraste evidente entre a alegada situação de necessidade e o conteúdo do próprio provimento.”(1)

11. Outro não é o pensamento de BISCARETTI DI RUFFIA. Para o autor, deve ser relevado que “além do acenado controle político das Câmaras ao ato de conversão, subsistirá também um controle jurídico por parte da Corte Constitucional, que poderá versar não somente sobre os elementos formais do decreto e sobre a observância dos termos para a apresentação e conversão, mas mesmo sobre o requisito da urgente necessidade (seja limitadamente ao vício de legitimidade do decreto em exame, definido pelos administrativistas como excesso de poder).” O constitucionalista italiano assim se expressa:


“Ha de subrayarse que, aparte del citado control político de las Cámaras en el acto de la conversión, subsistirá ahora, desde el primer momento, de su obligatoriedad, también un control jurídico por parte del Tribunal Constitucional (a tenor del artículo 134, I, da la Constituición): que podrá versar no sólo sobre los elementos formales del decreto y sobre la observancia de los términos para su presentación y conversión, sino también sobre el requisito de la necesidad urgente (aunque sea limita al vicio de legitimidad del decreto em examen definido por los administrativistas como exceso de poder; cuando, por ejemplo, encontrándose en el decreto la cláusula de su no inmediata aplicación, pueda, por tanto, deducirse, fuera de cualquier juicio de mérito, la evidente insubsistencia del requisito mencionado.”(2)

12. No mesmo sentido se posicionam CONSTANTINO MORTATI e A. GIUGNI(3), CARLO CERETI(4) e LORENZA CARLASSARE:

“La Corte costituzionale è intervenuta su vari piani in relazione ai decretti-legge. Per frenare gli abusi, è sicuramente il controllo sulla presenza dei presupposti ad assumere un’ importanza primaria; l’indiferenza assoluta per il rispetto delle condizioni indicate in Costituzione costituisce infatti la l’origine prima di ogni tipo di abuso.

Per lungo tempo tale controllo è stato lasciato interamente alle Camere, Che in realtà, non sono state in grado di esercitarle in modo efficace.

Soltanto nel 1995, com la sent. N. 29, la Corte costituzionale si è espressa chiaramente in ordine allá própria competenza a controllare l’esistenza dei presupposti di validità del decreto e, benché successivamente la sua giurisprudenza non sai stata sempre lineare, ha posto cosi um punto fermo che gli organi politici non possono ignorare. (…)

La Corte in tal modo non entra nella sfera della valutazione política, perché limita il suo controllo ai casi in cui la mancanza dei presupposti è evidente.” (5)

13. A Corte Constitucional italiana tem ampliado o controle dos pressupostos do decretto-legge, como se decidiu na Sentença (12 gennaio) 27 gennaio 1995 n. 29 – Pres. Casanova – Red. Baldassarre:

“Controle pela Corte Constitucional dos pressupostos de necessidade e urgência do decreto-lei. A preexistência de uma situação de fato que comporte a necessidade e urgência na utilização de um instrumento excepcional, como o decreto-lei, constitui um requisito de validade constitucional da ação deste ato, de modo que a eventual evidente ausência daquele pressuposto configura tanto um vício de legitimidade constitucional do decreto-lei, na hipótese adotado fora do âmbito de possibilidades de aplicação constitucionalmente previstas, quanto um vicio in procedendo da própria lei de conversão (…)”(6)

14. Portanto, percebe-se que o direito italiano admite o controle sobre os pressupostos da decretação de necessidade e urgência, muito embora limitado ao território do excesso de poder legislativo.(7)

