‘Força maior’

Greve de ônibus justifica falta em audiência trabalhista

Autor

6 de março de 2005, 10h01

O processo de reclamante — que falta a audiência na Justiça do Trabalho em dia de greve de transporte coletivo — não pode ser arquivado. O entendimento é dos juízes da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP). Para eles, a paralisação geral dos transportes é acontecimento inevitável e justifica a ausência da parte em juízo.

A Turma anulou sentença de primeira instância, que determinava o arquivamento do processo aberto por um ex-empregado do Condomínio Centro Empresarial Mário Garnero.

Ele entrou com ação na 75ª Vara do Trabalho de São Paulo reclamando verbas trabalhistas decorrentes de sua demissão. Foi marcada audiência una (instrução, conciliação e julgamento) para o dia 3/2/2003. Ele faltou.

O juiz da vara determinou o arquivamento do processo, pois o artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê que “o não-comparecimento do reclamante à audiência importa o arquivamento da reclamação, e o não-comparecimento do reclamado importa revelia, além de confissão quanto à matéria de fato”. O parágrafo único do mesmo artigo ressalva que “ocorrendo, entretanto, motivo relevante, poderá o presidente suspender o julgamento, designando nova audiência”.

O reclamante recorreu do arquivamento ao TRT-SP. Alegou que, naquela data, “houve greve dos motoristas de ônibus, tendo sido amplamente noticiado que os trabalhadores deixaram de prestar serviços, com o apoio dos donos das empresas de transporte coletivo, que pretendiam frustrar a intenção da Prefeitura de modificar o sistema de remuneração das empresas”.

O ex-empregado do condomínio acrescentou que “reside em Santo Amaro, não tem carro próprio e não tinha condições materiais de se deslocar de sua casa ao Fórum trabalhista e que dependia do transporte coletivo para comparecer à audiência, não podendo ser penalizado com o arquivamento da reclamação”.

De acordo com o relator do Recurso Ordinário no TRT-SP, juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros, o reclamante juntou ao processo jornais e documentos que provam que, no dia designado para a audiência, houve greve geral dos motoristas e cobradores de ônibus da cidade de São Paulo. Para Trigueiros, o reclamante também foi atingido pela greve.

“Desse modo, está comprovada a ocorrência de força maior a justificar a ausência, uma vez que a paralisação geral do transporte coletivo constitui acontecimento inevitável, e para o qual não concorreu o reclamante, não podendo ser prejudicado com o arquivamento da ação trabalhista por ele intentada”, afirmou o relator.

Trigueiros decidiu que cabe na ação “o conceito de força maior em sentido lato, com aplicação analógica do artigo 501 da CLT, já que feriria o princípio da igualdade perante a lei, o seu reconhecimento da aplicação dessa norma apenas às hipóteses em que se pretenda escusar a responsabilidade do empregador”. O artigo 501 define como força maior “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”. O relator entendeu que o mesmo conceito deve beneficiar empregados.

A 4ª Turma acompanhou o voto do relator, por unanimidade, e anulou a sentença de vara. Assim, haverá nova audiência e o prosseguimento do processo trabalhista.

RO 01862.2002.075.02.00-1

Leia a íntegra do voto

4ª. TURMA

PROCESSO TRT/SP Nº 01862200207502001

AGRAVO DE INSTRUMENTO

AGRAVANTE: ADGENAL ALVES DOS SANTOS

1º AGRAVADO: WILIAN DUARTE

2º AGRAVADO: CONDOMÍNIO CENTRO EMPRESARIAL MÁRIO GARNERO

INDÚSTRIA VILLA

ORIGEM: 7ª VARA DO TRABALHO DE SÃO PAULO

Inconformado com a r. decisão de fls. 97, pela qual foi denegado seguimento ao recurso ordinário por deserto, interpõe o reclamante agravo de instrumento às fls. 99/103, afirmando que requereu o benefício da gratuidade judiciária na petição de interposição do apelo ordinário e que procedeu à juntada da declaração de pobreza, conforme determinado pelo D. Juízo a quo. Afirma que o benefício da assistência judiciária pode ser requerido a qualquer tempo e o Juízo de primeiro grau não poderia deixar de conhecer do pedido. Requer o provimento do presente recurso para que seja reformada a r. decisão agravada, deferindo-se a Justiça gratuita, bem como seja destrancado o recurso ordinário.

