Admirável mundo novo

Lei de Biossegurança é frágil e possui lacunas, dizem especialistas.

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5 de março de 2005, 9h57

O projeto de lei de Biossegurança, aprovado esta semana pela Câmara dos Deputados, apesar de positivo, tem lacunas e falhas em sua redação. A opinião é de especialistas ouvidos pela revista Consultor Jurídico para discutir a nova norma que regula, entre outros pontos, a pesquisa de células-tronco de embriões e a produção e comércio de produtos transgênicos.

Uma delas estaria no fato de que a nova lei permite o uso de embriões humanos para pesquisa em duas situações: se ele for inviável (supostamente incapazes de gerar uma vida) ou se estiver congelado há mais de três anos. No Brasil, a técnica da fertilização in vitro gerou um vasto banco de embriões fecundados que não são utilizados — matéria-prima suficiente para a pesquisa.

Mas o projeto de lei não é taxativo sobre o que são embriões inviáveis — nos bancos de embriões eles são divididos em níveis, que vão de um a cinco. Caberá, assim, “a quem julgar decidir o que são embriões inviáveis. Isso irá gerar um pragmatismo perigoso, abrirá precedente para usar qualquer tipo de embrião e poderá estimular a criação de bancos de embriões destinados exclusivamente a pesquisas. O embrião irá se transformar em mercadoria”, afirma a advogada Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, do Moraes, Pitombo e Pedroso Advogados.

A maior lacuna estaria, porém, nos aspectos criminais do projeto de lei. “Eles são risíveis, além de pouco técnicos”, diz ela. O projeto de lei prevê pena de dois a cinco anos para a clonagem humana, por exemplo, mas não deixa claro se aí está inclusa a clonagem humana para fins terapêuticos. “É proibido fazer clonagem das minhas próprias células-tronco para serem usadas em mim?”, questiona Ana Elisa.

O projeto de lei de Biossegurança, em seu artigo 25, também proíbe a prática de engenharia genética em células germinais, aquelas que são reprodutivas. A regra teria como objetivo prevenir a alteração de características individuais que podem refletir em toda a sua descendência. O problema é que ela não faz menção à clonagem terapêutica, que poderia ser útil na prevenção de doenças como o mal de Alzheimer.

A advogada questiona novamente: “Então quer dizer que pode matar um embrião para usar suas células-tronco, mas não é permitido mexer em uma célula reprodutiva para evitar doenças?”.

Como a engenharia genética é uma ciência relativamente nova — não são conhecidos todos os efeitos que a intervenção humana pode ter nas gerações futuras — a legislação estaria sendo criada em cima de uma ficção. E é nesse fator que reside, segundo Ana, sua incongruência. A solução, defende a advogada, seria definir administrativamente que não se mecha com tais células por enquanto, mas não transformar a prática em crime. “A legislação criminal deve ser o último recurso do Estado para punir, depois que todos já falharam”, defende.

A punição também não é, de acordo com ela, a forma mais efetiva de coibir a aplicação da engenharia genética. Prever pena de um ano, que pode ser revertida em cestas básicas, por exemplo, para um grande laboratório multinacional não seria o melhor caminho. O melhor seria “proibir o laboratório de pesquisar durante um certo tempo, medida que interferiria em sua saúde econômica”.

Transgênicos

No que se refere aos organismos geneticamente modificados (OGMs), o projeto de lei é considerado positivo ao definir o prazo de 120 dias para a análise dos processos de licenciamento, que podem ser estendidos para mais 180 dias se o CTNBio — Comissão Técnica Nacional de Biossegurança pedir para que sejam fornecidas informações complementares. Ele também mantém princípios básicos da antiga legislação como o que prevê responsabilidade objetiva para quem causar danos ao meio-ambiente: além de multa, a irregularidade terá de ser reparada e não há prazo de prescrição.

O projeto também traz avanços ao definir de uma vez por todas que as pesquisas sejam conduzidas mesmo sem o EIA/Rima — estudo de impacto ambiental. “A resolução permite que pesquisas até então paralisadas por falta de regulamentação sejam levadas adiante”, diz o advogado Walter Senise, do Machado, Meyer, Sendacz e Opice. O texto define que o EIA/Rima seja aplicado somente se o CTNBio determinar que o plantio e comercialização dos produtos podem causar danos ao meio-ambiente.

Por outro lado, ao deixar o aval final da comercialização dos OGMs ao CTNBio, a lei subtrai dos órgãos ambientais e, em especial, do Ministério do Meio Ambiente, a competência para conceder o licenciamento. Segundo o artigo 6º, inciso VI, somente a Comissão Técnica pode proibir ou liberar a produção dos transgênicos e seus derivados.

Caberá apenas ao CTNBio, então, considerar se o dano é de impacto significativo ou não. “Essa competência sempre foi e em nenhum momento deixou de ser dos órgãos ambientais”, diz Senise. “A Constituição Federal determina que a palavra final deve ser dada pelo Ministério do Meio Ambiente. Assim, o projeto de lei vai de encontro ao estabelecido constitucionalmente e acaba parecendo uma tentativa de atropelo”.

Em virtude do dispositivo, o Ministério da Agricultura divulgou nota à imprensa em que critica a atribuição ao CTNBio. “Cria-se com isso um sério desequilíbrio no processo da tomada de decisão a respeito dos OGMs, em prejuízo das precauções necessárias para lidar com tecnologias cujas conseqüências nos ecossistemas brasileiros ainda não estão devidamente identificadas”, diz o comunicado.

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