Barreira sindical

Sindicalismo precisará reforçar sua pressão para evitar reforma

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14 de março de 2005, 17h21

“O trabalho se comporta dentro das leis da oferta e da procura”. Com essa visão de mercado, saudada pela mídia oficial [1], o ministro Ricardo Berzoinio governo enviou ao Congresso Nacional seu explosivo pacote da reforma sindical. Ele terá duas partes: uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que altera quatro capítulos nevrálgicos da Constituição e é condição prévia para as mudanças na legislação ordinária, e um Projeto de Lei com 238 artigos, que fixa as bases do novo modelo sindical no país. Agora não se trata mais de especulação ou conversa de bastidores; a proposta é oficial!

Apesar da retórica progressista e mesmo de alguns artigos avançados, na essência a proposta do governo visa instituir regras de mercado na vida sindical, estimulando a concorrência e a disputa no sindicalismo. Como a própria cartilha do MTE já havia antecipado, a reforma “conjuga os princípios que derivam da unicidade, como a exclusividade de representação, com os princípios da liberdade e autonomia sindical, como a possibilidade da existência de mais de uma entidade num mesmo âmbito de representação” [2]. Vários são os artigos que preparam a transição para a implantação do plurisindicalismo no Brasil!

Além disso, ela endeusa a “livre negociação” como “instrumento fundamental para solução de conflitos”, anulando contrapontos legais à investida do capital contra o trabalho. Na versão final, o governo ainda retirou do projeto o capítulo que consagrava “o princípio do uso da norma mais benéfica ao trabalhador”, cedendo diante da pressão patronal que insiste na prevalência do negociado sobre o legislado. Em síntese, a reforma tem nítido viés liberal! Seus aspectos positivos são anulados por sua essência regressiva. Ela é rejeitada pela maioria das centrais e mesmo por parcela expressiva da CUT [3] por dez razões principais:

Fragmentação e caos no sindicalismo

A PEC tem o objetivo explícito de enterrar de vez a unicidade que já dura mais de 70 anos. Ela extingue o inciso segundo do artigo 8º da Constituição que veda “a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial”. Ela também substitui o termo “sindicato” por “entidade sindical”, deixando vago a quem caberá “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais no âmbito da representação”. A sua vigência abriria brechas para a divisão do sindicalismo, gestando um Frankenstein que levaria à anarquia na estrutura brasileira.

Já o projeto de lei tem vários artigos que estimulam a pulverização. A exclusividade de representação vale apenas às entidades registradas antes da edição da lei; as novas, inclusive dos ramos de atividade, deverão disputar as bases para conseguir seu registro. A própria obrigatoriedade dos 20% de sócios menospreza as dificuldades atuais do sindicalismo – desemprego, rotatividade, precarização e a ditadura nas fábricas. A “disputa do mercado” se torna lei. “Os índices de representatividade deverão ser confirmados sempre que houver contestação por qualquer outra entidade com ou sem personalidade sindical” (art. 12). Caso não seja confirmado, “poderá existir mais de um sindicato no mesmo âmbito de representação” (art. 41).

Entidades biônicas

Para tumultuar ainda mais o cenário, o projeto prevê a existência das “entidades derivadas”, que poderão ser criadas por centrais ou confederações a partir de critérios difusos. Esse bizarro organismo, já batizado de “sindicato biônico”, ficará totalmente atrelado às cúpulas, num retorno da polêmica estrutura orgânica, que concentra poderes nas centrais e estimula a partidarização do sindicalismo. O projeto é explícito: “A aquisição ou a preservação da personalidade sindical por representatividade derivada vinculará a entidade beneficiada à estrutura organizativa da entidade transferidora na forma do estatuto dessa última” (art. 11).

Cúpula sindical

Além de impor a estrutura orgânica, com suas entidades biônicas, o projeto concentra poderes nas cúpulas em outras áreas estratégicas da relação capital-trabalho. Parece que foi redigido para beneficiar as maiores centrais sindicais. O reconhecimento legal dessa instância horizontal, uma conquista do sindicalismo, gera o extremo oposto do cupulismo e do rebaixamento da soberania das bases. A concentração de poder surge em vários artigos e o mais preocupante é o que trata da negociação coletiva. “O contrato coletivo de nível superior poderá indicar cláusulas que não serão objeto de modificação nos níveis inferiores” (art. 100).

Distorção da organização no local de trabalho

O que seria o maior avanço dessa reforma, o direito da organização sindical nos locais de trabalho, ficou totalmente prejudicado no projeto. Além de não garantir a sua instalação, já que não houve acordo com os empresários, e de prever longa transição para sua vigência, a proposta distorce suas funções. Na prática, a tal representação substituirá as Comissões de Conciliação Prévia (CCP), diluindo o poder de negociação dos trabalhadores e abrindo brecha para a criação de frágeis e dóceis “sindicatos de empresas”. O projeto fixa que ela poderá “mediar e conciliar os conflitos individuais de trabalho” (art. 62) e que “a negociação coletiva na empresa poderá ser conduzida diretamente pela representação dos trabalhadores” (art. 88). A redação lembra a triste experiência do “sindicato-casa”, que fragilizou e dividiu o sindicalismo no Japão.