Sem contraminuta.

Parecer do D. Ministério Público do Trabalho, às fls. 112, afirmando que não se verifica hipótese de intervenção ministerial obrigatória, em razão das partes, ficando ressalvada manifestação posterior, atendendo à solicitação do Juiz Relator ou a critério do órgão ministerial presente em sessão de julgamento, nos termos do art. 83, II e VII, da Lei Complementar nº. 75, de 20 de maio de 1993.

É o relatório.


V O T O

Conheço do presente agravo de instrumento, pois estão atendidos os requisitos de admissibilidade.

DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA

O agravante, na petição de interposição do recurso ordinário, às fls. 85, declarou não ter condições de pagar as custas processuais nos termos da Lei nº. 7.115/83 e também firmou declaração de pobreza (fls. 96), declarando sob as penas da lei ser pessoa pobre na acepção jurídica do termo.

É o quanto basta para a concessão do benefício, em vista do que dispõe a Lei 1060/50, em seu artigo 4º –“a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.” – de aplicação combinada com o artigo 790, § 3º da CLT: “É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família”.

A concessão da Justiça Gratuita no processo trabalhista sempre teve espectro mais amplo do que aquele contemplado na Lei 5.584/70. É certo que essa norma, quando de sua edição, no início da década de 70, produziu alguma controvérsia a respeito dos limites da assistência judiciária e isenção de custas no âmbito da Justiça do Trabalho.

Mesmo sob a égide do Regime de Exceção, predominantemente esta Justiça entendeu que os benefícios da Justiça Gratuita poderiam ser concedidos sem o confinamento do caput do art. 14 da Lei 5.584/70, considerando-se a incidência da Lei 1.060/50 nos processos trabalhistas e sempre que o trabalhador afirmava condição de pobreza.

Esse entendimento, que já era predominante no período que antecedeu a Constituição Federal de 1988, à luz da Lei 1.060/50 e do art. 789, § 9º da CLT (com a redação dada ao parágrafo pelo Decreto-lei 229, de 28/02/67) tornou-se pacífico a partir da promulgação da nova Carta Magna, notadamente em face do disposto no artigo 5º, em seus incisos XXXIV, “a” (“o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”) e LV (“aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). A edição da Lei nº 10.537, de 27-8-2002, que deu nova redação ao artigo 790 da CLT, fez numerus clausus da controvérsia, já que não menciona a assistência sindical nem mantém a restrição do art. 14 da Lei 5.584/70, que se tem por revogado em seu caput e parágrafos no que restringem a concessão do benefício em tela, em face da novel legislação, que afasta as restrições anteriores.

Não nos parece razoável conceber que justamente o segmento mais social da jurisdição seja o que vá impor as maiores restrições à concessão da Assistência Judiciária Gratuita, confinando-a aos feitos sob patrocínio sindical, e praticamente obrigando o trabalhador a propor a ação por entidades de classe e não sob patrocínio de advogados livremente constituídos.

Ora, o princípio que inspira a Assistência Judiciária Gratuita é o de assegurar o amplo acesso ao Judiciário aos mais necessitados, por meio da isenção de encargos sem a qual restaria inviabilizado o exercício do direito de ação constitucionalmente assegurado. Ad argumentandum, ainda que o princípio constitucional estivesse em aparente conflito com a norma de hierarquia inferior (in casu, o art. 14 da Lei 5.584/70), prevaleceria aquele, tanto mais por assegurar condição mais ampla e benéfica para o trabalhador (regra da prevalência da condição mais benéfica).

