Base de cálculo

Leia o voto de Cezar Peluso sobre a base de cálculo da Cofins

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30 de maio de 2005, 18h30

O alargamento da base de cálculo da Cofins é inconstitucional porque ampliou o conceito de receita bruta para “toda e qualquer receita” auferida pelas empresas. Este foi um dos argumentos do ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, ao decidir que a nova base de cálculo fere a Constituição.

A decisão foi tomada no julgamento da constitucionalidade do alcance da contribuição, suspenso no dia 18 de maio com o pedido de vista do ministro Eros Grau. Até o momento do pedido de vista o placar estava em 5 a 3 contra o Fisco.

A análise da matéria estava suspensa desde o ano passado, com três votos a favor do governo — favoráveis ao aumento da base de cálculo da Cofins — quando o ministro Cezar Peluso pediu vista. No julgamento votaram também contra a União os ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Os votos que consideram o aumento constitucional são dos ministros Ilmar Galvão e Maurício Corrêa, já aposentados, e do ministro Gilmar Mendes.

No julgamento, Peluso abriu uma terceira corrente no julgamento da Cofins, ao considerar inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 3º da Lei 9.718/98 (que aumentou a base de incidência da contribuição). Para o ministro, o dispositivo ampliou o conceito de receita bruta para toda e qualquer receita e a mudança afronta a noção de faturamento prevista no artigo 195, parágrafo 1º da Constituição, e ainda o artigo 194, se considerado para efeito de nova fonte de custeio da seguridade.

Leia a íntegra do voto de Cezar Peluso

18/05/2005 TRIBUNAL PLENO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 346.084-6 PARANÁ

SUJEITO A REVISÃO

V O T O – V I S T A

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO:

1. O presente julgamento tem por objeto a questão da constitucionalidade da majoração da base de cálculo da COFINS, nos termos dos arts. 2º e 3º da Lei Federal nº 9.718/98.

A recorrente alega que tal majoração alargaria indevidamente a

noção do substantivo faturamento, suposta à redação original do art. 195, I, da Constituição da República, instituindo, com isso, nova fonte de custeio da seguridade social ao arrepio do prescrito no art. 195, § 4º, que exige lei complementar, bem como hipótese de incidência e base de cálculo diversas das previstas na Constituição e que sejam não-cumulativas as contribuições (art. 154, I).

Tal majoração não teria, ademais, sido convalidada pela edição da

Emenda Constitucional nº 20, publicada em 16 de dezembro de 1998, após a Lei nº 9.718/98 (publicada em 28 de novembro de 1998, lei de conversão da Medida Provisória nº 1.721/98).

Admitido o recurso, o relator, Min. ILMAR GALVÃO, deu-lhe parcial provimento, para julgar inconstitucional a majoração da base de cálculo da COFINS, na forma do art. 3º da Lei nº 9.718/98, até a edição da EC nº 20/98, que “veio emprestar-lhe o embasamento constitucional de que carecia, ao dar nova redação ao art. 195 da Carta de 88, para dispor que a COFINS passaria a incidir sobre ‘b) a receita ou o faturamento’”.

O Min. GILMAR MENDES, em voto-vista, entendeu constitucional

a majoração, pelos seguintes fundamentos:

1) “…já sob o império da Lei Complementar nº 70 se verificara o

abandono do conceito tradicional de faturamento, especialmente

naquela acepção comercialista que se refere, grosso modo, a

operações de venda de mercadorias já concluídas e registradas em

fatura. Esse conceito técnico-comercial é invocado expressamente

pelos recorrentes.”

2) “No RE 150.755, da relatoria do Ministro Carlos Velloso (redator

do acórdão o Min. Sepúlveda Pertence), em que se discutia a

constitucionalidade da contribuição do FINSOCIAL, tal como fixada

no art. 28 da Lei nº 7.738, de 1989, admitiu-se como legítima a

assimilação do conceito de receita bruta ao de faturamento.”

3) O conceito de faturamento assume foros institucionais, cabendo

ao legislador infra-constitucional fixar-lhe os contornos: “afasto,

portanto, qualquer leitura da expressão faturamento que implique

negar ao legislador ordinário o poder de conformação do vocábulo

“faturamento”, contido no inciso I do art. 195. Não estou a dizer,

obviamente, que tal poder legislativo é ilimitado, pois é certo que

deverá respeitar todas as demais normas da Constituição, assim como

não poderá ultrapassar os limites do marco fixado no referido art.

195.”

4) a Emenda Constitucional nº 20/98 neste contexto seria meramente

“expletiva”: “Não é incomum, no âmbito das normas tributárias, a

tipificação de condutas de modo detalhado e, às vezes, redundante. O

propósito é claro: evitar as controvérsias quanto à subsunção ou não


de determinadas condutas à norma.”

Este entendimento foi acompanhado pelo Min. MAURÍCIO

CORREA, que, antecipando voto, julgou constitucional a majoração.

Para melhor análise do objeto, pedi vistas dos autos.

2. A resposta à questão entrelaça-se com os contornos e os limites

do papel do legislador infraconstitucional no exercício da competência tributária, que não pode alargada pela lei subalterna, porque o de que se trata é de saber se a Lei nº 9.718/98 os ultrapassou, ou não, ao definir a compreensão e a extensão lógico-jurídicas da palavra faturamento, para efeitos de incidência da COFINS.

Dependendo da postura que se adote, a edição da Emenda

Constitucional será, ou não, relevante à resposta. Para os eminentes Min. GILMAR MENDES e MAURÍCIO CORREA, tal exercício foi legítimo, e a EC terá sido meramente expletiva. Já para o Min. ILMAR GALVÃO, o exercício da competência transpôs os limites conceituais inerentes à palavra faturamento na redação original da CF, mas teria sido convalidada pela EC nº 20/98. Mas há terceira possibilidade: reconhecer-se a inconstitucionalidade da Lei nº 9.718/98 ab initio e a impossibilidade de sua convalidação (repristinação) pela EC nº 20/98.

3. A Lei nº 9.718/98, no art. 3º, dispôs sobre a base de cálculo da COFINS, nos seguintes termos:

“Art. 3º. O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde

à receita bruta da pessoa jurídica.

§ 1º. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas

pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela

exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.”

Na ADI nº 2.777/SP, de que fui relator, tive oportunidade de me

manifestar sobre base de cálculo e sua importância na conformação do tributo, salientando a necessária correlação lógica e material que deve mediar entre o fato gerador (hipótese de incidência) e o montante sobre o qual será calculado o débito, sob pena de desvio insuportável da competência outorgada pela Constituição da República. Disse então:

“A base de cálculo, sabe-se, “é a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária. Paralelamente tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério material expresso na composição do suposto normativo. A versatilidade categorial desse instrumento jurídico se apresenta em três funções distintas: a) medir as proporções reais do fato; b) compor a específica determinação da dívida; e c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no antecedente da norma.” (PAULO DE BARROS CARVALHO, “Curso de Direito Tributário”, SP, Ed. Saraiva, 15ª ed., 2003, p. 327/328).

Sobre servir de parâmetro para o cálculo do tributo exigível (b),

a base de cálculo deve medir, necessariamente, as proporções reais do fato (a) e confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material

da regra matriz de incidência tributária (hipótese de incidência, fato gerador, fattispecie abstrata, etc.) (c).

Este binômio, base de cálculo e critério material (fato gerador), é imprescindível à determinação da espécie e natureza do tributo, devendo guardar, entre ambos os elementos ou dimensões do fato gerador, estreita correlação lógica, de tal arte que, em caso de conflito, a base de cálculo prevalece como critério de identidade da natureza do tributo. É o que, de modo empírico, mas acertado, se nota ao imposto sobre a renda, cuja natureza é dada pela natureza de rendimentos tributáveis, não doutros valores aleatórios, como indenização, por exemplo. Daí dizer-se da base de cálculo que “tem o condão de infirmar o critério material oferecido no texto, que será substituído por aqueloutro que percebemos medido.” (PAULO DE BARROS CARVALHO, op. cit., p. 331).

Na verdade, o fato gerador, como realidade própria da ciência e do mundo jurídicos, não é figura que se esgote na mera consistência material do fato histórico que lhe corresponde, do qual é recortado pela fattispecie normativa abstrata, ou seja, como evento ou fenômeno que se soma aos demais fatos componentes da totalidade do mundo físico. Ele é também, e sobretudo, o mesmo fato visto na sua dimensão qualitativa de acontecimento dotado de certo valor monetário, o qual é o suporte do conceito normativo da base de cálculo do tributo incidente. Trata-se, portanto, de uma unidade jurídico-normativa, que, no caso, não pode dissociada nem dissolvida para efeito de interpretação da referência constitucional a “fato gerador presumido”, como se este se exaurisse no fato histórico bruto, com abstração de seu aspecto qualitativo, o qual está na expressão monetária do seu imanente valor como fato econômico.


