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STF rejeita pedido do PSDB para Lula explicar declarações

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7 de março de 2005, 17h40

O ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, mandou arquivar o pedido de explicações do PSDB contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele rejeitou a interpelação, autuada como Petição, feita pelo partido.

O pedido foi motivado pelo discurso de Lula feito no Espírito Santo. O presidente disse que, pouco tempo depois de assumir o poder, foi informado por um alto funcionário de que houve corrupção em processos de privatização do governo Fernando Henrique Cardoso. A informação é do site do STF.

O ministro entendeu que não houve ofensas equívocas ou ambíguas que pudessem estar endereçadas ao PSDB no discurso do presidente. Ele também observou que o partido não poderia ser parte legítima para propor uma ação penal por crime contra a honra.

Sepúlveda Pertence afirmou que não existe fato concreto ofensivo à reputação do PSDB imputável ao presidente da República, por referir-se, durante o discurso, a suposto processo de corrupção no governo anterior.

Leia a íntegra da decisão

PETIÇÃO 3.349–3 DISTRITO FEDERAL

DESPACHO: O PSDB — Partido da Social Democracia Brasileira, a título de “medida preventiva em relação a ação penal por crime de difamação”, requer a “notificação” do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, para “prestar as explicações necessárias”, em especial para esclarecer e extirpar as ‘obscuridades, ambigüidades e equivocidades” que afirma divisar em passagem transcrita de discurso que o Requerido pronunciou em solenidade pública em Jaguaré, no Espírito Santo, no dia 24 de fevereiro último.

2. O Senhor Presidente da República, requerido, ofereceu memorial da lavra do em. Advogado–Geral da União, Ministro Álvaro Ribeiro Costa — cuja juntada por linha determinei — no qual, em síntese, alega a inadmissibilidade da interpelação, por ilegitimidade do Partido requerente e por impossibilidade jurídica do pedido.

3. Este, o trecho do discurso do Requerido, no qual se conteria a ofensa ao Requerente, objeto do pedido de explicações:

“(…) Eu me lembro de um momento, logo no início do governo, quando um alto companheiro meu, de uma função muito importante, foi prestar contas de como tinha encontrado a instituição em que ele estava trabalhando — e me permitam, aqui, não dizer o nome da instituição — ele me dizia simplesmente o seguinte: “Presidente, a nossa instituição está quebrada, estamos falidos. O processo de corrupção que aconteceu, antes de nós, foi muito grande. Algumas privatizações que foram feitas em tais lugares levaram a instituição a uma quebradeira.

Eu disse ao meu companheiro: “olhe, se tudo isso que você está me dizendo é verdade, você só tem o direito de dizer para mim. Para fora, feche a boca e diga que nossa instituição está preparada para ajudar no desenvolvimento deste país”. Ele não entendeu. E eu dizia para ele” “é isso mesmo”, porque se nós, com três dias de posse, ou com três meses de posse, saíssemos pelo Brasil vendendo a idéia de que determinadas coisas importantes em que a sociedade brasileira acredita, se determinadas instituições de que a República tanto necessita, como uma espécie de alavanca para o desenvolvimento deste país, se a gente saísse dizendo que estavam está quebradas, eu me pergunto: que mensagem nós íamos passar à sociedade? Tanto à sociedade interna, quanto à sociedade externa?

Isso poderia ser bom se eu tivesse tomado a decisão de achincalhar o governo que substituí. E eu tomei uma decisão muito pessoal e fiz com que o governo assumisse essa posição, de que o presidente que tinha deixado o governo, tinha feito aquilo que ele entendia que deveria fazer, e eu, ao invés de ficar preocupado com o que ele deixou de fazer, deveria me preocupar com o que eu tinha que fazer neste país.

Portanto, se tinha alguma coisa que não estava funcionando, não era mais da responsabilidade de quem tinha deixado o governo, mas era da responsabilidade de quem tinha assumido o governo. Aliás, meu querido Carlos Wilson, eu, numa linguagem mais popular, sempre digo o seguinte: quando a gente casa com uma viúva, a gente não recusa a família; a gente casa com a viúva, com os filhos, com a mãe, com o pai e com as virtudes e os defeitos que a pessoa possa ter. E a recíproca é verdadeira: quando a mulher casa com o viúvo, também, leva a penca de problemas que, no primeiro momento, pensa que são soluções. Mas isso faz parte da vida”.