15. O Supremo Tribunal Federal, ainda sob a vigência da Constituição de 1967, já havia assentado entendimento a respeito da apreciação judicial sobre a “urgência” e “interesse público relevante”, a que se referia o art. 58 daquela Constituição, que regulava o decreto-lei. Na ocasião, estando em julgamento o Recurso Extraordinário n° 62.739 – SP ( Rel. Min. ALIOMAR BALEEIRO, DJ 13.12.1967), ficou decidido que “a apreciação dos casos de ‘urgência’ ou de ‘interesse público relevante’, (…) assume caráter político e está entregue ao discricionarismo dos juízos de oportunidade ou de valor do Presidente da República, ressalvada apreciação contrária e também discricionária do Congresso.” O eminente Min. Relator ALIOMAR BALEEIRO, em seu voto, afirmou que a “apreciação da ‘urgência’ ou de ‘interesse público relevante’ assume caráter político: é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal (…). Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois aspectos entregues ao discricionarismo do Executivo, que sofrerá apenas correção pelo discricionarismo do Congresso.”(8)

16. Porém, nessa época, a doutrina pátria já adotava postura distinta do Excelso Pretório, preconizando pelo controle judicial da urgência e do interesse público relevante do decreto-lei.(9)

17. Nesse passo, a Corte Suprema, após a promulgação da Constituição de 1988, passou a rever aquele entendimento (ADIMC 162 – DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 19.09.97), admitindo o controle dos pressupostos da medida provisória, todavia, apenas na hipótese de excesso do poder de legislar, diante de abuso manifesto do juízo discricionário de oportunidade e de valor do Presidente da República. Como ressaltou o Exmo. Sr. Min. MOREIRA ALVES, quando do julgamento da ADIMC 162, em 14.12.89, aquela orientação “tem de ser adotada em termos, pois, levada às suas últimas conseqüências, admitiria o excesso ou abuso do poder de legislar mediante medidas provisórias, que a Constituição expressamente só admite ‘em caso de relevância ou urgência’”. Na mesma oportunidade, o Sr. Min. CELSO DE MELLO proferiu voto nestes termos:


“O Chefe do Poder Executivo da União concretiza, na emanação das medidas provisórias, um direito potestativo, cujo exercício – presentes razões de urgência e relevância – só a ele compete decidir. Sem prejuízo, obviamente, de igual competência do Poder Legislativo, a ser exercida a posteriori e, quando tal se impuser, dos próprios Tribunais e juízes.

Esse poder cautelar geral – constitucionalmente deferido ao Presidente da República – reveste-se de natureza política e de caráter discricionário. É ele, o Chefe de Estado, o árbitro inicial da conveniência, necessidade, utilidade e oportunidade de seu exercício.

Essa circunstância, contudo, não subtrai ao Judiciário o poder de apreciar e valorar, até, se for o caso, os requisitos constitucionais de edição das medidas provisórias. A mera possibilidade de avaliação arbitrária daqueles pressupostos, pelo Chefe do Poder Executivo, constitui razão bastante para justificar o controle jurisdicional.

O reconhecimento de imunidade jurisdicional, que pré-excluísse de apreciação judicial o exame de tais pressupostos – caso admitido fosse – implicaria consagrar, de modo inaceitável, em favor do Presidente da República, uma ilimitada expansão de seu poder para editar medidas provisórias, sem qualquer possibilidade de controle, o que se revelaria incompatível com o nosso sistema constitucional.”

18. O Sr. Min. Rel. SEPÚLVEDA PERTENCE, no julgamento da ADIN 526 (DJ. 05.03.93), recordando o julgamento da ADIMC 162, alertou que “os pressupostos de relevância e urgência para a emissão da medidas provisórias não eram de todo imunes ao controle jurisdicional”, o que “não retira o caráter discricionário do juízo político, que os afirma, restringindo-se, pois, o controle jurisdicional aventado à verificação, em cada caso, da existência de abuso manifesto.”

19. No julgamento da ADIN 1.397 (DJ 27.06.97), o Min. Rel. CARLOS VELLOSO proferiu voto para afirmar que os requisitos de relevância e urgência possuem natureza política, ficando a sua apreciação, em princípio, por conta do Presidente da República. Somente quando a alegação de urgência e relevância, por parte do Chefe do Executivo, evidenciar-se improcedente, pode ela sujeitar-se ao controle judicial.