Um fato com determinado valor não é o mesmo que outro fato com valor diferente presumido e preestimado: se o fato real subseqüente tem valor inferior à base de cálculo do fato presumido, então, porque é outro fato verificado, não se realizou o fato gerador presumido.”

A base de cálculo é tão importante na identificação do tributo, que prevalece em relação ao fato gerador em caso de conflito. Essas são as razões por que a competência tributária prevista na Constituição indica desde logo o fato gerador (hipótese de incidência) e a base de cálculo possíveis para instituição dos tributos, chegando a Constituição a dispor de forma expressa, no art. 145, § 2º, que “as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.

4. Na outorga de competência à União para instituir contribuições

sociais, o art. 195, na redação original, vigente à época da edição da Lei nº 9.718/98, estatuía:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro;

II – dos trabalhadores;

III – sobre a receita de concursos de prognósticos” (grifei).

As contribuições sociais, criadas com suporte nesse texto, têm por hipóteses de incidência (fattispecie) os fatos jurídicos que lhe dão origem, como “folha de salário”, “faturamento” e “lucro”, e, conseqüentemente, por respectivas bases de cálculo possíveis a folha de salários, o faturamento e o lucro.

Consoante observação de GERALDO ATALIBA e CLEBER GIARDINO, o constituinte originário apontou para a base de cálculo da contribuição e fixou-lhe, indiretamente, o aspecto material da hipótese de incidência, de tal modo que o montante sobre o qual incidirá o tributo será o valor do faturamento, e o fato gerador serão as operações que o produzam:

“Sempre, pois, que a linguagem da lei – freqüentemente

imprecisa, inadequada, superficial, reduzida – aludir a uma suposta

incidência sobre essa medida econômica do fato gravado, não se

iludirá nem se confundirá o interprete: entenderá – isto sem

dificuldade – que, aí, o que se tributa é o próprio fato, por cuja

realização se manifesta essa grandeza numérica.”(1)

Daí, a COFINS (contribuição para financiamento da seguridade social), instituída pela Lei nº 9.718/98, com fundamento de validade no art. 195, I, da CF/88, ter por hipótese constitucional de incidência as operações que geram faturamento e, por base de cálculo, a sua expressão monetária. Vê-se logo a importância do significado e do alcance do termo faturamento, adotado pelo constituinte originário.

5. A Constituição Federal não explicita o sentido nem o alcance da

palavra faturamento, como tampouco o faz em relação a “tributo”, “propriedade”, “família”, “liberdade”, “vida”, “crime”, “cidadão”, “sufrágio”, etc.. Ou seja, não há, no texto constitucional, predefinição ou conceituação formal dos termos aí usados, nem seria conveniente que o houvesse em todos os casos, pois o texto deve adaptar-se às necessidades históricas da evolução socioeconômica, segundo sua vocação de abertura permanente.

Dessa flexibilidade constitucional perante as mutações culturais, é célebre o exemplo dos conceitos jurídicos de “cidadão” e “propriedade”, nos Estados Unidos da América. No famoso caso DRED SCOTT v SANDFORD (1857), a Suprema Corte americana decidiu que o autor não era “cidadão” por ser escravo (2). Como escravo, era objeto de propriedade (3) e, pois, não era titular de nenhum dos direitos reconhecidos aos cidadãos americanos, entre os quais o de acesso ao Judiciário. Apesar da subsistência léxica do texto constitucional americano, tal decisão seria hoje inadmissível, se não inconcebível segundo o espírito do tempo.

Mostrou SAUSSURE que ninguém pode duvidar de que o termo

(signo lingüístico) não decorre da natureza do objeto (significado), mas é estipulado arbitrariamente pelos usuários da linguagem, mediante consenso construído ao longo da história, em torno de um código implícito de uso. (4)

As palavras (signos), assim na linguagem natural, como na técnica, de ambas as quais se vale o direito positivo para a construção do tecido normativo, são potencialmente vagas, “esto es, tienem un campo de referencia indefinido consistente em um foco o zona central y uma nebulosa de incertidumbre”. (5) Mas isso também significa que, por maiores que sejam tais imprecisões, há sempre um limite de resistência, um conteúdo semântico mínimo recognoscível a cada vocábulo, para além do qual, parafraseando ECO, o intérprete não está “autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer


coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir”.(6)

Para afastar ambigüidades ou construir significados no discurso

normativo, pode o legislador atribuir sentidos específicos a certos termos, como o faz, p. ex., no art. 3º do Código Tributário Nacional, que impõe a definição de tributo.

Na grande maioria dos casos, porém, os termos são tomados no significado vernacular corrente, segundo o que traduzem dentro do campo de uso onde são colhidos, seja na área do próprio ordenamento jurídico, seja no âmbito das demais ciências, como economia (juros), biologia (morte, vida, etc.), e, até, em outros estratos lingüísticos, como o inglês (software, internet, franchising, leasing), sem necessidade de processo autônomo de elucidação.

Quando o legislador, para responder a estratégias normativas, pretende adjudicar a algum velho termo, novo significado, diverso dos usuais, explicita-o mediante construção formal do seu conceito jurídico-normativo, sem prejuízo de fixar, em determinada província jurídica, conceito diferente do que usa noutra, o que pode bem ver-se ao art. 327 do Código Penal, que define “funcionário público” para efeitos criminais (7), e ao art. 2º da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), que atribui, para seus fins, análogo conceito à expressão “agente público”. (8)

Quando não haja conceito jurídico expresso, tem o intérprete de se socorrer, para a re-construção semântica, dos instrumentos disponíveis no próprio sistema do direito positivo, ou nos diferentes corpos de linguagem.

6. Como já exposto, não há, na Constituição Federal, prescrição de significado do termo faturamento. Se se escusou a Constituição de o definir, tem o intérprete de verificar, primeiro, se, no próprio ordenamento, havia então algum valor semântico a que pudesse filiar-se o uso constitucional do vocábulo, sem explicitação de sentido particular, nem necessidade de futura regulamentação por lei inferior.

É que, se há correspondente semântico na ordem jurídica, a presunção é de que a ele se refere o uso constitucional. Quando u’a mesma palavra, usada pela Constituição sem definição expressa nem contextual, guarde dois ou mais sentidos, um dos quais já incorporado ao ordenamento jurídico, será esse, não outro, seu conteúdo semântico, porque seria despropositado supor que o texto normativo esteja aludindo a objeto extrajurídico.

Ora, o fato de o art. 195, § 4º, da Constituição da República, ao dar competência suplementar à União para instituir contribuições sociais

inespecíficas, dependentes de “outras fontes destinadas à manutenção ou expansão da seguridade”, já prova que, ao aludir a “faturamento”, além de “folha de salário” e “lucro”, empregou essa palavra em sentido predeterminado, pois de outro modo a previsão daquela competência residual perderia todo o senso, ao admitir-se fossem vagos e imprecisos os conceitos de faturamento, de folha de salário e de lucro!

Mas convém relembrar que o Código Comercial, de 1850, usava a palavra fatura em diversos textos, sempre na acepção de documento representativo da venda mercantil (9), de modo que aí o substantivo faturamento significava o ato de faturar, ou o conjunto de faturas.

O mesmo sentido de fatura entrou na Lei nº 5.474/1968 (Lei das Duplicatas), cujo art. 1º prescreve:

“Art. 1º. Em todo o contrato de compra e venda mercantil entre

partes domiciliadas no território brasileiro, com prazo não inferior a

30 (trinta) dias, contado da data da entrega ou do despacho das mercadorias, o vendedor extrairá a respectiva fatura para apresentação ao comprador. § 1º A fatura discriminará as mercadorias vendidas ou, quando convier ao vendedor, indicará somente os números e valores das notas parciais expedidas por ocasião das vendas, despachos ou entregas das mercadorias.”

A fatura, emitida pelo vendedor, sempre representou a compra e venda mercantil, que, no contexto da legislação comercial então vigente, era a expressão genérica das vendas inerentes ao exercício da atividade do comerciante.

Com a deslocação histórica do foco sobre a importância econômica e a tipificação dogmática da atividade negocial, do conceito de comerciante para o de empresa, justificava-se rever a noção de faturamento para que passasse a denotar agora as vendas realizadas pela empresa e relacionadas à sua “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens

ou de serviços”, como consta hoje do art. 966 do Código Civil.