4. Entende o partido requerente que explicações se fazem necessárias, porque:

“Ao fazer referência ao governo que o antecedeu, atingindo diretamente a imagem e a reputação do PSDB, recusou–se o Presidente da República a revelar a instituição sobre a qual se referia, onde haveria ocorrido, segundo o mesmo, ‘grande processo de corrupção'”.


5. Donde, o pedido de “notificação do Sr. Presidente da República para vir prestar as explicações necessárias, em especial para esclarecer e extirpar as obscuridades, ambigüidades e equivocidades presentes nas ofensas, tais como:

a) Se realmente tomou conhecimento de “processo de corrupção grande” e, mesmo assim, não ordenou a sua devida apuração?

b) Em caso positivo, faz–se necessário, ante a obscuridade latente, que seja esclarecido qual o ‘alto companheiro’ que, supostamente ao “prestar contas de como tinha encontrado a instituição em que ele estava trabalhando” haveria afirmado a existência de eventual “processo de corrupção”?

c) Ainda em caso de ser positiva a resposta à indagação formulada na alínea ‘b’, informe o Presidente da República onde se deram os eventuais fatos?

d) Finalmente, qual o propósito ou intenção da utilização do termo “achincalhar” o governo anterior?”

…II

6. Cuida–se, pois, de medida cautelar preparatória de ação penal por crime comum imputado ao Presidente da República, cujo processo e julgamento, se proposta, serão da competência originária do Supremo Tribunal Federal, foro especial por prerrogativa de função do dignitário acusado (CF, art. 102, I, b).

7. Deriva daí a competência do Supremo para receber e processar o pedido de explicações de ofensas equívocas (CPen., art. 144), como é da jurisprudência sedimentada do Tribunal (v.g.,HC 67.839, 7.3.90, Madeira, RTJ 131/662; Pet 851–QO, 8.4.94, Celso, RTJ 159/107; Pet 1249–AgRg, 20.3.97, Celso, RTJ 170/60).

…III

8. Prescreve o Código Penal

“Art. 144. Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá–las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.”

9. Não obstante, é incontroverso na doutrina, a começar do grande Hungria([1]) — e concorde a jurisprudência — que, no procedimento preparatório da interpelação para explicações de ofensas equívocas não cabe ao juiz decidir sobre a significação penal de recusa de prestá–las ou sobre serem satisfatórias, ou não, aquelas que prestadas.

10. O que, entretanto, não ilide evidentemente o poder–dever de decidir, antes de ordenar a interpelação requerida, da sua admissibilidade processual, que implica pronunciamento sobre os pressupostos do pedido da medida cautelar preparatória ou a respeito da viabilidade da prenunciada ação penal, a cuja eventual propositura vise o pedido de explicações: é firme nesse sentido a orientação do Supremo Tribunal.

11. Assim, já se decidiu, é de indeferir o pedido de explicação, se ausentes os pressupostos de “dubiedade, equivocidade ou ambigüidade, às expressões que dele sejam objeto ([2]).

12. Igualmente, entende o Supremo ser de negar seguimento ao pedido de explicações em juízo se, de logo, se verifica inviável a ação penal anunciada, seja, v.g. por falta de legitimação ativa ao requerente, seja porque coberta a suposta ofensa pela imunidade do agente ([3]).

…IV

13. Dessa última hipótese — a imunidade do agente –, é, desde logo, de afastar o caso.

14. Certo, não dispõe o Presidente da República da imunidade material dos parlamentares, que exclui a criminalidade dos atos típicos que cometam, “por quaisquer de sua opiniões palavras e votos” (CF, art. 53).

15. Preceitua, contudo, a Constituição:

“Art. 86 (…)

§ 4º. O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.

16. Fosse o caso, caberia indagar se, enquanto dure, essa imunidade temporal resguardaria o Presidente da República da interpelação para prestar explicações por ofensas equívocas: mas, à primeira vista, não é.

17. As mesmas razões, a contrario sensu, por que, em atenção ao tempo da comunicação de massas que se vive, se estendeu a inviolabilidade dos parlamentares muito além dos discursos pronunciados nas Casas do Congresso Nacional (v.g. Inq 390, Pertence, RTJ 129/970), levam a concluir que a imunidade temporária do Presidente da República à persecução penal por “atos estranhos ao exercício de suas funções” (CF, art. 86, § 4º) ([4]) não se pode estender a tudo quanto faça o Chefe de Estado fora ou além dos atos formais de exercício de suas funções presidenciais.

18. Considero manifesto que, em tese, deva poder o Presidente da Republica responder por eventuais crimes que cometa, posto que durante o exercício do mandato, não apenas mediante atos formais que, nessa condição, pratique ou deixe de praticar, mas também por aqueles que tenham laço de implicação recíproca com a sua função presidencial.


