Violação da intimidade

Não há norma que permita revista íntima a empregados

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31 de maio de 2005, 12h12

Recentemente, enquanto aguardava uma audiência na 4ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, assisti ao julgamento de um tipo de processo que vem se tornando bastante corriqueiro em nossos tribunais: o pedido de dano moral de uma trabalhadora que alegava violação à sua intimidade. A autora da ação havia trabalhado durante alguns anos para uma conhecida grife de roupas femininas, em várias lojas que esta empresa mantém em shopping centers da capital carioca.

O advogado da empregada alegou que sua cliente era obrigada a submeter sua bolsa a revista diária pelas gerentes da cadeia de lojas, o que no seu entendimento violaria o direito constitucional de proteção à vida íntima. Chamou-me a atenção a linha de defesa do advogado patronal: tentava convencer a juíza do caso de que esta prática “é comum e generalizada no comércio” e dizia ainda que ele próprio, advogado, ao ingressar poucos dias antes em uma casa de shows na zona sul, fora revistado e apalpado, sem que visse naquele ato qualquer violação à sua intimidade, pois entendia a preocupação dos promotores do evento em garantir a segurança coletiva. Quem afinal tem razão?

A Constituição de 1988 estabelece, dentre os direitos fundamentais, que a intimidade e a vida privada são “invioláveis” (art. 5º., inc. X). Bem, isso não resolve de todo nosso problema. A função da Constituição, no campo dos direitos civis, é estabelecer princípios genéricos, cabendo ao aplicador do direito (e ao legislador ordinário) interpretar a amplitude, os limites e a adequação daqueles princípios ao caso concreto, levando em conta, inclusive, todos os demais princípios constitucionais envolvidos. Ou seja, precisamos extrair do texto constitucional se revistar diariamente a bolsa de uma empregada viola sua intimidade e vida privada ou se esta conduta pode ser vista como um direito (igualmente constitucional) do empregador em proteger seu patrimônio.

Até bem pouco tempo, os tribunais trabalhistas — de forma conservadora, diga-se — vinham entendendo de maneira razoavelmente tranqüila que a revista sobre o empregado poderia ser feita desde que não fosse “vexatória”. Este tipo de decisão, além do seu conservadorismo, era um tanto quando tautológica: afinal, transferia-se a dúvida de interpretação sobre o significado constitucional de “intimidade” para o significado jurisprudencial de “vexatória”.

A maior parte dos juízes considerava que a determinação para que o empregado se despisse diante de um superior seria “vexatória”. Outros, conforme a natureza da atividade empresarial (transporte de valores, por exemplo), admitiam inclusive o despir-se como não vexatório, desde que a revista fosse feita em ambiente restrito, por pessoa do mesmo sexo. Como se vê, este tipo de solução permitia decisões para todos os gostos, até porque o que é vexatório para uma pessoa pode não o ser para outra: alguém que está fora de forma pode envergonhar-se por ter que levantar a camisa até a altura do umbigo para o seu chefe, enquanto que o seu colega de trabalho “sarado” pode até mesmo sentir orgulho em exibir o abdômen esculpido na academia.

Para tentar resolver este tipo de dúvida dos intérpretes, o legislador aprovou no ano de 1999 a Lei 9.799, que proíbe o “empregador ou seu preposto de proceder a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias”. De antemão é preciso esclarecer que em função do princípio da isonomia, este dispositivo é aplicável indistintamente a homens e mulheres (a referência ao sexo feminino deveu-se ao fato de que a lei foi publicada para assegurar direitos específicos da mulher no mercado de trabalho).

Como pode perceber o sagaz leitor, o novo texto da lei, embora aponte em certa direção, também não nos ajuda muito se quisermos resolver o caso com uma interpretação literal. Pois, afinal, “revista íntima” refere-se apenas ao corpo do trabalhador ou também a seus pertences? Uma trabalhadora se sentiria à vontade em exibir ao empregador seus contraceptivos ou preservativos que carrega em sua bolsa?

Embora não entre em muitos detalhes, a lei 9.799/99 tem forçado a uma revisão da jurisprudência. Hoje são pouquíssimos os juízes que admitem a revista “pessoal”, sobre o corpo do trabalhador. Tem-se entendido que a melhor solução não é simplesmente extrair o significado gramatical de “revista íntima”, mas sim verificar, no caso concreto, que princípios constitucionais devem prevalecer, ou seja, a preservação da dignidade do trabalhador ou da proteção à propriedade do empregador.

Em outras palavras, havendo em questão a incidência de dois princípios constitucionais (proteção à intimidade e à propriedade), deve se buscar a ponderação de ambos. Vale dizer, será que a perturbação da intimidade do trabalhador é proporcional ao bem jurídico que a conduta patronal pretende proteger? Não haveria outros meios de salvaguardar a propriedade (filmagem do local de trabalho, controle de estoque) sem malferir a intimidade do empregado?

É preciso ter em mente que o contrato de trabalho tem como um de seus elementos a confiança (fidúcia), e não parece razoável que o empregador lance diariamente uma pecha de dúvida sobre o caráter de seus empregados a pretexto de defender seu patrimônio. Até porque ele jamais o faria em relação a seus clientes ou consumidores, com os quais no mais das vezes não mantém vínculo contratual de confiança. Felizmente, parece que está havendo uma mudança dos tribunais neste sentido e a revista sobre pertences do empregado começa a ser rechaçada com veemência. Há cerca de um ano, o Tribunal Regional do Trabalho no Rio de Janeiro proibiu as Lojas Americanas de realizarem qualquer tipo de revista em seus empregados, em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público.

Bom, e a tese do advogado de que a revista é uma praxe comum no mercado de trabalho e de que ela é praticada e aceita em casas de espetáculos? Quanto ao primeiro argumento, é curioso como no Brasil se defende a legalidade de certas condutas não porque estão respaldadas pela lei, mas porque “todo mundo faz”. Ou seja, admite-se a ilegalidade mas prega-se tolerância porque a lei “não teria pegado”. Este é um grande fator de atraso no país, ou seja o desprezo pelo princípio da legalidade em favor da prevalência de costumes culturais baseados numa moral bastante gelatinosa.

Quanto ao segundo argumento, é preciso perceber que a tese parte de uma premissa enganosa, já que pretende comparar duas situações jurídicas que, embora aparentem alguma semelhança (possibilidade de revista íntima), possuem pressupostos fáticos bem distintos. O responsável pela casa de espetáculos (ou de um estádio de futebol), ao promover a revista sobre os espectadores, tem como finalidade a garantia da segurança coletiva de todos eles.

Ou seja, a perturbação da intimidade neste caso visa a preservar a garantia constitucional da vida e tem como destinatárias as próprios pessoas que são revistadas. Sob este ângulo, seria até mesmo possível admitir a revista em empregados se a finalidade fosse garantir sua segurança e incolumidade, como seria na hipótese de revistas feitas em trabalhadores que se destinam a uma plataforma de petróleo, para que os mesmos não embarquem portanto armas de fogo ou substâncias tóxicas, incompatíveis com as medidas de segurança de semelhante planta industrial. No entanto, na maior parte dos casos, o empregador está preocupado é com seu patrimônio e não com a vida ou segurança dos empregados.

Nos dias de hoje, em face dos valores da Constituição de 88, a defesa do “direito” do empregador em proceder a revista sobre o corpo do empregado e seus pertences só se explica pela permanência culturalista de uma triste herança da escravidão, que não podemos mais tolerar no atual contexto democrático de pleno respeito aos direitos civis.

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