20. Na recente ADIN 1.717, Rel. Min. SIDNEY SANCHES (DJ 25.02.2000), ficou decidido que, “no que concerne à alegada falta dos requisitos da relevância e da urgência da Medida Provisória, exigidos no art. 62 da Constituição, o Supremo Tribunal Federal somente a tem por caracterizada quando neste objetivamente evidenciada. E não quando dependa de uma avaliação subjetiva, estritamente política, mediante critérios de oportunidade e conveniência”.

21. Dessa forma, hoje está assentado, na jurisprudência da Excelsa Corte, que o controle dos pressupostos de relevância e urgência para a edição de medidas provisórias, de acordo com o art. 62 da Constituição da República, é feito de forma excepcional, em face da natureza política do juízo do Presidente da República, limitando-se à censura do excesso do poder de legislar. Deve-se aferir, em cada caso, se estão presentes os requisitos exigidos pelo art. 62 da CRF/88.

22. O atual entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da questão está bem representado na ementa do acórdão proferido na ADI n° 2.213-MC/DF, Relator Ministro CELSO DE MELLO, julgamento em 4.4.2002, DJ 23.4.2004:

“POSSIBILIDADE DE CONTROLE JURISDICIONAL DOS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS (URGÊNCIA E RELEVÂNCIA) QUE CONDICIONAM A EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. – A edição de medidas provisórias, pelo Presidente da República, para legitimar-se juridicamente, depende, dentre outros requisitos, da estrita observância dos pressupostos constitucionais da urgência e da relevância (CF, art. 62, “caput”). – Os pressupostos da urgência e da relevância, embora conceitos jurídicos relativamente indeterminados e fluidos, mesmo expondo-se, inicialmente, à avaliação discricionária do Presidente da República, estão sujeitos, ainda que excepcionalmente, ao controle do Poder Judiciário, porque compõem a própria estrutura constitucional que disciplina as medidas provisórias, qualificando-se como requisitos legitimadores e juridicamente condicionantes do exercício, pelo Chefe do Poder Executivo, da competência normativa primária que lhe foi outorgada, extraordinariamente, pela Constituição da República. Doutrina. Precedentes. – A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apóia-se na necessidade de impedir que o Presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais. UTILIZAÇÃO ABUSIVA DE MEDIDAS PROVISÓRIAS – INADMISSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – COMPETÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. – A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos Presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. – Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo – quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material -, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de “checks and balances”, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. – Cabe, ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes.”


23. No caso em questão, impossível enxergar a configuração plena dos requisitos de relevância(10) e urgência(11) exigidos para a edição da medida provisória.

24. Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que, por meio de uma interpretação equivocada do texto constitucional (art. 62) poder-se-ia vislumbrar a presença da relevância da matéria, consubstanciada na premente necessidade de concessão de foro privilegiado ao Presidente do Banco Central, autoridade que exerce atribuições demasiado complexas e influentes na economia e na sociedade como um todo e que, portanto, deve submeter-se à autoridade judiciária do Supremo Tribunal Federal.

25. No entanto, como bem acentua CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “a relevância de que trata a Constituição não é, apenas, da matéria tratada, devendo qualificar, também, a situação ensejadora (estado de necessidade) da medida provisória”.(12)

26. Não há relevante interesse público (relevância e urgência – estado de necessidade) que justifique a transformação imediata do cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado. Isso porque, em data recente (28.5.2003), a organização da Presidência da República e dos Ministérios foi regulamentada pela Lei n° 10.683/03. Passado cerca de um ano desde a promulgação da referida lei, não se constata modificação das circunstâncias fáticas ou jurídicas justificadora da alteração legislativa.