19. “Somente estão abrangidas pelo preceito inscrito no § 4º do art. 86 da Carta Federal” — anotou, com precisão o em. Ministro Celso de Mello ([5]) “as infrações penais comuns eventualmente cometidas pelo Chefe do Poder Executivo da União que não guardem — ainda que praticadas na vigência do mandato — qualquer conexão com o exercício do oficio presidencial“.

20. O caso, no entanto, recorde–se, é de pretendida difamação praticada pelo Presidente da República no discurso que proferiu em solenidade à qual compareceu nessa condição: patente, assim, em tese, que as ofensas acaso então perpetradas não estariam cobertas pela imunidade temporal do art. 86, § 4º, da Constituição.

21. Raia pela hipocrisia, além do simples excesso de formalismo, desconhecer que, no mundo de hoje, o exercício das funções de Presidente da República —- quiçá, antes mesmo que os de assinatura de atos formais de sua competência —- compreende aqueles pronunciamentos em razão do mandato que exerce e sobre temas a ele pertinentes e, por isso mesmo, fatalmente destinados à difusão nacional pela mídia.

22. Não hesito, por tudo isso, em firmar que tudo quanto diga o Presidente da República sobre matéria pública excede à imunidade temporal da persecução penal de seus atos estranhos ao exercício de suas funções, outorgada pelo art. 86, § 4º, da Constituição.

23. Dita pelo Presidente da República, portanto, em público e sobre matéria que não seja estritamente privada, nenhuma palavra se livra da imediata responsabilidade penal por eventual crime comum.

…V

24. Disso não cabe extrair, porém, seja o juízo penal, à guiza da persecução de crimes contra a honra, a sede própria ao deslinde de polêmicas acerca de críticas ou acusações difusas entre protagonistas individuais ou, menos ainda, entre correntes políticas adversas, na controvérsia cotidiana da qual se tece a ambiência do regime democrático.

25. Daí resulta no caso a patente carência de legitimação ativa do Partido requerente para a ação penal privada contra o Presidente da República e, conseqüentemente, para o pedido de explicações em juízo sobre eventual equivocidade de ofensas que, a existirem, não se dirigiriam à agremiação partidária, ainda quando se pudessem reputar casualmente endereçadas a filiados seus.

26. A propósito da hipótese similar de interpelações requeridas por entidades de classe é uníssona e categórica a orientação do Tribunal.

27. O leading case dos últimos anos está na decisão plenária que confirmou a decisão do relator que, liminarmente, negara seguimento ao pedido de explicações da associação dos juízes classistas da Justiça do Trabalho a respeito de declarações do Ministro da Justiça acaso ofensivas da categoria: na ementa se consignou ([6]):

“Somente quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. A utilização dessa medida processual de caráter preparatório constitui providência exclusiva de quem se sente moralmente afetado pelas declarações dúbias, ambíguas ou equívocas feitas por terceiros.

Tratando–se de expressões dúbias, ambíguas ou equívocas alegadamente ofensivas, que teriam sido dirigidas aos Juízes classistas, é a estes —- e não à entidade de classe que os representa —- que assiste o direito de utilizar o instrumento formal de interpelação judicial.

O reconhecimento da legitimidade ativa para a medida processual da interpelação judicial exige a concreta identificação daqueles (os Juízes classistas, no caso), que se sentem ofendidos, em seu patrimônio moral (que é personalíssimo), pelas afirmações revestidas de equivocidade ou de sentido dúbio”.

28. O julgado serviu de parâmetro para a decisão ulterior de espécies semelhantes.

29. Assim, a da interpelação requerida pela AMB — Associação dos Magistrados Brasileiros contra o Senador Antônio Carlos Magalhães, que teria aludido em termos pejorativos à magistratura nacional; assentou–se ([7]):

“Pedido de explicação em juízo como medida preparatória de ação penal relativa a delitos contra a honra.

Não tem legitimidade ativa para requerê–lo entidade de classe que age em defesa da honra de todos ou de alguns ou de um dos seus associados, porquanto a legitimidade ativa para esse pedido pertence, individualmente, a cada associado, por se tratar de ato personalíssimo do que se sente ofendido. Precedente do Plenário da Corte AGRPET 1.249.”

