Mercosul na prática

Experiência européia não serve de guia para passos do Mercosul

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8 de março de 2005, 17h55

As relações intersubjetivas podem ser observadas em duas grandes modalidades: competição e cooperação. Condutas totalmente competitivas ou totalmente cooperativas (tipos puros) não pertencem à realidade. A rotina é feita da preponderância – leve ou acentuada – de uma ou outra modalidade, presentes nas ambigüidades cotidianas.

Charitas omnium pro omnes. Bellum omnium contra omnes. O cotidiano não se pauta pelos extremos, pelas excludências. Nas situações de competição espera-se o cumprimento das regras para que os competidores possam alcançar seu bem particular e, nas de cooperação, deseja-se alcançar um bem comum, mediante justa partilha do esforço.

Existe a tendência de ver a cooperação como imanentemente boa e a competição como má: rasa simplificação da complexidade social (1). Ideologias chegam ao extremo de propor a exclusão de uma das modalidades da vida social. O capitalismo e o comunismo, nas formas puras, representam a presença exclusiva da competição e da cooperação como modos de convivência.

Sociedades que exigem de seus membros a cooperação para o alcance de uma finalidade são, via de regra, restritivas da liberdade individual. Como a relação é inversamente proporcional, sociedades que dão mais espaço à competição, tendem a ampliar a liberdade individual.

Para que haja cooperação é imprescindível a existência de um objetivo comum. As normas que regulam a cooperação destinam-se a propiciar que os cooperados alcancem a finalidade comum. Terry Nardin afirma que “aqueles que estão associados num empreendimento cooperativo para a promoção de valores, crenças ou interesses partilhados estão unidos por seus desejos convergentes de realização de certo resultado que constitui o bem cuja obtenção os reuniu.” (2)

O objetivo, a finalidade, é a razão para a existência da associação. As normas são meios, instrumentos, para o desiderato. O fundamento do dever de obediência a tais normas é que elas se destinam a regular a cooperação para o alcance da finalidade que é comum aos associados.

Para que haja competição é mister a cooperação dos competidores. Há um acordo mantenedor do lócus no qual se compete. A competição desregrada pode destruir os competidores e a arena na qual ocorrem os confrontos. Na seara da economia, por exemplo, a competição natural destrói o mercado, até porque ele é construído. A competição que se mantém ao longo do tempo, sem aniquilar as condições para a sua própria continuidade, é artificial, obtida por meio de normas que restringem a liberdade dos jogadores.

A atitude cooperativa pode ser obtida com baixo custo político e econômico nas culturas que prezam a confiança ampla, entre indivíduos e entre grupos. Nas sociedades carentes de virtudes sociais, a manutenção da higidez competitiva é muito custosa e concentradora das decisões econômicas estruturais nas instâncias de poder político, que regulam o mercado tendo em conta, entre outros motivos, a sua própria sobrevivência, pois a excessiva concentração de poder econômico funciona como massa gravitacional que atrai para si a titularidade do poder político.

Competir e cooperar não são, per se, pedras filosofais capazes de criar paraísos artificiais. A inibição e o estímulo que se dá a cada uma das ações é que diferencia as sociedades.

Competição econômica

Na percepção mais chã, a atividade econômica é feita em ambiente de competição e o móbil é o lucro. Para alcançá-lo em meio à disputa, os atores agem sem escrúpulos e moldam as normas em conformidade com os seus interesses. Por outra perspectiva, se a atividade econômica ocorresse em ambiente cooperativo, não haveria o fito do lucro e os atores agiriam escrupulosamente, havendo, por conseqüência, o desaparecimento dos litígios entre indivíduos e mesmo entre grupos sociais. Sem controvérsias, o Leviatã tornar-se-ia prescindível.

Na primeira situação as condições materiais da existência moldam a superestrutura social de modo a manter a titularidade do lucro; na segunda, a infraestrutura molda a superestrutura tornando-a mais leve, sem o peso das normas mantenedoras de ambiente competitivo.

Todavia, essa relação entre as condições materiais da existência e as normas, ou conjuntos de normas denominados de instituições, não tem só uma mão de direção. É possível imaginar que instituições normativas moldem a atividade econômica. A toda evidência, uma norma será eficaz, isto é, as pessoas se comportarão do modo determinado por ela, se a latere do poder político estiver o poder ideológico. Significa dizer que não apenas por medo da coerção, mas também por estarem convencidas quanto a oportunidade e conveniência do conteúdo da norma, as pessoas conformarão suas condutas a ela.

