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Verbete: Afeto é decisivo para qualificação de união homossexual

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13 de março de 2005, 10h38

Questão polêmica de nosso tempo, a homossexualidade tem ocupado cada vez mais o direito. Todas as abordagens do tema concluem por uma análise sobre o preconceito, inferindo ser este o seu ponto nevrálgico. Tal quadro nos impele a meditar sobre a moral. Ninguém foi capaz até agora de estabelecer uma moral universal. O que não autoriza, decerto, a presunção de que ela inexista, como quer o absolutismo relativista destes tempos em que o pensamento sociológico se arvora em farol da verdade, mas evidencia a dificuldade que cerca tal empresa.

É possível divisar um conjunto de valores comuns a quase todos os homens, como vida, liberdade, dignidade, saúde, etc. Entretanto, quando nos aproximamos da questão familiar e sexual é que as diferenças são tão acentuadas que nos perguntamos se realmente é possível alcançar um denominador comum. Como recorda Serge Raynaud de la Ferrière (in Yug, Yoga, Yoghismo Ed. GFU, Caracas, Venezuela, 1987), no Tibet era possível que uma mulher pertencesse a cinco maridos, enquanto que na Turquia um homem possuía várias mulheres. Acresce ainda o referido autor que a freqüência do coito varia tanto entre os homens, que é impossível apurar uma norma. De onde advém, então, a conceituação moral do sexo?

Certamente provém daquele tipo de olhar religioso a identificar no sexo a animalidade que separa o homem de um estado superior de pensamento, as paixões que cegam o homem no egoísmo de sua própria satisfação, excluindo assim uma visão mais elevada que lhe possa fazer comungar com os demais homens, o universo e, enfim, Deus. É a partir de Santo Agostinho, inspirado por sua vez em São Paulo, que o cristianismo cobriu de vergonha o sexo.

Se nos voltamos para o Oriente, tomando por exemplo a Índia, vemos diversas correntes religiosas que denominam o prazer como ilusão dos sentidos, o chamado mundo de maya, preconizando a superação deste marco ilusório para o alcance de uma verdade superior. Mas, diferentemente, neste mesmo país encontraremos concepções sacramentais do sexo lhe qualificando como energia criadora que convoca as forças da natureza, sendo a chamada Tantra-Yoga uma espécie de prática sexual com a finalidade de desenvolvimento espiritual, o que muito nos recorda das orgias gregas e alguns cultos de celebração da vida através da manipulação daquilo que chamam amiúde de energia sexual.

Pelo que podemos constatar, se uma moral universal de fato é possível, seguramente ela não será fornecida pelos elementos idiossincráticos ou intelectuais, razão pela qual nos abstemos de fazer considerações morais sobre o tema deste verbete, uma vez que serão posições sempre relativíssimas, resultando em pura perda de tempo a dedicação de certos juristas a tal expediente, pelo que, neste particular, é deveras adequada a teoria pura do direito (V.), de Kelsen. Destarte, o que nos ocupará aqui não é o certo e errado sob o ponto de vista moral, mas a norma e sua interpretação, o que é, ou seja, a sua natureza jurídica.

Devemos, para tanto, primeiramente indagar: o que é família? A família, em sentido lato é constituída pelas pessoas ligadas por consangüinidade, em sentido estrito os cônjuges e a prole. Denomina-se também família ou entidade familiar a chamada união estável entre e o homem e a mulher (V.), bem como a família monoparental, consistente na comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, conforme os parágrafos 3º e 4º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988.

Com efeito, o casamento, que por razões religiosas e morais era forma de origem da família foi aos poucos perdendo seu caráter absoluto como originador da célula familiar bem como a vitaliciedade que lhe era característica para deixar campo a outros modelos de entidade familiar, como aqueles supramencionados. A família, definida pela Constituição como base da sociedade, sofreu portanto grandes transformações, que fizeram variar a sua definição.

Não nos cabe, no espaço destas breves linhas, retratar a evolução da família ou do casamento ao longo da história, nem do casamento (V.), mas impende observar que o casamento ou mesmo a união estável sempre foram concebidos como laço entre homem e mulher. O Código Civil, apesar de não apresentar definição, faz alusão ao cônjuge, a marido e mulher ou aos companheiros. A Constituição de 88 e o Código Civil determinam que a união estável é configurada entre o homem e a mulher e os deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 4º).