A ruptura com o modelo vigente no período de exceção, que mesclava autoritarismo, supressão de direitos individuais, assistencialismo sindical e acesso restrito ao Judiciário, se deu com a Carta Magna de 88, não sem motivo chamada de “Constituição Cidadã”, que adotou o novo paradigma da democracia social, com amplo acesso dos trabalhadores – democrático e gratuito, ao Judiciário, em plena harmonia com o indeclinável respeito ao direito individual de livre escolha do patrocínio da causa.

Sem dúvida, a recusa dos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita e a conseqüente negativa da prestação jurisdicional navegam em sentido oposto ao Constitucionalismo Social e ao perfil histórico desta Justiça especializada.

Vale reproduzir manifestação jurisprudencial que enfatiza o amplo direito à jurisdição como expressão da democracia:


“Agravo de Instrumento. Assistência judiciária gratuita. Custas. Para tornar-se beneficiário da assistência judiciária gratuita, suficiente é a declaração de estado de miserabilidade, a qual se presume verdadeira (art. 1º da Lei nº 7115/83 e art. 4º , caput e parágrafos da Lei nº 1060/50). Na sociedade democrática, a franquia ao Judiciário deve ser ampla e irrestrita, com a garantia não só do pleno acesso, mas, igualmente, da integral prestação jurisdicional”. Ac (unânime) TRT 3ª Reg. 3ª T (AI 325/01), Relª Juíza Maria Laura F. Lima de Faria, DJ/MG 12/06/01, p. 8.” Cit in “Dicionário de Decisões Trabalhistas’, 33ª Edição, B. Calheiros Bomfim, Ementa 193, pág. 63.

O fato de a lei considerar a concessão como uma faculdade não afasta o dever do magistrado, de concessão da Justiça Gratuita, sempre que requerida oportunamente e preenchidas minimamente as condições prescritas em lei. A negativa, por vezes voluntariosa e injustificada, acaba por transformar a prerrogativa em capricho, e assim, em fonte de intolerável arbítrio, em detrimento da cidadania e dos preceitos constitucionais que asseguram o direito ao due process of law.

Dessa forma, concedo ao autor os benefícios da Assistência Judiciária Gratuita.

Estando o Autor no gozo dos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita e isento de recolhimento de custas, tenho como presentes todos os requisitos de admissibilidade para conhecimento do Recurso Ordinário.

Do exposto, conheço do agravo de instrumento e, no mérito, dou-lhe provimento para determinar o normal processamento do recurso interposto, o qual passo a apreciar.

EMENTA: ARQUIVAMENTO. AUSÊNCIA DO RECLAMANTE. GREVE GERAL DOS TRANSPORTES COLETIVOS. FORÇA MAIOR RECONHECIDA. A paralisação geral do sistema municipal de transportes coletivos constitui acontecimento inevitável, para o qual não concorreu o reclamante, configurando motivo de força maior em face do qual não pode ser prejudicado com o arquivamento da ação trabalhista por ele intentada. Inteligência do artigo 501 da CLT. Recurso a que se dá provimento para anular a sentença de arquivamento e determinar a regular tramitação do feito.

RELATÓRIO

Insurge-se o reclamante contra a r. sentença de fls. 84, pela qual foi arquivado o feito trabalhista ante o não comparecimento do reclamante à audiência designada para o dia 03/02/2003. Afirma que no dia da audiência, na cidade de São Paulo, houve greve dos motoristas de ônibus, tendo sido amplamente noticiado que os trabalhadores deixaram de prestar serviços, com o apoio dos donos das empresas de transporte coletivo, que pretendiam frustrar a intenção da Prefeitura de modificar o sistema de remuneração das empresas. Declara o reclamante que reside em Santo Amaro, não tem carro próprio e não tinha condições materiais de se deslocar de sua casa ao Fórum trabalhista e que dependia do transporte coletivo para comparecer à audiência, não podendo ser penalizado com o arquivamento da reclamação. Requer o processamento e provimento do apelo ordinário para, anulando-se a r. sentença, determinar o processamento da ação trabalhista.