27. É fato notório que a transformação do cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado visa, em primeira linha, à concessão àquele de prerrogativa de foro, para que seja julgado pela instância máxima da organização judiciária brasileira, o Supremo Tribunal Federal, justamente num momento em que está sob investigação do Ministério Público Federal a respeito de sua regularidade fiscal e eleitoral.

28. O Poder Executivo pretende justificar a edição da MP n° 207/04 com o fato de o Presidente do Banco Central exercer atribuições de alta relevância para a economia do país, não podendo estar sua autoridade relegada ao juízo de magistrados de 1ª instância.

29. Ocorre que as atribuições do Presidente do Banco Central sempre foram as mesmas. Seu papel dentro da economia sempre foi altamente relevante, e nunca cogitou-se de, processualmente, privilegiar-se dito cargo.

30. O momento presente não demonstra qualquer mudança justificadora da alteração, em caráter de urgência, do status jurídico do cargo de Presidente do Banco Central. A economia segue seu curso normal.

31. A medida provisória, em sua concepção original italiana como decreto-legge, assim como na conformação constitucional brasileira, é instrumento normativo de uso excepcional(13) pelo Presidente da República, devendo ser editada somente estando presentes os requisitos constitucionais de relevância e urgência, como assim prescreve o art. 62 da CRFB/88.

32. Uma interpretação sistemática dos preceitos constitucionais que cuidam do processo legislativo leva a crer que a edição de medida provisória pelo Chefe do Poder Executivo somente poderá ser realizada quando o procedimento de urgência para a apreciação de projetos de lei (art. 64, § 1º) não for suficiente para responder com imediata eficácia às necessidades fáticas. É dizer, a situação legislativa excepcional justificadora da edição de medidas provisórias apenas se fará presente quando insuficiente o prazo de 45 dias para apreciação pelo Congresso Nacional dos projetos de iniciativa do Presidente da República, quando por este solicitado em regime de urgência.

33. Nesse sentido, o Decreto n° 4.176, de 28 de março de 2002, que prescreve normas vinculantes para o Poder Executivo na elaboração das medidas provisórias. É o seguinte o teor do art. 39: “os projetos de medida provisória somente serão apreciados pela Presidência da República quando devidamente demonstradas a relevância e a urgência da matéria objeto da proposta”. Quanto ao art. 40, disciplina que: “não será disciplinada por medida provisória matéria: (…) V – que possa ser aprovada dentro dos prazos estabelecidos pelo procedimento legislativo de urgência previsto na Constituição”.

34. Como se pode ver, o próprio Poder Executivo fixa parâmetros para a definição do estado de necessidade legislativo, que o vinculam. Como salienta CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “parâmetros que podem ser, inclusive, utilizados pelo Poder Judiciário para invalidar os atos adotados pelo Presidente da República – aliás a imensa maioria deles – desbordantes do referido estado de necessidade”.(14)

35. De tudo, fica consignado que a Medida Provisória n° 207/04, por ter sido editada com inobservância dos requisitos constitucionais de relevância e urgência, padece de inconstitucionalidade, em afronta ao art. 62 da Constituição da República.


II – PRERROGATIVA DE FORO. MATÉRIA PROCESSUAL PENAL. VIOLAÇÃO AO ART. 62, § 1º, I, “B”, DA CRFB/88

36. O segundo ponto a ser abordado diz respeito à fiscalização da constitucionalidade da matéria objeto da medida provisória, tendo em vista os parâmetros fixados no art. 62, § 1º, da Constituição da República.

37. A Medida Provisória n° 207/04, como já delineado, altera disposições da Lei n° 10.683, de 28.5.2003 e da Lei n° 9.650, de 27.5.1998, transformando o cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado.

38. À primeira vista, o conteúdo material da medida provisória estabelece regras de direito administrativo, alterando o quadro normativo relativo a determinado cargo público.

39. A interpretação da norma em questão, porém, não pode restringir-se ao aspecto literal do texto normativo. Como se sabe, a hermenêutica das normas jurídicas deve revelar também a teleologia da norma. Uma interpretação zetética deve descobrir o sentido finalístico da norma jurídica.