Essa interpretação já era preconizada por GERALDO ATALIBA e

CLEBER GIARDINO, em artigo publicado em 1986:

“Em primeiro lugar, esse fato — consistente em “emitir faturas” — não tem, em si mesmo, nenhuma relevância econômica. É mera decorrência de outro acontecimento — este, sim, economicamente


importante — correspondente à realização de “operações” ou atividades da qual esse faturamento decorre. Em segundo lugar, fosse o fato de “emitir faturas” a hipótese de incidência desse tributo destinado ao PIS e o tributo — ao contrário do que é cediço e corrente — seria enquadrável na classe dos subordinados ao “princípio documental” que, assim, com clareza meridiana, é exposto por

Amílcar de Araújo Falcão: ‘Pode, para tal fim, o legislador, efetivamente, consagrar um de dois princípios, critérios ou técnicas:

a) o princípio negocial (Geschaftsprinzip), por força do qual o fato gerador é considerado qualquer que seja a forma de as exteriorização:

b) o princípio documental (Urkunden ou Beurkundengsprinzip), que consiste no acréscimo de um plus à configuração do fato gerador, com a exigência de que, além da essencial consistência do fato, ato ou negócio que nele se contém (gestum) id quod interest – tal fato tenha por forma de exteriorização uma versão documental, um scriptum, um instrumento específico” (Fato gerador da Obrigação Tributária, 4ª ed., Ed. RT., p. 79)’.

“Vale dizer: fosse essa a hipótese, e, v.g., o contribuinte que vendesse a vista, sem emitir faturas, não pagaria PIS. O tributo só recairia sobre as vendas “exteriorizadas em faturas”, ou seja, sobre a documentação referente à operação a prazo, o que, sabidamente, nunca foi pretendido ou sustentado pela doutrina formada sobre esse tributo, nem decorre, mediata ou imediatamente, da lei. Parece, pois, visível que o fato pressuposto na expressão “faturamento” não é o “emitir faturas”, “realizar faturamento”, ou conceito equivalente, porém, outro, de distinta consistência, como se verá.” (10)

Faturamento nesse sentido, isto é, entendido como resultado econômico das operações empresariais típicas, constitui a base de cálculo da contribuição, enquanto representação quantitativa do fato econômico tributado.

Noutras palavras, o fato gerador constitucional da COFINS são as operações econômicas que se exteriorizam no faturamento (sua base de cálculo), porque não poderia nunca corresponder ao ato de emitir faturas, coisa que, como alternativa semântica possível, seria de todo absurda, pois bastaria à empresa não emitir faturas para se furtar à tributação.

7. Ainda no universo semântico normativo, faturamento não pode soar o mesmo que receita, nem confundidas ou identificadas as operações (fatos) “por cujas realizações se manifestam essas grandezas numéricas”. (11)

A Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976) prescreve que a escrituração da companhia “será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos” (art. 177), e, na disposição anterior, toma de empréstimo à ciência contábil os termos com que regula a elaboração das demonstrações financeiras, verbis:

“Art. 176. Ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar com base na escrituração mercantil da companhia, as seguintes demonstrações financeiras, que deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício:

I – balanço patrimonial;

II – demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados;

III – demonstração do resultado do exercício; e

IV – demonstração das origens e aplicações de recursos.”

Nesse quadro normativo, releva apreender os conteúdos semânticos ou usos lingüísticos que, subjacentes ao vocábulo receita, aparecem na seção relativa às “demonstrações do resultado do exercício”. Diz, a respeito, o art. 187 daquela Lei:

“Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará:

I – a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos;

II – a receita líquida das vendas e serviços, o custo das mercadorias e serviços vendidos e o lucro bruto;

III- as despesas com vendas, as despesas financeiras, deduzidas das receitas as despesas gerais e administrativas, e outras despesas operacionais;

IV – o lucro ou prejuízo operacional, as receitas e despesas não

operacionais;

V – o resultado do exercício antes do Imposto de Renda e a provisão

para o imposto;

VI – as participações de debêntures, empregados, administradores e partes beneficiárias, e as contribuições para instituições ou fundos de assistência ou previdência de empregados;

VII – o lucro ou prejuízo líquido do exercício e o seu montante por

ação do capital social.

§ 1º. Na determinação do resultado do exercício serão computados:

a) as receitas e os rendimentos ganhos no período,

independentemente da sua realização em moeda; e (…)”.


Como se vê sem grande esforço, o substantivo receita designa aí o gênero, compreensivo das características ou propriedades de certa classe, abrangente de todos os valores que, recebidos da pessoa jurídica, se lhe incorporam à esfera patrimonial. Todo valor percebido pela pessoa jurídica, a qualquer título, será, nos termos da norma, receita (gênero). Mas nem toda receita será operacional, porque pode havê-la não operacional. Segundo o disposto no art. 187 da Lei nº 6.404/76, distinguem-se, pelo menos, as seguintes modalidades de receita:

i) receita bruta das vendas e serviços;

ii) receita líquida das vendas e serviços;

iii) receitas gerais e administrativas (operacionais);

iv) receitas não operacionais.

Não precisa recorrer às noções elementares da Lógica Formal sobre as distinções entre gênero e espécie, para reavivar que, nesta, sempre há um excesso de conotação e um deficit de denotação em relação àquele. Nem para atinar logo em que, como já visto, faturamento também significa percepção de valores e, como tal, pertence ao gênero ou classe receita, mas com a diferença específica de que compreende apenas os valores oriundos do exercício da “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços” (venda de mercadorias e de serviços).

De modo que o conceito legal de faturamento coincide com a modalidade de receita discriminada no inc. I do art. 187 da Lei das Sociedades por Ações, ou seja, é “receita bruta de vendas e de serviços”. Donde, a conclusão imediata de que, no juízo da lei contemporânea ao início de vigência da atual Constituição da República, embora todo faturamento seja receita, nem toda receita é faturamento. Esta distinção não é nova na Corte.

8. A acomodação prática do conceito legal do termo faturamento, estampado na Constituição, às exigências históricas da evolução da atividade empresarial, para, dentro dos limites da resistência semântica do vocábulo, denotar o produto das vendas de mercadorias e de serviços, já foi reconhecida desta Corte, no julgamento do RE nº 150.764. Nele observou o Min. ILMAR GALVÃO:

“(…) a contribuição do art. 239 satisfaz a previsão do art. 195, I, no que toca à contribuição calculada sobre o faturamento. De outra parte, o D.L. 2.397/87, que alterou o DL 1.940/82, em seu art. 22, já havia conceituado a receita bruta do art. 1º, § 1º, do mencionado diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços’, conceito esse que coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei nº 187/36). A Lei nº 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social, para os fins do art. 195, I, da Constituição, o FINSOCIAL, até então calculado sobre a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, nada mais fez do que

instituir contribuição social sobre o faturamento.” (grifei)

Este mesmo preciso conceito do significante faturamento, como receita bruta proveniente de venda de mercadorias e de serviços, foi, aliás, fixado e adotado no julgamento da ADC nº 1-DF. Veja-se:

“Note-se que a Lei Complementar nº 70/91, ao considerar o faturamento como “a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza” nada mais fez do que lhe dar a conceituação de faturamento para efeitos fiscais, como bem assinalou o eminente Ministro ILMAR GALVÃO, no voto que proferiu no RE 150.764, ao acentuar que o conceito de receita bruta de vendas de mercadorias e de mercadorias e de serviços ‘coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, foi sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei 187/36)” (trecho do voto

do Rel. Min. MOREIRA ALVES)

“Por fim, assinale-se a ausência de incongruência do excogitado art. 2º da LC 70/91, com o disposto no art. 195, I, da CF/88, ao definir “faturamento” como “a receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza.”

De efeito, o conceito de “receita bruta” não discrepa do “faturamento”, na acepção que este termo é utilizado para efeitos fiscais, seja, o que corresponde ao produto de todas as vendas, não havendo qualquer razão para que lhe seja restringida a compreensão, estreitando-o nos limites do significado que o termo possui em direito comercial, seja, aquele que abrange tão-somente as vendas a prazo (art. 1º da Lei nº 187/68), em que a emissão de uma “fatura” constitui formalidade indispensável ao saque da correspondente duplicata.” (trecho do voto do Min. ILMAR GALVÃO)


Em diversas outras passagens do julgamento, fez-se remissão ao decidido pelo Plenário no RE nº 170.555-PE sobre o FINSOCIAL (Rel. p/ o ac. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, RTJ 149/259-293), a respeito da relação lógicojurídica entre o conceito de faturamento pressuposto pela Constituição e o de receita bruta previsto na lei de instituição daquele tributo. Ficou aí decidido expressamente que: i) faturamento não se confunde com receita (esta é mais ampla que aquele); ii) o conceito de receita bruta, entendida como produto da venda de mercadorias e de serviços, é o que se ajusta ao de faturamento pressuposto na Constituição (interpretação conforme).

9. No RE nº 170.555-PE, atacava-se, dentre outras normas, a

constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 7.738/89, que dispunha:

“Art. 28. Observado o disposto no art. 195, § 6º, da Constituição, as

empresas públicas ou privadas, que realizam exclusivamente venda de serviços, calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de meio por cento sobre a receita bruta.”

Tal preceito, segundo a recorrida, teria ampliado o conceito de faturamento adotado pela Constituição na redação original do art. 195, I, que é o que agora se torna a argüir e discutir.