Sem contra-razões.

Parecer do D. Ministério Público do Trabalho, às fls. 112, afirmando que não se verifica hipótese de intervenção ministerial obrigatória, em razão das partes, ficando ressalvada manifestação posterior, atendendo à solicitação do Juiz Relator ou a critério do órgão ministerial presente em sessão de julgamento, nos termos do art. 83, II e VII, da Lei Complementar nº. 75, de 20 de maio de 1993.

É o relatório.

VOTO

Conheço do recurso ordinário, pois estão preenchidos os pressupostos de admissibilidade.

DO ARQUIVAMENTO DA AÇÃO TRABALHISTA

Diante do não comparecimento do reclamante à audiência designada para o dia 03/02/2003, foi arquivada a ação trabalhista, nos termos da r. sentença de fls. 84.

Entende o autor que tal decisão não pode subsistir, pois naquele dia foi iniciada a greve geral dos motoristas de ônibus e cobradores no município de São Paulo, atingindo todos os bairros da cidade e impedindo que se deslocasse até o Fórum trabalhista. Além de não possuir carro próprio, declara o reclamante que não tinha condições materiais de fazer uso de outro meio de locomoção e que dependia do transporte coletivo.

Requer o provimento do recurso ordinário para que seja anulada a r. sentença, permitindo-se o processamento da ação trabalhista.

Com razão o reclamante.

O autor comprovou que no dia designado para a audiência, ou seja, em 03/02/2003, houve greve geral dos motoristas e cobradores de ônibus da cidade de São Paulo, como se vê dos documentos juntados às fls. 88/91.

Nos jornais acostados às fls. 91 (“Folha de São Paulo”, “Agora São Paulo” e o “Estado de São Paulo”), está noticiada a greve geral dos motoristas e cobradores de ônibus, tendo sido destacado no Jornal “Folha de São Paulo”, em 04/02/2003, que: “os motoristas e cobradores de ônibus de São Paulo começaram uma paralisação geral ontem para discutir pendências trabalhistas e pressionar por mudanças na licitação do futuro sistema de transporte coletivo – cuja entrega dos envelopes estava marcada para ontem, mas que teve sua continuidade suspensa pela prefeitura.”

Também os documentos de fls. 88/90 apontam que, efetivamente, no dia 03/02/2003 ocorreu a referida paralisação geral do transporte coletivo em São Paulo. Assim sendo, o reclamante, que reside no Bairro de Santo Amaro, também foi atingido pelo movimento paredista, restando impossibilitado o seu comparecimento à audiência designada.

Desse modo, está comprovada a ocorrência de força maior a justificar a ausência, uma vez que a paralisação geral do transporte coletivo constitui acontecimento inevitável, e para o qual não concorreu o reclamante, não podendo ser prejudicado com o arquivamento da ação trabalhista por ele intentada. Incide à espécie o conceito de força maior em sentido lato, com aplicação analógica do artigo 501 da CLT, já que feriria o princípio da igualdade perante a lei, o seu reconhecimento da aplicação dessa norma apenas às hipóteses em que se pretenda escusar a responsabilidade do empregador.

Assim sendo, dou provimento ao recurso ordinário para, anulando a r. sentença de fls. 84, determinar o retorno dos autos à Vara de origem, com designação de nova audiência e conseqüente intimação das partes, com regular tramitação do feito trabalhista.

Do exposto, conheço do recurso ordinário do reclamante e, no mérito, DOU-LHE PROVIMENTO para anular a r. sentença de origem e determinar o retorno dos autos à instância de primeiro grau, devendo ser designada nova audiência com a conseqüente intimação das partes, dando-se prosseguimento e regular tramitação ao feito trabalhista, tudo nos termos da fundamentação deste voto que integra o presente dispositivo.

RICARDO ARTUR COSTA E TRIGUEIROS

Juiz Relator

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!