40. No caso em questão, não há dúvida de que a Medida Provisória n° 207/04 visa, em primeira linha, conceder foro privilegiado por prerrogativa de função ao Presidente do Banco Central do Brasil, para que seja julgado perante o Supremo Tribunal Federal.

41. A teleologia da norma, portanto, é fixar a Corte Suprema como foro de julgamento da responsabilidade penal do Presidente do Banco Central.

42. Assim, não há como não considerar que a Medida Provisória n° 207/04 trata de matéria processual penal. Portanto, viola o art. 62, § 1º, inciso I, alínea “b”, da Constituição da República, o qual deixa claro que “é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria (…) processual penal”.

III – SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR. OFENSA AO ART. 62, § 1º, INCISO III, E AO ART. 192, CAPUT, DA CRFB/88

43. Não se pode deixar de considerar a possível violação ao art. 62, § 1º, III, da Constituição Federal. Diz esse dispositivo constitucional que é vedada a edição de medida provisória sobre matéria reservada à lei complementar.

44. Com efeito, a modificação na estrutura, organização, funcionamento e atribuições do Banco Central do Brasil, autarquia integrante do sistema financeiro nacional, está, por força do art. 192 da Constituição da República, reservada à lei complementar.

45. Como se sabe, com a modificação operada neste artigo pela Emenda Constitucional n° 40, de 29 de maio de 2003, ampliou-se ainda mais as margens de atuação do legislador na regulamentação do sistema financeiro nacional.(15)

46. Anteriormente à EC n° 40, o legislador estava vinculado por diversos temas enumerados nos incisos e alíneas do art. 192. De acordo com o inciso IV, caberia à lei complementar dispor sobre “a organização, o funcionamento e as atribuições do Banco Central e demais instituições financeiras públicas e privadas”.

47. Portanto, se antes a matéria era expressamente submetida à reserva constitucional de lei complementar, após a EC n° 40/03 com mais razão ainda estará ela subordinada ao processo legislativo complexo previsto para a feitura da lei complementar.

48. Existe, portanto, ofensa ao art. 62, § 1º, III, e ao art. 192, caput, da Constituição Federal.

IV – A RUPTURA NO SISTEMA NORMATIVO CONSTITUCIONAL QUE ESTRUTURA O PODER EXECUTIVO. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 52, III, “D”, 76, CAPUT, 84, I, II E XIV E 87, PARÁGRAFO ÚNICO, I, DA CONSTITUIÇÃO

49. A concessão de status jurídico de Ministro de Estado ao Presidente do Banco Central esbarra em várias normas, tanto de caráter constitucional como legal. O que se observa é que, para se alcançar os fins perseguidos pelo Poder Executivo, deve-se proceder a uma modificação substancial no ordenamento jurídico, atingindo normas constitucionais e infra-constitucionais. A via da medida provisória, simplesmente alterando o status jurídico do cargo exercido pelo Presidente do Banco Central, torna-se imprestável para tal mister.

50. A primeira incongruência normativa criada pela MP n° 207/04 pode ser constatada pela leitura do art. 84, incisos I e II da Constituição, que atribuem competência ao Presidente da República para nomear e exonerar os Ministros de Estado, assim como exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal. Como se percebe, o Presidente da República possui poder de nomear e exonerar, livremente, os Ministros de Estado, que, de acordo com o art. 76, são seus auxiliares no exercício do Poder Executivo.

51. Ocorre que, consoante o art. 52, inciso III, alínea “d”, da Constituição (16), o Presidente do Banco Central deve ser submetido à aprovação prévia do Senado Federal, após argüição pública. Assim também está disposto no art. 84, inciso XIV, que prescreve competência privativa ao Presidente da República para nomear o Presidente do Banco Central, após aprovação pelo Senado Federal.