O Plenário entendeu que o FINSOCIAL fora recebido como contribuição social e que a expressão receita bruta deveria interpretar-se em conformidade ou correspondência com a noção de faturamento acolhida pela Constituição, no seguinte valor semântico:

“(…)

8. A contribuição social questionada se insere entre as previstas no art. 195, I, CF, e sua instituição, portanto, dispensa lei complementar: no art. 28 da Lei nº 7738/89, a alusão a “receita bruta”, como base de cálculo do tributo, para conformar-se ao art. 195, I, da Constituição, há de ser entendida segundo a definição do Decreto-lei nº 2.397/87, que é equiparável à noção corrente de “faturamento” das empresas de serviço.” (grifei)

Prevaleceu a interpretação professada pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, designado relator do acórdão, nos seguintes termos:

“42. Resta, nesse ponto, o argumento de maior peso, extraído do teor do art. 28 analisado: não se cuidaria nele de contribuição incidente sobre o faturamento – hipótese em que, por força do art. 195, I, se entendeu bastante a instituí-la a lei ordinária -, mas, literalmente, de contribuição sobre a receita bruta, coisa diversa, que, por isso, só poderia legitimar-se com base no art. 195, § 4º, CF,no qual, para a criação de outras fontes de financiamento da segurança social, determinou a observância do art. 154, I, e, portanto, da exigência de lei complementar no último contida. Nessa linha, impressionou-me fundamente a cerrada argumentação desenvolvida em seus estudos por Ataliba e Giardino (RDTrib., 35/151), Mizabel Derzi (RDTrib., 55/194, 217), Gustavo Miguez de Mello (Parecer no Instituto dos Advogados Brasileiros) e Hamilton Dias de Souza (memorial).

43. Convenci-me, porém, de que a substancial distinção pretendida entre receita bruta e faturamento – cuja procedência teórica não questiono -, não encontra respaldo atual no quadro do direito positivo pertinente à espécie, ao menos, em termos tão inequívocos que induzisse, sem alternativa, à inconstitucionalidade da lei.

44. Baixada para adaptar a legislação do imposto sobre a renda à

Lei das Sociedades por ações, dispusera o Dec.-Lei 1.598, 26-12-77:

“Art. 12 – A receita bruta das vendas e serviços compreende o produto da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços prestados.

§ 1º – A receita líquida de vendas e serviços será a receita bruta

diminuída das vendas canceladas, dos descontos concedidos

incondicionalmente e dos impostos incidentes sobre vendas”.

45. Sucede que, antes da Constituição, precisamente para a determinação da base de cálculo do FINSOCIAL, o Dec.-Lei 2.397, de

21-12-87, já restringira, para esse efeito, o conceito de receita bruta a parâmetros mais limitados que o de receita líquida de vendas e serviços, do Dec.-Lei 1.598/77, de modo, na verdade, a fazer artificioso, desde então, distingui-lo da noção corrente de faturamento.

46. Recordem-se, na conformidade do referido Dec.-Lei 2.397/87, a nova redação do § 1º e o § 4º – esse, então acrescentado ao art. 1º do Dec.-Lei 1.940/82, regente do FINSOCIAL sobre a receita bruta das empresas:

“Art. 22 (…) § 1º A contribuição social de que trata este artigo será de 0,5% (meio por cento) e incidirá mensalmente sobre:

a) a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços de qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas definidas como pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela legislação do Imposto sobre a Renda;

b) as rendas e receitas operacionais das instituições financeiras e entidades a elas equiparadas, permitidas as seguintes exclusões: encargos com obrigações por refinanciamentos e repasse de recursos de órgãos oficiais e do exterior despesas de captação de títulos de renda fixa no mercado aberto, em valor limitado aos das rendas obtidas nessas operações; juros e correção monetária passiva decorrentes de empréstimos efetuados ao Sistema Financeiro de Habitação; variação monetária passiva dos recursos captados do público; despesas com recursos, em moeda estrangeira, de debêntures e de arrendamento; e despesas com cessão de créditos com coobrigação, em valor limitado ao das rendas obtidas nessas


operações, somente no caso das instituições cedentes;

c) as receitas operacionais e patrimoniais das sociedades seguradoras e entidades a elas equiparadas.

(…)

4° Não integra as rendas e receitas de que trata o § 1° deste artigo, para efeito de determinação da base de cálculo da contribuição, conforme o caso, o valor:

a) do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto sobre Transportes (IST), do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IULCLG), do Imposto Único sobre Minerais (IUM), e do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE), quando destacados em separado no documento fiscal pelos respectivos contribuintes;

b) dos empréstimos compulsórios:

c) das vendas canceladas, das devolvidas e dos descontos a qualquer título concedidos incondicionalmente;

d) das receitas de Certificados de Depósitos Interfinanceiros”.

47. Parece curial, data vênia, que a partir da explícita vinculação genética da contribuição social de que cuida o art. 28 da Lei 7.738/89 ao FINSOCIAL, é na legislação desta, e não alhures, que se há de buscar a definição específica da respectiva base de cálculo, na qual receita bruta e faturamento se identificam: mas ainda que no tópico anterior, essa é a solução imposta, no ponto, pelo postulado da interpretação conforme a Constituição.

48. E se se cuida, portanto, no art. 28, de contribuição social sobre o faturamento – repita-se -, tudo o que agora se reagita na sustentação da exigência da lei complementar ficou superado, na jurisprudência consensual da Corte, quando repeliu a mesma e suposta exigência formal relativamente à contribuição social sobre o lucro.

(…)

54. Por tudo isso, não vejo inconstitucionalidade no art. 28 da Lei 7.738/89, a cuja validade entendo restringir-se o tema deste recurso extraordinário, desde que nele a “receita bruta”, base de cálculo da contribuição, se entenda referida aos parâmetros de sua definição no Dec.-Lei 2.397/87, de modo a conformá-la à noção de faturamento das empresas prestadoras de serviços.”

Em relação a esse último dispositivo (art. 28), que, integrado pelo Decreto-lei nº 2.397/87, considerava como faturamento a receita bruta de venda de mercadorias e de serviços, os Min. MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO descartaram o expediente técnico da interpretação conforme, dada a impossibilidade teórica de alargamento de conceito usado pela Constituição Federal na outorga de competência tributária. É o que se tira ao voto do Min. MARCO AURÉLIO, verbis:

“Senhor Presidente, se assim o é, peço vênia aqueles que dissentiram do nobre Ministro Relator para entender que o artigo 28 da Lei nº 7.738/89 não se coaduna, de modo algum, com o contido no inciso I do artigo 195. Por que concluo desta maneira? Porque não posso atribuir ao legislador a inserção de expressões, a inserção de vocábulos em preceitos de lei sem o sentido vernacular, e, aqui, mais do que o sentido vernacular, temos o sentido técnico. Refiro-me à alusão à base de incidência da parcela. O preceito está assim redigido:

“Observado o disposto no art. 195, § 6º da Constituição, as empresas públicas ou privadas – como se as primeiras não fossem pessoas jurídicas de direito privado – que realizam exclusivamente venda de serviços calcularão a contribuição para o FINSOCIAL à alíquota de 0,5%”. E aí vem o trecho que conflita com o inciso I do artigo 195 da

Lei Máxima – “sobre receita bruta”.

Senhor Presidente, não posso dizer que receita bruta consubstancia sinônimo de faturamento.

(…)

Não posso, onde está escrito “receita bruta”, entender que houve referencia ao que contemplado na Carta, a faturamento, a receita líquida. Não posso! Se o fizer, Senhor Presidente, estarei partindo para um campo de absoluto subjetivismo. Tenho que enfrentar a lei tal como ela se contém. Tenho que proceder ao cotejo sem substituir-me como que ao legislador, sem alterar o próprio texto legal. Reafirmo: o que nós temos no artigo 28 em comento, e creio que todos ou quase todos concordam com essa assertiva, é a disciplina da contribuição, pelo menos assim se pretendeu, prevista no inciso I do artigo 195. Só que se abandonou, por completo, o vocábulo “faturamento”.

“Abandonou-se a base de incidência constitucional para cogitar-se, em substituição indevida, da receita bruta. A menos que se demonstre que receita bruta tem significado idêntico ao significado de faturamento, teremos que caminhar para a conclusão sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 7.738”.

(grifei)

O Min. CARLOS VELLOSO acenou para distinção conceitual, que lhe pareceu sutil, entre faturamento e receita bruta, da seguinte forma:

“O Decreto-Lei nº 2.397 se refere a receitas, e o FINSOCIAL está de pé em razão do artigo 56, ADCT, até que a lei institua regularmente contribuição na forma da Constituição. Instituiu sobre faturamento? Não! Sobre renda bruta. Os conceitos diferem, não há uma grande diferença, mas diferem. V. Exa. Sabe que, em termos de Direito Tributário, como em Direito Penal, para instituir tributo não cabem interpretações analógicas.”