Mecanismos de atrelamento ao Estado

Ao mesmo tempo em que estimula a disputa fratricida na base, o projeto reforça a tutela do Estado sobre o sindicalismo. Todo capítulo VI, que trata do Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT), está contaminado pela visão do tripartismo, que dá amplos poderes ao Estado (e não ao efêmero governo Lula) para interferir na vida sindical. “Compete ao MTE a nomeação dos membros dos órgãos do CNRT” (art. 121) que terá, entre outras funções, o poder de “encaminhar para deliberação do MTE a lista de agregação por setores econômicos e ramos de atividades”; “propor, para aprovação do MTE, disposições estatutárias mínimas a serem observadas pelos sindicatos que postularem a exclusividade de representação”; “propor a alteração do rol de serviços e atividades essenciais” (art. 133). É visível o retrocesso em relação a atual Constituição, que vedava “ao poder público a interferência e a intervenção na organização sindical”.

Direitos dos servidores públicos

Apesar da extensão do projeto, que desmoraliza os que criticavam a atual legislação por ser detalhista, ele novamente despreza os servidores públicos das três instâncias de poder no que se refere aos direitos de organização sindical, de greve e de negociação coletiva. A regulamentação desses direitos novamente fica para as calendas. “As disposições desta Lei não se aplicam aos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como das autarquias e das fundações públicas, cujas relações sindicais serão objeto de lei específica” (art. 2º).

Dissídio e negociações

A PEC e o projeto de lei se enquadram num esforço já em andamento de alterar profundamente as normas da negociação coletiva no Brasil, emplacando o idílico modelo europeu da “livre negociação”. A reforma do Judiciário, aprovada nos estertores de 2004, já deu uma sorrateira punhalada no sindicalismo ao proibir o ajuizamento unilateral do dissídio, o que prejudicará todas categorias com frágil organização sindical. A PEC extingue o artigo 114 da Constituição, que fixa que “compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos”. Já o projeto de lei visa estimular a arbitragem privada para resolução de conflito e torna quase impossível o acesso do sindicato à Justiça do Trabalho. A redação induz à “livre negociação”, inclusive apartando os sindicatos. “Havendo recusa, devidamente comprovada, à negociação por parte das entidades representativas, será conferida a outra entidade sindical do mesmo ramo ou setor econômico a titularidade da negociação coletiva; a recusa reiterada à negociação caracteriza conduta anti-sindical e sujeita as entidades sindicais à perda da personalidade sindical” (art. 103).

Direito de greve

A chamada livre negociação, entretanto, fica truncada pelos enormes obstáculos ao direito de greve. Até a Justiça do Trabalho, antes renegada, tem seus poderes ampliados para cercear tal direito. Além de manter a proibição à paralisação nas chamadas atividades essenciais, o projeto prevê que “o empregador poderá, durante o período da greve, contratar diretamente serviços mínimos” (art. 113), o que legaliza a sinistra figura do fura-greve. Afirma ainda que “a responsabilidade por atos ilícitos ou crimes cometidos no curso da greve será apurada segundo a legislação trabalhista, civil e penal” (art. 119) e, o que é mais grave, dá poderes à Justiça do Trabalho para aplicar “multa punitiva em valor de um até quinhentas vezes o menor piso salarial no âmbito de representação da entidade” no caso de “conduta anti-sindical” (art. 176).

Flexibilização trabalhista

Ao estimular a cizânia e a disputa na base de trabalhadores, gestando um frankenstein sindical, o projeto já fragiliza o sindicalismo diante dos duros e inevitáveis confrontos em torno da reforma trabalhista. Para piorar, o governo ainda retirou do seu projeto o único dispositivo que dava uma tímida segurança frente à flexibilização – que consagrava “o princípio do uso da norma mais benéfica ao trabalhador”, capitulando diante da pressão patronal. Nesse sentido, a proposta que será enviada ao Congresso Nacional não apenas aplaina o terreno da reforma trabalhista. Na verdade, a segunda já está contida na primeira. A aprovação da PEC, que antecipa a votação do projeto de lei, viabilizaria o império da desregulamentação do trabalho e propícia a “prevalência do negociado sobre o legislado” – agora embalada na idéia da livre negociação.

Reforço

Diante do exposto, até mesmo a corrente majoritária da CUT, a Articulação Sindical, que apóia a reforma, agora propõe seis pequenos ajustes no projeto do governo [4]. Ocorre que não dá para consertar o que está pobre. A essência liberal dessa reforma anula, inclusive, seus poucos aspectos positivos. Além disso, estes ainda deverão ser derrubados no parlamento, que é um terreno mais inóspito ao sindicalismo. O patronato já anunciou que sabotará a representação no local de trabalho e outras migalhas previstas no projeto [5]. Para evitar a morte anunciada, o sindicalismo precisará reforçar sua pressão. O primeiro round ocorrerá na votação da PEC, que exige quorum qualificado. Derrotada, a reforma sindical estará enterrada.

Notas de rodapé

1- “Reforma sindical”. Editorial do jornal O Estado de S.Paulo de 11/02/05.

2- “Reforma sindical – perguntas e respostas”. Cartilha do Ministério do Trabalho e Emprego, 2004.

3- “CUT se divide sobre reforma sindical”. Portal Vermelho, 17/02/05.

4- “Avançar rumo à liberdade e autonomia sindical”. Resolução da executiva da CUT, 17/02/05.

5- Marcos Verlaine. “Reforma sindical: textos prontos para discussão no Congresso”. Portal do Diap.

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