52. Ademais, a transformação do cargo de Presidente do Banco Central em Ministro de Estado gera outra incongruência no sistema normativo constitucional, pois submete um Ministro à supervisão de outro Ministro.

53. Como se sabe, os serviços integrados na estrutura administrativa dos Ministérios e da Presidência da República constituem a Administração Pública Direta (art. 4º, I, Decreto-Lei n° 200/67).

54. O Banco Central, por sua vez, constitui uma autarquia, integrante da Administração Pública Indireta (art. 4º, II, Decreto-Lei n° 200/67), estando, por isso, vinculado à orientação, supervisão e coordenação do Ministério da Fazenda, por força do art. 87, parágrafo único, inciso I, da Constituição e do parágrafo único do art. 4º do Decreto-Lei n° 200/67.

55. Assim, o que se observa é que, com a MP n° 207/04, um Ministro (o Presidente do Banco Central) irá presidir uma autarquia – os Ministros de Estado fazem parte da Administração Pública Direta e não podem exercer a presidência de autarquias, entidades pertencentes à Administração Pública Indireta – e estará submetido à supervisão, coordenação e orientação de outro Ministro (o Ministro da Fazenda) – um Ministro não pode estar vinculado a outro Ministro; submete-se, na estrutura hierárquica criada pela Constituição, diretamente ao Presidente da República.

56. Fica comprovado, com isso, a quebra no sistema normativo constitucional que dispõe sobre a estrutura do Poder Executivo. Existe patente vício de inconstitucionalidade, em face dos arts. 52, III, “d”, 76, caput, 84, I, II e XIV e 87, parágrafo único, I, da Constituição Federal.

57. Portanto, a transformação do cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado não pode prescindir da mudança da conformação constitucional desses cargos e da configuração normativa da estrutura e atribuições do Poder Executivo e do Senado Federal.

58. Seria necessário, em primeiro lugar, emenda constitucional alterando as disposições constitucionais pertinentes, acima mencionadas. Em seguida, realizar-se-iam as modificações na legislação infra-constitucional, que, por tratar-se de matéria atinente ao sistema financeiro nacional, deveriam ser feitas, em primeira linha, por lei complementar.

V – A AFRONTA AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE

59. Segundo CARLOS NINO (17), “uno de los problemas que desde tiempo inmemorial se plantea recurrentemente, tanto frente a medidas legislativas, como judiciales y administrativas, puede condensarse en la siguiente pregunta: constituye la mera inmoralidad de un acto una razón suficiente para justificar que el derecho interfiera con su realización, a través de sanciones y de otras medidas?

60. Após estudar o problema, o constitucionalista argentino chega à conclusão de que o direito deve reprimir atos violadores do que chama de moralidade pública (18).

61. O princípio da moralidade (moralidade pública) foi incluído na Constituição de 1988 não só para servir de norte para a atividade da administração pública, mas para irradiar por todo o ordenamento jurídico, atingindo qualquer tipo de ato jurídico público. Como bem afirma CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, “o princípio da moralidade administrativa tem uma primazia sobre os outros princípios constitucionalmente formulados, por constituir-se, em sua exigência, de elemento interno a fornecer a substância válida do comportamento público. Toda atuação administrativa parte deste princípio e a ele se volta. Os demais princípios constitucionais, expressos ou implícitos, somente podem ter a sua leitura correta no sentido de admitir a moralidade como parte integrante do seu conteúdo. Assim, o que se exige, no sistema do Estado Democrático de Direito no presente, é a legalidade moral, vale dizer, a legalidade legítima da conduta administrativa”.(19)

62. O princípio da moralidade, portanto, não apenas limita a conduta do agente público no desempenho da atividade administrativa, mas constitui princípio jurídico-constitucional que serve de parâmetro para a fiscalização da constitucionalidade do próprio direito positivado por meio de atos normativos. Assim, não somente o administrador, mas também o legislador está submetido ao princípio constitucional da moralidade.

63. Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que admite o controle de constitucionalidade dos atos estatais (administrativos ou legislativos) tendo como parâmetro o princípio da moralidade. Assim ficou decidido na ADI n° 2.661/MA, Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJ 23.8.2002:

“O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO – CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. – A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado. O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. A ratio subjacente à cláusula de depósito compulsório, em instituições financeiras oficiais, das disponibilidades de caixa do Poder Público em geral (CF, art. 164, § 3º) reflete, na concreção do seu alcance, uma exigência fundada no valor essencial da moralidade administrativa, que representa verdadeiro pressuposto de legitimação constitucional dos atos emanados do Estado.”


64. No presente caso, a afronta ao princípio da moralidade pelo ato normativo emanado do Poder Executivo (MP n° 207/04) é patente. Sua edição está, inequivocamente, ditada por inspiração casuística, data venia. E o casuísmo, por certo, não se compadece com a “legalidade legítima da conduta administrativa”, a ficar-se com as sábias palavras, retro transcritas (item 61 deste parecer), da Prof. CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA.

65. Assim, a ofensa a valores ético-jurídicos que norteiam a atividade pública resta demonstrada.

66. Conclui-se, portanto, que a MP n° 207/04 viola o princípio constitucional da moralidade, positivado no art. 37, caput, da Carta da República.

VI – CONCLUSÃO

67. Com essas breves considerações, a ilação a que se chega é de que a Medida Provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004, que altera disposições da Lei n° 10.683, de 28.5.2003 e da Lei n° 9.650, de 27.5.1998, transformando o cargo de Presidente do Banco Central em cargo de Ministro de Estado, padece de inconstitucionalidade formal e material, por violação ao art. 37, caput (princípio da moralidade), ao art. 62, caput, § 1º, I, “b” e III, aos arts. 52, III, “d”, 76, caput, 84, I, II e XIV e 87, parágrafo único, I, e ao art. 192, todos da Constituição da República.

68. Em conclusão, e com vistas à reflexão sobre o tema, vale citar o pensamento do constitucionalista alemão FRIEDRICH MÜLLER (20):

“Os decretos emergenciais dos Presidentes alemães (a partir de 1919) foram – no seu âmbito – fatais para a Alemanha. As medidas provisórias dos Presidentes brasileiros (a partir de 1988) poderiam – no seu âmbito – resultar em fatalidade para o Brasil. (…)

Os intimidantes exemplos da história constitucional mais recente do Brasil deveriam ser motivação suficiente para interpretar e aplicar cuidadosa e sobriamente o art. 62 como direito constitucional positivo plenamente vigente. (…)

Minhas Senhoras, meus Senhores, permitam também a mim, ao não-brasileiro que se ocupa com toda lealdade com os problemas do seu grande país, esse apelo à jurisdição constitucional: apliquem, Srs. Juízes do Supremo Tribunal Federal, o art. 62 com todas as suas cautelas como o direito constitucional positivo diretamente vigente que ele é. Verifiquem e eventualmente sancionem a atuação do Presidente da República como ação vinculada ao direito positivo (e não legitimável a partir da natureza, da história ou da ‘graça de Deus’). Ela é legitimável apenas a partir dessa Constituição de 1988. Anulem, Srs. Juízes do Supremo Tribunal Federal, a edição liminarmente não correspondente ao art. 62 (…). Com isso os Senhores fortalecerão de modo insubstituível a constitucionalidade, a legalidade e a legitimidade da República Federativa do Brasil!”

69. Ante o exposto, o parecer é pela procedência do pedido, para declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória n° 207, de 13 de agosto de 2004.

Brasília, 5 de novembro de 2004.

CLAUDIO FONTELES

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

Notas de Rodapé

1 Apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 232

2 BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Derecho Constitucional.Trad. Pablo Lucas Verdú. Madrid: Editorial Tecnos; 1984, p. 496.