Apesar dessas divergências dos Min. MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO no que respeita à constitucionalidade da norma, foi unânime o julgamento quanto a uma perceptível distinção entre as idéias normativas de faturamento e de receita bruta, tomada esta em acepção genérica: “Há um consenso: faturamento é menos que receita bruta.” (Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, RTJ v. 149, p. 287). O art. 28 da Lei nº 7.738/89 foi havido por constitucional em interpretação conforme à Constituição, para que se entendesse a expressão receita bruta, nele veiculada, como “receita bruta da venda de

mercadorias e da prestação de serviços”, cujo significado restrito e específico afirmou-se equivalente ao conceito constitucional de faturamento.

Está claro, portanto, que, na larga discussão acerca da noção constitucional do termo faturamento, ficaram expressamente reconhecidas e decididas duas coisas irrefutáveis: a) o sentido normativo da expressão receita bruta da venda de mercadorias e da prestação de serviços correspondia ao conceito constitucional de faturamento; b) mas, porque mais amplo e extenso como denotação própria do gênero, o significado da locução legal receita bruta ultrapassava os limites semânticos desse mesmo conceito. É o que, em primoroso memorial, sublinhou e sintetizou HUMBERTO ÁVILA:

“A leitura deste longo precedente pode levar à interpretação de que o Supremo Tribunal Federal igualou o conceito de “faturamento” ao conceito de “receita bruta”. Não o fez, porém. O que ocorreu foi algo diverso: para manter a constitucionalidade da norma, o Tribunal resolveu empreender uma interpretação conforme a Constituição para o efeito de entender que a expressão legal “receita bruta” só seria constitucional se se enquadrasse no conceito de faturamento e, para isso, deveria ser entendida como receita da venda de mercadorias e da prestação de serviços, pois esse seria, precisamente, o conceito de faturamento incorporado da legislação infraconstitucional pela Constituição”.

10. Por rematar a pesquisa, além desses julgados, em que a Corte estabeleceu que a noção constitucional do termo faturamento coincidia com o conceito infraconstitucional específico de receita bruta, enquanto produto da venda de mercadorias e da prestação de serviços, igual interpretação foi proclamada no julgamento do RE nº 150.164-PR.

Ali notou o Min. ILMAR GALVÃO:

“(…) a contribuição do art. 239 satisfaz a previsão do art. 195, I, no que toca à contribuição calculada sobre o faturamento. De outra parte, o D.L. 2.397/87, que alterou o DL 1.940/82, em seu art. 22, já havia conceituado a receita bruta do art. 1º, § 1º, do mencionado diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços’, conceito esse que coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei nº 187/36). A Lei nº 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social, para os fins do art. 195, I, da Constituição, o FINSOCIAL, até então calculado sobre a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, nada mais fez do que instituir contribuição social sobre o faturamento.” (grifei)

11. A questão posta neste caso é, em tudo, muito semelhante à que se analisou e decidiu nos precedentes representados dos RE nº 150.164-PR e RE nº 150.755-PE, mas é ainda mais grave nas conseqüências. O art. 3º da Lei nº 9.718/98 também considerou como base de cálculo da COFINS, incidente sobre as operações cuja prática se traduz na expressão econômica do faturamento (art. 195, I, da CF/88), a receita bruta, nos moldes do que o fez a Lei nº 7.738/89, mas, no § 1º, definiu-a como a totalidade das receitas, ou seja, tomou o gênero pela espécie:

§ 1º. Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.”

Tal atribuição legal de denotação ou significado mais extenso, que compreende todos os elementos do gênero ou classe de receitas, seria válida, se não afrontasse o alcance do texto constitucional que usa o termo faturamento, para outorga de competência tributária, com conteúdo semântico mínimo, sem o qual seria impossível observar e controlar os limites dessa mesma competência constitucional, assim como seria impossível preservar todo o grave alcance da proibição constitucional de prisão civil por dívida (art. 5º, LXVII), se não fosse compreensível e restrita a condição jurídica de depositário infiel.

Apesar de parecer expletivo, ante a própria inteligência do sistema, o qual já não permite alteração da competência tributária pelo ente federado que a recebe, dada a rigidez constitucional, é, a respeito, peremptório o art. 110 do Código Tributário:


“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

É claro que o preceito não serve a interpretar a Constituição, mas tem eficácia enquanto predica sanção de invalidez às normas tributárias que a contrariem nos aspectos enunciados. E não deixa de confirmar que a Constituição da República usa, implicitamente, conceitos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias.

Ao outorgar à União competência para instituir contribuição social sobre o faturamento, o constituinte originário indicou-lhe desde logo, de modo expresso, o fato gerador (hipótese de incidência) e a base de cálculo possíveis, interditando ipso facto à lei subalterna alargar ou burlar tais limites mediante subterfúgios lingüísticos ou conceituais, como, p. ex., alteração dos significados normativos incorporados pela Constituição. É, nisso, velha mas oportuna, a observação do Min. LUIZ GALLOTTI:

“Sr. Presidente, é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas, interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto, e, menos ainda, criando um imposto novo,

que a lei não criou. Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema constitucional tributário inscrito na Constituição.” (voto no RE nº 71.758-GB, RTJ v. 66, p. 165)

E, tão oportuna, posto que menos velha, a que fez o Min. JOAQUIM BARBOSA, quando ainda atuava na Procuradoria Regional da República da 2ª Região, no Mandado de Segurança nº 2000.02.01.055959-7, no TRF-2ª Região:

“Ademais, tal conceito é de direito privado, devendo ser observado pelo legislador tributário, sob pena de ilegalidade da medida adotada, por estar contrariando a norma geral de Direito Tributário prevista no art. 110 do Código Tributário Nacional”.

(…)

A propósito, vale destacar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida nos autos do Recurso Extraordinário

nº 203.075-9, sendo relator o Ministro Maurício Correa, in DJ 15/09/98, firmou entendimento de que o desrespeito a um conceito de Direito Privado, pelo legislador tributário, acarreta a invalidade do dispositivo legal posto desta forma no sistema jurídico: “desse modo, é de fundamental importância que se busque interpretar os princípios gerais de direito privado, para pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição Federal que, por estarem prescritos na legislação comum, não podem ser alterados pela legislação tributária (CTN, art. 109 e 110).

Diante de todo exposto, resulta claro que outras receitas, além daquelas resultantes das próprias operações de venda de mercadorias ou prestação de serviços das pessoas jurídicas, não se enquadram na

definição de faturamento contida no texto constitucional, em sua redação original.” (parecer acostado por memorial)

12. Quanto à corrupção legal dos termos e conceitos usados ou

supostos pela Constituição da República ao outorgar competências tributárias, também é útil recorrer a precedentes da Corte, para raciocinar por analogia neste caso, que é algo parecido, no plano teórico, com a causa do RE nº 166.772–RS, cujo objeto era o alcance lógico-jurídico da expressão folha de salários, constante do art. 195, I, da Constituição da República, que atribui à União competência para criar contribuição sobre a correspondente materialidade econômica.

A Lei Federal nº 7.787, de 30 de junho de 1989, no art. 3º, I, dispôs que a contribuição social sobre a folha de salários incidiria também sobre os valores pagos a “autônomos e administradores”. Toda a questão, ali, estava em saber se o legislador federal, no exercício da competência que lhe deu o art. 195, I, para instituir contribuição sobre a “folha de salários”, poderia considerar, para esse efeito, as importâncias pagas a “autônomos e administradores”. A Corte, posto que por maioria de votos, entendeu que não:

“INTERPRETAÇÃO – CARGA CONSTRUTIVA – EXTENSÃO. Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, descabe “inserir na regra de direito o próprio juízo – pro mais sensato que seja – sobre a finalidade que ‘conviria’ fosse por ela perseguida” – Celso Antônio Bandeira de Mello – em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este àquele.


CONSTITUIÇÃO – ALCANCE POLÍTICO – SENTIDO DOS VOCÁBULOS – INTERPRETAÇÃO. O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos, no caso do direito, pela atuação dos Pretórios.

SEGURIDADE SOCIAL – DISCIPLINA – ESPÉCIES – CONSTITUIÇÕES FEDERAIS – DISTINÇÃO. Sob a égide das Constituições Federais de 1934, 1946 e 1967, bem como da Emenda Constitucional nº 1/69, teve-se a previsão geral do tríplice custeio, ficando aberto campo propício a que, por norma ordinária, ocorresse a regência das contribuições. A Carta da República de 1988 inovou.

Em preceitos exaustivos – incisos I, II e III do artigo 195 – impôs contribuições, dispondo que a lei poderia criar novas fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecida a regra do artigo 154, inciso I, nela inserta (4 do artigo 195 em comento).

CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – TOMADOR DO SERVIÇO – PAGAMENTOS A ADMINISTRADORES E AUTÔNOMOS – REGÊNCIA. A relação jurídica mantida com administradores e autônomos não resulta de contrato de trabalho e, portanto, de ajuste formalizado à luz da Consolidação das Leis do Trabalho. Daí a impossibilidade de se dizer que o tomador dos serviços qualifica-se como empregador e que a satisfação do que devido ocorra via folha de salários. Afastado o enquadramento no inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, exsurge a desvalia constitucional da norma ordinária disciplinadora da matéria.