30. Mais recentemente, o em. Ministro Gilmar Mendes —- também invocando o que se decidira na Pet 1249–AgRg –, por decisão individual, negou seguimento a pedido de explicações ao atual Presidente da República formulado pela associação dos magistrados do Estado de Pernambuco, a propósito da alusão notória à suposta “caixa preta do Poder Judiciário; depois de referir o precedente, limitou–se S. Exa. a aduzir:


“A própria inicial aponta como potencialmente ofendidos os Juízes de Direito e os Desembargadores do Estado de Pernambuco. Não será, por certo, a AMEPE o ente legitimado a propor a eventual ação penal. Assim, na linha firmada por esta Corte no Agravo Regimental na Pet 1249, negou seguimento a esta interpelação”.

31. Não importa que, no caso, não se cuide de associação de classe, mas, sim, de um partido político.

32. Acaso se queira inferir da alusão incidente do Requerido a um “processo de corrupção que aconteceu, antes de nós, foi muito grande”, de resto, atribuída no discurso a terceiro — a eventual ofensa ao PSDB, o que decorreria — não se diz, mas é de entender –, do fato notório de ser o partido ao qual filiado o honrado Presidente da República anterior.

33. É manifesto, no entanto, que nenhuma norma jurídica atribui ao partido ao qual pertença o Presidente da República de determinado período —- mormente, no presidencialismo de coalizão que praticamos —-, o direito subjetivo de pretender–se ofendido pela referência —- tanto mais quanto incidente, atribuída a terceiro e condicionada a que acaso fosse verdade — ao eventual “processo de corrupção que aconteceu antes de nós”.

…VI

34. De resto, na polêmica infinda sobre poder caracterizar–se o crime contra a honra de uma pessoa jurídica, o que se pode dar por assentado é a sua inadmissibilidade, quando se trate de injuria ([8]), ao mesmo passo que é crescente a aceitação de sua possibilidade, se se trata de difamação ([9]).

35. Mas, para caracterizar–se a difamação, ainda que em tese, há de ter–se a imputação ao sujeito passivo de fato concreto ([10]) ofensivo à reputação do sujeito passivo.

36. Ora, na espécie, não há cogitar de fato concreto ofensivo à reputação do PSDB —- menos ainda, imputável ao Presidente da República —- na referência, em seu discurso, a que alguém se houvesse referido a “processo de corrupção”, acaso ocorrido antes do governo atual, em instituição a cuja identificação ali explicitamente se negou o interpelado.

…VII

37. É expressivo notar, finalmente, que o Requerente mesmo dá conta, nas três primeiras indagações que pretende endereçar ao Requerido, de que, na verdade não busca desfazer ofensas equívocas que a ele, PSDB, houvesse dirigido o Presidente da República.

38. A primeira — “Se realmente tomou conhecimento de “processo de corrupção grande” e, mesmo assim, não ordenou a sua devida apuração –, tende a obter confirmação de omissão eventual do Chefe do Poder Executivo a deveres funcionais seus, o que, à evidência, não visa a esclarecer ofensa a partido político algum.

39. A segunda — “que seja esclarecido qual o ‘alto companheiro’ que, supostamente ao “prestar contas de como tinha encontrado a instituição em que ele estava trabalhando” haveria afirmado a existência de eventual “processo de corrupção” — e a terceira — “em caso de ser positiva a resposta à indagação formulada na alínea ‘b’, informe o Presidente da República onde se deram os eventuais fatos” — o que se pretende é a delação do autor e da identificação de imputações evidentemente não atribuíveis ao Presidente da República — que, ao contrário, a eles só se refere como “se tudo isso que você está me dizendo é verdade” — mas a terceiro, que o Requerido se escusou de identificar.

40. A tanto, evidentemente, não se presta a interpelação para explicações em juízo a respeito de ofensas equívocas: não é a interpelação substitutiva da investigação, pelos meios adequados, de possíveis omissões funcionais do Presidente da República, nem, menos ainda, para obter do interpelado que informe o que declaradamente não quis informar.

41. O último quesito, por fim — “qual o propósito ou intenção da utilização do termo “achincalhar” o governo anterior”, tem por objeto que o interpelado explicasse intenção ou propósito — o de “achincalhar” o governo anterior” –, que, em seguida, no mesmo discurso, ele afirma não ter tido.

42. De qualquer forma, nada, nas questões postas pelo partido interpelante, lhe diz respeito.

…VIII

43. De tudo, seja por inexistência, no discurso questionado de ofensas equívocas ou ambíguas que lhe pudessem eventualmente estar endereçadas, seja, em conseqüência, por falta de legitimação ativa do Partido para a persecução penal delas — esclarecidas ou não –, nego seguimento ao pedido de interpelação.

Brasília, 7 de março de 2005.

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE — Relator

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