3 Apud, CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. Cit. p. 233

4 CERETI, Carlo. Diritto Constituzionale Italiano. Torino: Utet; 1971.

5 CARLASSARE, Lorenza. I limitti materia al decreto-legge: due costituzioni confronto. In: SEGADO, Francisco Fernández (editor). The Spanish Constitution in the european context. Madrid: Ed. Dykinson; 2003, p. 1250.

6 Citado por CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. Cit. p. 239. No mesmo sentido: CARLASSARE, Lorenza. I limitti materia al decreto-legge: due costituzioni confronto. In: SEGADO, Francisco Fernández (editor). The Spanish Constitution in the european context. Madrid: Ed. Dykinson; 2003, p. 1250.

7 Idem, ibidem, p. 233

8 No mesmo sentido, vide RE 62731, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ 23.08.1967; RE 74096, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ 13.06.1972.

9 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. Cit. p. 229, nota 193.

10 “Possui relevância aquilo que é importante, proeminente, essencial, exigível ou fundamental. Quanto às medidas provisórias, a relevância demandante de sua adoção não comporta satisfação de interesses outros que não os da sociedade. A relevância há, portanto, de vincular-se unicamente à realização do interesse público. De outro ângulo, a relevância autorizadora da deflagração da competência normativa do Presidente da República não se confunde com a ordinária, desafiadora do processo legislativo comum. Trata-se, antes, de relevância extraordinária, excepcional, especialmente qualificada, contaminada pela contingência, acidentabilidade, imprevisibilidade. Não há dúvida de que o conceito de relevância é, até certo ponto, mais fluído que o de necessidade, presente nas Constituições espanhola e italiana. O Constituinte de 1988, lamentavelmente, ao seguir a experiência italiana, não foi inteiramente fiel, adotando como pressuposto material um significante menos preciso (que vem desde os antigos decretos-leis – “relevante interesse público”. É missão dos operadores jurídicos, não obstante, desenhar os traços dentro dos quais circulará a realização do pressuposto. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. Cit. p. 174-175.

11 “O pressuposto da urgência admite maior precisão conceitual: “a urgência alia questão de data (momento) à condição social nela constatada. A urgência qualifica o momento e define o tempo de exercício de uma competência”. Relaciona-se com a indeferibilidade do provimento, que deve ser tal por impedir o emprego de meios ordinários. Com urgência, está-se a indicar perigo de dano; enfim, a situação de periculosidade exigente de ordinanza extra ordinem. A experiência européia, nesse particular, é perfeitamente assimilável. Se a relevância é da matéria e da situação, a urgência é do provimento. O conceito de urgência é relacional e, nessa medida, relativo. Uma ação é urgente quando inadiável para alcançar determinado fim. Manifesta-se quando “el desarrollo del procedimiento legislativo ordinário, incluso el abreviado, no permite el logro tempestivo de uma finalidad propuesta por el Gobierno”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. Op. Cit. p. 175-176.

12 Op. Cit. p. 175.

13 Biscaretti di Ruffia fala em derrogação excepcional do princípio da separação dos poderes. BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Derecho Constitucional.Trad. Pablo Lucas Verdú. Madrid: Editorial Tecnos; 1984, p. 449.

14 Op. Cit. p. 175.

15 Dispõe o atual art. 192: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.”

16 Assim dispõe o art. 52, III: “Compete privativamente ao Senado Federal: (…) III – aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: (…) d) presidente e diretores do Banco Central”.

17 NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. 2ª Ed. Buenos Aires: Editorial Astrea; 2003, p. 423.

18 Carlos Nino identifica duas esferas ou dimensões da moralidade: a moralidade pública e a moralidade privada. Para o autor, o direito só deve interferir em ações que prejudiquem a moral pública. Ibidem, p. 427.

19 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey; 1994, p. 213-214.

20 MÜLLER, Friedrich. As Medidas Provisórias no Brasil diante do pano de fundo das experiências alemãs. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.). Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Ed. Malheiros; 2001, p. 355.

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