Não resta dúvida, portanto, que pela dicção legal o casamento entre pessoas do mesmo sexo é ato inexistente (V.), não alcançando sequer a condição de ato nulo, posto que não há negócio ou ato inválido, mas sim que inexistem os próprios sujeitos necessários à relação jurídica conforme figura na abstração legal, a saber, o homem e a mulher.

Situamo-nos aqui na conclusão inexorável de que no ordenamento jurídico vigente não há forma constitutiva de família ou entidade familiar entre pessoas do mesmo sexo. É neste ponto que recordamos de Engels, a apontar que a origem de família vem de famulus (o escravo doméstico), o que sinaliza muito bem que em suas origens o casamento e a família, sejam considerados como instituição ou contrato, não provieram necessariamente de um vínculo afetivo.

A família romana, que está na base de nossa instituição familiar, tinha no pater familias, o senhor absoluto, cujo poder alcançava até os netos dos filhos. A família sofreu transformações contínuas onde, da completa sujeição ao homem e ausência de obrigações morais hoje incontestes, se variou até a moderna noção dos deveres educacionais, da igualdade entre homem e mulher, e, principalmente, da inserção da afetividade como elemento necessário à persistência do casamento ou da entidade familiar (mais adequado seria dizer reinserção, uma vez que no direito romano o desaparecimento da affectio maritalis podia ser causa de separação, porém nem sempre esta expressão designava o que entendemos hoje como afeição, podendo ser tão somente vontade contratual, além de haver posição, embora não majoritária entre os romanistas, de que o vínculo matrimonial era indissolúvel também no direito romano).

Tanto é assim que uma das formas de dissolução do vínculo conjugal é aquela por mútuo consentimento, na qual ambos reconhecem o desvanecimento das causas que justificam a manutenção da união ou vínculo conjugal, entre elas, principalmente, o amor.

A indissolubilidade do casamento era derivação da religião, impondo aflitiva condição àqueles que não mais nutrindo amor entre si estavam assim mesmo obrigados a suportar o vínculo matrimonial, ou seja, se o amor não era realmente eterno, a mentira em torno dele deveria ser. Igual importância ganhou a afetividade na decisão sobre a guarda dos filhos na separação (art. 1.584). Por que nos referimos a este fator? Ora, porque é justamente este o prisma que dará a solução à questão da união homossexual.

A perspectiva sobre a qual o direito se deve debruçar é aquela do afeto, sendo este o elemento que diferencia a união homossexual do simples negócio jurídico frio ou sem emoção. Semelhante problemática erguia-se em torno da união estável, outrora chamada de concubinato, que, para efeitos patrimoniais, obrigava o companheiro supérstite a provar uma sociedade de fato. Esta, entretanto, tem sido até agora a linha seguida pelo pretório, com base no art. 1363 do Código de 1916 (art. 981 do Novo Código Civil) invocando-se para tanto a súmula 380 do STF (“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”). Exemplo é o RESP 148.897-MG.

Conclusão: a ciência jurídica deve prover a realidade com as soluções requeridas pelos fenômenos, não se justificando uma adaptação postiça da lei que desvirtue as características essenciais da realidade, e no caso da união homossexual nada é mais real que a existência do afeto recíproco entre os conviventes homossexuais como base de toda a relação, que assim não pode ser reduzida a mero ato negocial.

Como afirmamos ao início deste verbete, não adentraremos no complicado universo moral para extrair qualquer juízo, posto que consideramos puro extravio analítico não devendo disto se ocupar o jurista. Assim, concluímos ser de pouca importância a denominação adotada, pois, seja chamada de entidade familiar ou aplicada qualquer outra nomenclatura (união homoafetiva, união afetiva, etc.), a união de pessoas do mesmo sexo requer, dadas as evidentes peculiaridades, disciplina própria, com regramento de direitos e obrigações e, principalmente, lineamentos claros quanto aos efeitos patrimoniais e sucessórios em virtude do vínculo afetivo, que entendemos como norte do regramento legal a ser cunhado para o caso.

* Verbete extraído da Enciclopédia Jurídica Soibelman, cuja versão eletrônica pode ser encontrada no site da Elfez.

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