O poder político sobre o econômico (meios de produção, mercado) pode excluir alguns bens da competição, torná-los res extra commercium. O fato de nem tudo estar à venda demonstra que as escolhas políticas determinam as condições subjetivas e objetivas do mercado. O que será transformado em mercadoria é decisão política pura, ainda que difusa.


O rol do que é comerciável varia ao longo do espaço e do tempo. A decisão política e a opinião ideológica nem sempre são acordes. George Brockway diz que “a moeda não é uma mercadoria comum, feito o pão.” (3), porque a concorrência entre os Bancos aumenta a taxa de juros e, se o dinheiro encarecer, os banqueiros prosperam e a economia definha. A educação também é mercadoria incomum, pois “quando as faculdades competem por estudantes (com exceção de um pequeno punhado da elite), elas o fazem mais eficazmente relaxando os padrões.” (4) A competição piora a qualidade do ensino e, ao cabo, enfraquece a economia.

Ex parte consumptoris deseja-se que não haja vitória de um dos competidores e o jogo encerre-se. Os benefícios da competição devem continuar. Esse objetivo é exógeno ao mercado a ser ordenado, posto em equilíbrio. O consumidor, intra-mercado, é um agente com pouco poder econômico. Extra-mercado ele é cidadão, agente de poder político. Não há equilíbrio cósmico, sim, taxionômico, do mercado. (5)

Blocos Econômicos

A articulação entre Estados para a formação de blocos econômicos é ato de cooperação política que tem por desiderato a ampliação da escala e a diminuição dos custos de transação provocados pelas barreiras normativas entre as soberanias. As fronteiras jurídicas são mais impermeáveis que as físicas. Na formação do bloco econômico intenta-se ampliar o alcance territorial do princípio da boa-fé, sinalizando respeito à qualidade ética e técnica das decisões dos demais Estados. (6) A cooperação intra-bloco torna politicamente efetiva a presunção jurídica da boa-fé.

Os empeços ao comércio, representados por uma miríade de certificações, traduções, inspeções, são sintomas da presunção de má-fé. É direito dos indivíduos o tratamento assentado sobre a presunção de boa-fé de seus atos. Essa presunção é, também, direito fundamental de um povo.

Com a assunção cultural da boa-fé deve-se tomar em consideração, nas decisões sobre concorrência, também os interesses dos consumidores dos Estados que integram o bloco econômico. Agir com a mesma atenção e presteza deferida aos consumidores nacionais. Comitas inter gentes, para consolidar confiança entre os Estados.

As instituições de regulação da concorrência devem velar para que se exporte ética, não predação. A atividade econômica moderna é um continuum, um processo sempre em movimento. O comércio não é uma aventura à Marco Pólo. Atitudes eticamente lastreadas propiciam relacionamento com razoável expectativa de reciprocidade. Os móbeis hobbesianos da natureza humana podem ser aplacados diante da redução do custo transacional decorrente da reiteração de condutas virtuosas.

A cooperação interestatal não enfraquece a soberania; ao contrário fortalece-a, pois é amparo entre iguais que se coordenam para alcançar resultado benéfico partilhável por todo o povo.

Todavia, esse discurso é irrelevante quando o poder político se sente ameaçado. Agricultura, indústria e serviços rudimentares (sem qualidade e com preços altos), mas sob controle. A ampliação da concorrência, com a criação de facilidades para a circulação de bens e serviços, vai ao encontro dos consumidores, na sua micro-economia.

Sob a perspectiva do poder político, isso pode significar a transferência de decisões econômicas para outras soberanias, o que é causa de enfraquecimento, quiçá, ruína, de um centro político. Nessas circunstâncias, ocorre defesa do mercado, não dos consumidores. A defesa da concorrência pode colidir com a defesa comercial.

Por mais que se deseje, não há concorrência mundial entre empresas privadas. A concorrência ocorre entre economias, porque os fluxos de poder econômico alteram as correlações de poder político.

A fraqueza do Protocolo de Fortaleza

O político estatui o jurídico, que por sua vez enquadra o econômico. A indefinição política do Mercosul faz o Protocolo de Fortaleza (7) , bela edificação jurídica, ficar assentada sobre areia. Não é possível colocar peso sobre o engenho jurídico sem que o solo político dê sustentação.