A referência contida no § 4º do artigo 195 da Constituição Federal ao inciso I do artigo 154 nela insculpido, impõe a observância de veículo próprio – a lei complementar. Inconstitucionalidade do inciso I do artigo 3º da Lei nº 7.787/89, no que abrangido o que pago a administradores e autônomos. Declaração de inconstitucionalidade limitada pela

controvérsia dos autos, no que não envolvidos pagamentos a avulsos.”

A inversão, se não subversão, da relação lógica entre gênero e espécie na denotação dos mesmos termos, pela lei inferior, em hostilidade com a Constituição da República, mediante alargamento dos limites da competência tributária, foi bem percebida pela Corte, como se infere ao voto do Min. CELSO DE MELLO:

“Entendo, sr. Presidente – tal como o demonstrou o em. Relator em densa análise do tema – que inexiste qualquer vínculo empregatício entre as empresas tomadoras de serviços, de um lado, e os administradores não-empregados e os profissionais autônomos, de outro.

(…)

Firmada esta premissa básica – … -, e tendo ainda presente, ainda, que o salário constitui noção legal revestida de significado próprio, qualificável como expressão econômico-financeira da contraprestação do serviço realizado sob regime de execução subordinada, torna-se evidente que a locução constitucional “folha de salários”, inscrita no art. 195, I, da Carta Política, há de ser definida em função de critérios estritamente técnicos, a serem considerados na exata e usual dimensão que lhes confere o Direito do Trabalho.

Isso significa, portanto, que a expressão “folha de salários” refere-se ao conjunto de valores remuneratórios pagos pela empresa às pessoas que lhe prestam serviços com vínculo de subordinação jurídica.

Desse modo, não se pode entender como subsumida à noção de “folha de salários” qualquer remuneração paga por serviços que não se originem da execução de um contrato individual de trabalho. A expressão constitucional “folha de salários” reveste-se de sentido técnico e possui significado conceitual que não autoriza a sua utilização em desconformidade com a definição, o conteúdo e o alcance adotados pelo Direito do Trabalho.

Disso decorre que os valores pecuniários pagos aos profissionais que não executam trabalho subordinado não se ajustam à definição técnico-legal de salário, de tal modo que a locução constitucional “folha de salários” não abrange, na especificidade de sua noção conceitual, a remuneração paga pelas empresas por serviços que lhes são prestados sem qualquer vínculo de subordinação jurídica.

(…)

As expressões empregador, salários e empregado, Sr. Presidente, refletem noções conceituais largamente consolidadas no plano de nossa experiência jurídica. Desse modo, e não obstante o sentido comum que se lhes possa atribuir, esses conceitos encerram carga semiolótica que encontra, no discurso normativo utilizado pelo legislador constituinte, plena correspondência com o seu exato, técnico e jurídico significado, do qual não pode o legislador ordinário divorciar-se ao veicular a disciplina de qualquer espécie tributária, sob pena de transgredir o comando inscrito no art. 110 do Código Tributário Nacional, que faz prevalecer, consoante adverte ALIOMAR BALEEIRO (“Direito Tributário Brasileiro”, p. 444, 10ª ed., 1993, Forense), “o império do Direito Privado (…) quanto à definição, conteúdo e ao alcance dos institutos, conceitos e formas daquele direito…”” (grifos originais)


Noutras palavras, o que se assentou aí foi que a extensão lógicojuridica da locução constitucional “folha de salários” se atrela ao conceito normativo da classe empregados, representando a soma dos valores que lhes são pagos por conta da relação de trabalho. De modo que, como espécie do gênero “valores pagos pela pessoa jurídica por prestação de serviços”, não poderia o legislador federal tomá-la pelo gênero, pois a competência do art. 195, I, se restringe àquela. E, como a competência para instituir contribuição sobre os demais rendimentos pagos seria também da União, a ofensa foi tida por formal, exatamente como aparece no presente caso, porque desrespeitado o disposto no art. 195, § 4º, da Constituição da República:

“De outro lado, impõe-se observar que a União Federal, para instituir validamente nova contribuição social, tendo presente a situação dos referidos profissionais não-empregados, deveria valer-se, não de simples lei ordinária, mas necessariamente, de espécie normativa juridicamente mais qualificada: lei complementar.

A exigibilidade de lei complementar revela-se inquestionável no

caso, eis que a imposição dessa espécie legislativa decorre de expressa previsão constitucional. A norma inscrita no art. 195, § 4º, da Carta Política, ao autorizar o legislador a instituir outras fontes de custeio destinadas a garantir a manutenção ou a expansão da seguridade social, tornou imprescindível, para esse específico efeito, a utilização de lei complementar pelo Poder Público.

(…)

Se é exato que o Poder Legislativo não dispõe da atribuição discricionária de definir quais as matérias a serem disciplinadas mediante lei complementar, não é menos correto reconhecer que, em havendo – tal como ocorre na hipótese a que se refere o art. 195, § 4º, da Carta Federal – prescrição constitucional expressa no sentido de submeter o trato de determinado tema ao domínio normativo da lei complementar, a inobservância dessa determinação, pelo legislador, gera um irremissível vício de inconstitucionalidade (GERALDO ATALIBA, “Lei complementar na Constituição”, p. 30, 1971, RT; JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, “Lei Complementar tributária”, p. 34/35, 1975, RT/EDUC e CELSO BASTOS, “Lei Complementar”, p. 16,/17, 1985, Saraiva).” (do voto do Min. CELSO DE MELLO no cit. RE nº 166.772-RS. Grifos originais)

No mesmo sentido foi o voto do Relator, Min. MARCO AURÉLIO:

“Realmente, a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de contornos jurídicos.

Logo, não merece agasalho o ato de dizer-se da colocação, em plano secundário, de conceitos consagrados, buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido político das normas constitucionais. O artigo 195, não há a menor dúvida, atribui a toda a sociedade o financiamento, de forma direta e indireta, da seguridade social, fazendo-o, no entanto, em termos que têm como escopo maior a segurança na vida gregária. Ora, além das contribuições nele enumeradas, outras somente podem vir à balha via lei complementar, consoante previsto no § 4º do citado artigo e já sedimentado por força dos precedentes desta Corte anteriormente referidos.

(…)

Assim enquadrado o direito, o meio justifica o fim, mas não este àquele. Compreendo as grandes dificuldades de caixa que decorrem do sistema de seguridade social pátrio. Contudo, estas não podem ser potencializadas, a ponto de colocar-se em plano secundário a segurança, que é o objetivo maior de uma Lei Básica, especialmente no embate cidadão-Estado, quando as forças em jogo exsurgem em descompasso. Atente-se para a advertência de Carlos Maximiliano, isto ao dosar-se a carga construtiva, cuja existência, em toda interpretação, não pode ser negada:

“Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos” (Hermenêutica e Aplicação do Direito – Ed. Globo, Porto Alegre – segunda edição, 1933 – pág. 118)”.

E, ainda sobre os limites do papel do legislador ordinário na aplicação de conceito constitucional no exercício da competência tributária, não será despropositado invocar outro precedente, o do RE nº 116.121-3-SP, em que a Corte julgou inconstitucional a exigência de imposto sobre serviços na “locação de bens móveis”, por delirar do conceito de serviços pressuposto pela Constituição na outorga de competência aos municípios. Da ementa consta:


“TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto Sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – art. 110 do Código Tributário Nacional.”

13. A regra contida no art. 195, I, da Constituição da República, dá à União competência para instituição de tributo específico (contribuição social), como forma de custeio de sua atuação na seguridade social (art. 149), que compreende um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194, caput).

É típica regra de competência, pela qual deve:

“(…) entender-se-á o poder de ação e de atuação atribuído aos vários órgãos e agentes constitucionais com o fim de prosseguirem as tarefas de que são constitucional ou legalmente incumbidos. A competência envolve, por conseguinte, a atribuição de determinadas tarefas bem como os meios de ação (“poderes”) necessários para a sua prossecução. Além disso, a competência delimita o quadro jurídico de atuação de uma unidade organizatória relativamente a outra.” (12)

Tal competência tributária é administrativa e executiva, mas é também e sobremodo legislativa, visto que, em nosso sistema constitucional, por força do princípio da estrita legalidade tributária (art. 150, I), os tributos somente podem instituídos ou majorados mediante lei. E a regra que a estabelece é classificada entre as normas referentes às “estruturas organizatório-funcionais” do Estado, das quais se diz:

“Um dos mais importantes princípios constitucionais a assinalar nesta matéria é o princípio da indisponibilidade de competências ao qual está associado o princípio da tipicidade de competências. Daí que: (1) de acordo com este último, as competências dos órgãos constitucionais sejam, em regra, apenas as expressamente enumeradas na Constituição; (2) de acordo com o primeiro, as competências constitucionalmente fixadas não possam ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu. Estes princípios justificam a proibição da alteração das regras constitucionais de competência dos órgãos de soberania, mesmo no caso de exceção constitucional”. (13)

Em nossa ordem constitucional, estas características soam ainda mais agudas ante a coexistência de quatro esferas federativas dotadas de competências tributárias diversas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e a necessária conformação de seu exercício às expressas “limitações constitucionais ao poder de tributar” e aos direitos e garantias individuais.