A referência quase invejosa à experiência européia não serve de guia para os passos do Mercosul. Philippe Manin, prefaciando obra de Deisy Ventura, ressaltou as diferenças entre os dois projetos e concluiu:

“A assimetria das duas estruturas não é, então, apenas fruto do acaso ou, no que concerne ao Mercosul, de uma ambição modesta. Certamente, no caso deste último, pode-se sempre perguntar qual teria sido o resultado de um maior voluntarismo institucional; talvez maior eficácia e mais resultados, mas também o risco de desintegração em razão do enxerto de obrigações excessivas sobre uma realidade rebelde.” (8)


A supranacionalidade de alguns aspectos do processo de integração européia é parte da engenharia política que modificou a distribuição e exercício do poder entre os Estados envolvidos. Essa redistribuição de poder está acontecendo na Europa porque o lento enfraquecimento do raio de autonomia dos Estados é compensado pelo fortalecimento consentido da União. Pensa-se em Estados Unidos da Europa como uma realidade possível e, mais que isso, suficiente para garantir a paz e a prosperidade.

No Mercosul, o trabalho é de longo curso sem que se tenha hoje, nem como horizonte remoto, a idéia da unificação política. Ao afastar-se o modelo europeu, fica mais fácil imaginar a construção, calcada sobre forte confiança recíproca (cujo desenvolvimento é mais fácil tendo em conta a identidade cultural), de uma organização horizontal, na qual não haja um centro hierárquico. Uma organização em rede, sem os custos políticos e econômicos da verticalização do poder. (9)

Existe a percepção da relação entre a política e a economia. A precedência de uma sobre a outra. A questão de princípio parece bem resolvida nesse aspecto. A discussão ocorre quanto a aspectos estratégicos, ou seja, quanto ao ritmo do processo. Quanto tempo é razoável para o desenvolvimento do trabalho de preparação dos alicerces políticos? Qual o atraso do processo de integração regional causado pela insegurança econômica?

Em que pese o reconhecimento das responsabilidades dos agentes políticos dos Estados envolvidos, fica na intelecção das pessoas que pensam o assunto da integração o sentimento de que ela é tardia, que há décadas deveriam estar construídos os caminhos físicos e políticos que propiciassem a aproximação produtiva e não meramente retórica entre os Povos latino-americanos.

Notas de rodapé

(1) “Um exemplo fundamental do absurdo da tentativa de considerar a competição como a pedra de angular da organização empresarial é o dispositivo contido no Clayton Act segundo o qual uma companhia pode envolver-se em determinadas práticas comerciais que seriam de outro modo definidas como desleais se ela puder demonstrar que assim procede para enfrentar a competição. Dificuldades e absurdos similares surgiriam se, ao invés, tivéssemos a cooperação como a pedra de toque. Todos nós somos interdependentes, e portanto a cooperação é tão universal quanto a competição; existe honra mesmo entre os ladrões. Tribunais devotados à idéia de cooperação ficariam, ademais, emaranhados com a antiga noção do direito consuetudinário de conspiração, em particular com a conspiração para limitar o comércio.” BROCKWAY, George P. A Morte do Homem Econômico. São Paulo: Nobel, 1995, p. 171.

(2) NARDIN, Terry. Lei, Moralidade e as Relações entre os Estados. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.20.

(3) BROCKWAY, George. A Morte do Homem Econômico. São Paulo: Nobel, 1995, p. 201.

(4) BROCKWAY, op cit p. 196.

(5) Taxis é uma vontade exógena ao objeto a ser ordenado, posto em equilíbrio. Kosmos – o equilíbrio é endógeno, não resultante de ato de uma volição finalística. A ordem é produto de um devir no qual os agentes não compreendem os fins e não têm a intenção de alcançar esse ou aquele objetivo. As instituições são resultado de ação humana voluntária, porém ateleológica. Le monde va da lui-même .Vide HAYEK, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade. São Paulo: Visão, 1985.

(6) Art. 422, Código Civil – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé.

(7) Tratado firmado no âmbito do Mercosul, em 1996, que tem por objeto a defesa da concorrência. A internalização se deu por meio do Decreto 3602 de 18.09.00.

(8) VENTURA, Deisy. As Assimetrias entre o Mercosul e a União Européia. São Paulo: Manole, 2003, prefácio de Philippe Manin, XX.

(9) “Uma rede, de acordo com Shumpei Kumon, é “aquela em que (…) o tipo principal de ação recíproca é orientado pelo consenso, pela indução”, e na qual os participantes têm algum grau de relacionamento contínuo, embora informal entre si.” FUKUYAMA, Francis. Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 220.

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