A competência tributária, entendida como aptidão para criar tributos em abstrato,(14) é vista, na doutrina, como “reclamo impostergável dos princípios federativo e da autonomia municipal e distrital, que nosso ordenamento jurídico consagrou” (15):

“Ora, na infinidade de aspectos concretos que pode atingir a Federação, na infinidade de orientações que pode assumir o federalismo, dependentes das circunstâncias peculiares a cada povo, há certos fatores básicos, certos elementos permanentes que poderemos definir como sendo o estabelecimento da coordenação dentro da subordinação; a distribuição de competências autônomas, sob o controle de um poder superior que é o da Constituição; a repartição, enfim (de poderes) de natureza diversa, ajustados, mas não atritados, harmônicos, mas não reciprocamente invasores, integrados no impulsionamento de um mecanismo composto, mas não atravessados como forças contraditórias que se paralisam ou entorpecem estupidamente.

Nos casos de países de Constituição rígida, como se dá entre nós, o problema ainda mais se simplifica. Os limites das competências se encontram claramente estabelecidos; os meios de coordenação das atividades expressamente configurados; os remédios para os distúrbios e invasões de autoridade plenamente preceituados.” (16)

Na espécie, o excesso operado pela Lei nº 9.718/98, equiparando faturamento a qualquer receita, não obstante transponha a esfera de competência fixada pelo conceito de faturamento e atribuída pelo art. 195, I, da CF/88, não implica usurpação de competência, porque podia a União, como ainda pode, instituir novas fontes de custeio da seguridade social com base noutros eventos econômicos, salvos aqueles expressos na discriminação de competências em matéria de impostos, com fundamento no art. 195, § 4º, da CF/88, e, dentre essas novas fontes, as demais espécies de receita. Não se caracteriza, pois, vício material de incompetência.


Do ângulo formal, no entanto, para o fazer de modo lícito, seria mister houvesse obedecido ao disposto no art. 154, I, da Constituição da República, ou seja: i) fosse a contribuição criada por intermédio de lei complementar; ii) fosse não cumulativa; e iii) não tivesse o mesmo fato gerador, nem base de cálculo dos impostos. Ou seja, a instituição de contribuição social sobre as demais modalidades de receita só extrairia fundamento de validade à norma de competência descrita no art. 195, § 4º, da Constituição da República, cuja observância haveria, pois, de ser rigorosa.

Ora, ainda quando, só por argumentar, se estimasse que a previsão, pela Lei nº 9.718/98, da COFINS sobre as demais espécies de receita, figuraria instituição de nova fonte de custeio, o expediente normativo permaneceria inconstitucional por não ter observado a forma prescrita no art. 195, § 4º, da Constituição da República.

Tenho, portanto, por incompatível com a ordem constitucional o disposto no § 1º do art. 3º da Lei nº 9.718/98, seja por distender o conceito de faturamento assumido na redação original do art. 195, I, da Constituição, seja por não instituir nova fonte de custeio nos termos exigidos pelo art. 195, § 4º.

14. Em 16 de dezembro de 1998, foi publicado o texto da Emenda Constitucional nº 20, que alterou a redação do art. 195, I, b, da Constituição da República, adicionando-lhe a palavra “receita”:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;” (grifos nossos)

A partir do início de vigência da Emenda, a competência para instituição de contribuição, mediante lei ordinária, com fundamento no art. 195, I, teria sido alargada para abranger a classe genérica da receita como base de cálculo.

Deve observado ao propósito que não houve alteração material de

competência, pois a União poderia, como ainda pode, instituir nova fonte de custeio, sobre as demais receitas por exemplo, desde que o fizesse nos termos do art. 195, § 4º, da Constituição da República. A mudança, essa deu-se na forma da instituição.

Sob o pálio da nova redação do art. 195, I, b, a COFINS poderia instituída sobre a receita por meio de lei ordinária, sem necessidade de observância dos arts. 154, I, e 195, § 4º. Daqui, os dois reflexos possíveis sobre a Lei nº 9.718/98: i) a edição da Emenda nº 20/98 teria dado novo fundamento de validez à Lei nº 9.718/98, que seria constitucional a partir de então, pois publicada antes de 1º de fevereiro de 1999, data de início de produção de seus efeitos (posicionamento do Min. ILMAR GALVÃO); ii) a Emenda não teria sanado a inconstitucionalidade da Lei nº 9.718/98, por ser a esta posterior e por tratar-se de nulidade irremediável.

15. A Lei nº 9.718/98 foi publicada em 27 de novembro de 1998, sob a égide da redação original da Constituição da República, 20 (vinte) dias antes da EC nº 20/98, e entrou em vigor na data da publicação (17).

Á data do início de sua vigência, a instituição da COFINS sobre os fatos que produzem receitas, não apenas sobre os que geram faturamento, concebido como receita de venda de produtos e de serviços, só seria válida, se se atendesse às prescrições do art. 195, § 4º, da Constituição da República. Mas isso não ocorreu.

Ademais, a Lei nº 9.718/98 feriu o art. 195, I, da Constituição, ao dilatar-lhe o conceito de faturamento, dilatando a base de cálculo e o fato gerador do tributo. E nisso encheu-se de nulidade:

“Essa conseqüência resulta evidente da própria essência do sistema. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis.” (18)

Ao desenvolver o argumento, RUI BARBOSA chama por testemunha a MARSHALL:

“Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição. Com que fim se estipulariam esses poderes, e com que fim se reduziria essa estipulação a escrito, se os limites prescritos pudessem ser ultrapassados exatamente por aqueles, que ela se propunha a coibir? Acabou-se a distinção entre os governos de poderes limitados e os de poderes indefinidos, se os confins, que se estabelecem, não circunscreverem as pessoas, a que se impõem, e ficarem igualmente obrigativos os atos permitidos e os atos defesos.


Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema. Entre as duas alternativas não se descobre meio termo. Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo da Constituição, é nulo. “Esta doutrina está essencialmente ligada às Constituições escritas, e, portanto, deve-se observar como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade.” (19)

A Lei nº 9.718/98 transpôs, sob o ângulo do art. 195, § 4º, os limites formais e, sob o ângulo do art. 195, I, os limites materiais, impostos ambos à União pela Constituição da República para exercício da competência tributária, e a nulidade conseqüente não se convalida pela alteração posterior de seu fundamento de validez, como mostra HUMBERTO ÁVILA com apoio em GUASTINI:

“A invalidade é um fenômeno que não se altera no tempo: a alteração da norma superior não tem o condão de tornar válida uma norma originalmente inválida. A doutrina é clara nesse sentido, como demonstra, por exemplo, o prestigiado Professor italiano de Teoria

Geral do Direito, GUASTINI:

‘Ora, à primeira vista, a validade é uma propriedade totalmente a-temporal. Ela depende de fato, exclusivamente da relação (a-temporal, portanto: lógica, não-cronológica) de uma norma- e do ato normativo que a tenha produzido – com outras normas: uma norma é válida se, e somente se, foi produzida conforme às outras normas (estruturalmente supraordenadas) que lhe regulam a produção e é compatível com as normas (materialmente supra-ordenadas) que lhe limitam o possível

conteúdo.

Na constância das normas e em relação a essas estruturalmente e materialmente supra-ordenadas, cada norma é ou válida ou inválida. Não se pode adquirir validade, nem perdê-la.

Todavia, ainda que seja a-temporal a relação de que depende a validade, podem modificar-se no tempo as normas de referência: as normas, isto é, estruturalmente e materialmente supra-ordenadas à norma de que se trata.

Isto, se não pode fazer adquirir a validade a uma norma originariamente inválida, pode porém, fazer perder a validade de uma norma originalmente válida”. (20)

Desde KELSEN (21), sabe-se que a legislação, como ato de produção normativa, é, a um só tempo, criador e aplicador do direito. Cria direito por introduzir norma no sistema, mas tem de fazê-lo nos estritos termos da competência que lhe foi atribuída, aplicando a norma superior, no caso a Constituição da República, onde residem o fundamento de validade e os limites formais e materiais de seus poderes.

Ora, o parâmetro de controle de legitimidade da lei é a redação do texto constitucional vigente à época da edição da norma subalterna, não, é óbvio, a redação posterior, suposto agora atual, pois era aquela que, regulando a norma de competência legislativa, lhe fixava os limites materiais e formais de exercício.

Se a norma produzida antes da Constituição é com esta compatível, é recebida pelo novo ordenamento; se lhe é hostil, está revogada, ou, o que dá na mesma, perde seu fundamento de validez. A Corte tem-na por revogada:

“CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE.

REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração.

Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura.

A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação de antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. Ação direta que não se conhece por impossibilidade


jurídica do pedido.” (ADI nº 2-1/DF, rel. Min. PAULO BROSSARD, DJ 21.11.97)

No caso, a norma constante do texto atual do art. 195, I, b, da Constituição da República, na redação da EC nº 20/98, embora conciliável com o disposto no art. 3º, § 1º, da Lei 9.718/98, não o poderia convalidar nem receber, porque mareado de nulidade original insanável, oriunda de contraste com regra constitucional vigente ao tempo de sua edição, como, aliás, também advertiu, no parecer já citado, o Min. JOAQUIM BARBOSA:

“Contudo, não é excesso reiterar que essa modificação constitucional não teve o condão de validar a lei originariamente inconstitucional, tendo em vista que o artigo 3º, § 1º da Lei Ordinária nº 9.718/98, quando de sua edição, encontrava-se em desacordo com o permissivo constitucional, considerando-se a redação então vigente.”

Escusa notar quão absurdas seriam a convalidação da afronta constitucional e a repristinação normativa, cuja admissibilidade aniquilaria todo o sistema de controle de constitucionalidade como “meio de defesa e garantia da força normativa da Constituição”22, pois qualquer Emenda ulterior bastaria por ressuscitar regra produzida à revelia das prescrições constitucionais.

16. Parece-me, ao depois, evidentíssimo que a edição da EC nº 20/98 constitui em si mesma o reconhecimento formal e a prova decisiva da inconstitucionalidade da Lei n° 9.718/98 e das diferenças técnico-jurídicas e semânticas entre as noções de faturamento e receita:

“Saliente-se, desde início, que a própria necessidade de modificação, via Emenda Constitucional, da base de cálculo permitida pela Constituição evidencia, de modo cabal, a frontal incompatibilidade da Lei nº 9.718/98 com o texto constitucional vigente no momento da sua edição. Do contrário, seria admitir que o poder legislativo teria modificado a Constituição para que ela continuasse a mesma. Ora, ela foi modificada justamente – e não há outro modo de interpretar – porque a Lei nº 9.718/98 era – e continuou sendo – absolutamente incompatível com o seu suposto fundamento de validade (art. 195, I), na medida em que instituiu contribuições sociais sobre bases de cálculo não previstas pela Constituição então vigente.” (23)

17. Nem se alegue tampouco que a norma atual, como fundamento ulterior de validez, poderia receber a regra produzida em desconformidade com a ordem constitucional antecedente, porque teria operado alteração na forma de exercício da competência, e não, no conteúdo desta.

Porque se concebesse tal recepção, como sucedeu, por exemplo, com as normas gerais dispostas na Lei Federal nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional) e no Decreto-lei nº 406/68, ambos recebidos com status de lei complementar, seria de todo imprescindível que: i) não se configurasse incompatibilidade material; e ii) o dispositivo por receber tivesse sido produzido de forma válida (em relação ao fundamento de validade normativa anterior).

Estaria, no caso, satisfeito o primeiro requisito (i), não, porém, o segundo (ii). O art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/98 foi produzido em descompasso com o regime constitucional cuja observância lhe daria fundamento de validade normativa. E, como já salientou a Corte, enunciando doutrina comum, “afere-se a higidez da lei, em confronto com a norma constitucional vigente na época em que foi sancionada… A lei que invada matéria própria de lei complementar agride diretamente a Constituição” (RP nº 1.556, rel. Min. CARLOS MADEIRA, DJ 29.9.1988).

18. Não é melhor a segunda interpretação proposta pela recorrida, no sentido de que a publicação da EC nº 20/98 em data anterior à do início da produção dos efeitos da Lei nº 9.718/98, o qual se deu a 1º de fevereiro de 1999 em razão da anterioridade nonagesimal, poderia conceder-lhe fundamento de validade.

Como consta de seu art. 15, a Lei nº 9.718/98 entrou em vigor na data da publicação, ou seja, em 26 de novembro de 1998, contando-se-lhe daí a vigência. Apenas sua eficácia é que foi protraída para o dia 1º de fevereiro de 1999. Pela irretocável clareza a respeito, recorro a outra observação de HUMBERTO ÁVILA:

“Motivo bastante para afastar a aceitação da idéia de convalidação é a consagrada distinção dos planos normativos da existência, validade e eficácia. Existente é uma norma que foi criada por uma autoridade aparentemente competente para criar este tipo de norma. Uma norma é vigente, se existente e não ab-rogada. Uma norma é válida, se produzida em conformidade às normas que disciplinam o procedimento de sua criação e se não está em contraste com alguma norma que regula o seu possível conteúdo. Uma norma é eficaz, se é capaz de produzir efeitos ou de ser aplicada. (RICARDO GUASTINI, Teoria e dogmática delle fonti. Milano: Giuffrè, 1998, pág. 132 e 170; PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, t. 4, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 3-7; HANS KELSEN, Reine Rechtslehre. 2. Ed. Wien: Franz Deuticke, 1960, pág. 276. Idem, Allgemeine Theorie der Normen. Wien: Manz, 1979, pág. 211).


Importante é, pois, distinguir a validade da eficácia: a primeira traduz uma relação de conformidade entre lei e constituição; a segunda, a sua aptidão para produzir efeitos e ser aplicada. A norma que regula a aplicabilidade de outra, porque delimita seus destinatários, seu espaço ou tempo de aplicação, não deve ser, sequer, objeto de análise, quando a norma, cuja aplicação visa regular, é originariamente incompatível com a Constituição. Seria como preocupar-se com a inclusão, em agenda, de um compromisso futuro para um defunto. Ainda que se pretenda, e que se tente, não haverá ressurreição.

O importante é que a questão da eficácia (aptidão para produzir efeitos) só se põe quando vencidas as questões ligadas aos planos da existência (a norma tem que ter sido posta) e da validade (a norma deve ter sido criada de acordo com as normas que regulam procedimento de sua criação e delimitam o seu conteúdo). É dizer: não vencidas essas questões, impertinente é a análise do plano da eficácia. Tanto faz se a norma prevê que produzirá efeitos no futuro, se, no momento em que foi criada, não se adequava aos mandamentos constitucionais que regulavam a sua produção e o seu conteúdo. Entendimento contrário seria equivalente – em pensamento metafórico imperfeito, mas ilustrativo – à situação do estudante que, tendo ido muito mal nalguma prova, tenta, após a correção, convencer seu professor de que sua nota deve ser modificada, pelo simples fato de que, depois da entrega da avaliação, sabia quais as respostas certas.

Ora, o fato de a norma constante da Lei nº 9.718/98 ter postergada a sua eficácia para momento em que passou a existir fundamento material para sua validade, não elimina a sua original incompatibilidade com a norma constitucional que delimitava o seu possível conteúdo no momento da sua edição. Se ela não se adequava à Constituição nesse momento, ela é inválida, pouco importando se, depois disso e quando passaria a produzir efeitos, o fundamento constitucional foi modificado. A validade é, enfim, um conceito de relação: norma inferior versus superior no momento de sua edição. Não depois.” (24)

19. Por todo o exposto, julgo inconstitucional o § 1º do art. 3º da Lei nº

9.718/98, por ampliar o conceito de receita bruta para “toda e qualquer receita”, cujo sentido afronta a noção de faturamento pressuposta no art. 195, I, da Constituição da República, e, ainda, o art. 195, § 4º, se considerado para efeito de nova fonte de custeio da seguridade social.

Quanto ao caput do art. 3º, julgo-o constitucional, para lhe dar interpretação conforme à Constituição, nos termos do julgamento proferido no RE nº 150.755/PE, que tomou a locução receita bruta como sinônimo de faturamento, ou seja, no significado de “receita bruta de venda de mercadoria e de prestação de serviços”, adotado pela legislação anterior, e que, a meu juízo, se traduz na soma das receitas oriundas do exercício das atividades empresariais.

Notas de rodapé

(1) PIS – Exclusão do ICM de sua base de cálculo. Revista de Direito Tributário, nº 35, p. 155

(2) “The words ‘people of the United States’ and ‘citizens’ are synonymous terms, and mean the same thing. They both describe the political body who, according to our republican nstitutions, form the sovereignty, and who hold the power and conduct the Government hrough their representatives. They are what we familiarly call the ‘sovereign people’, and very citizen is one of this people, and a constituent member of this sovereignty. The uestion before us is, whether the class of persons described in the plea in abatement compose a portion of this people, and are constituent members of this sovereignty? We think they are not, and that they are not included, and were not intended to be included, under the word ‘citizens’ in the Constitution, and can therefore claim none of the rights and privileges which that instrument provides for and secures to citizens of the United States. On the contrary, they were at that time considered as a subordinate and inferior class of beings, who had been subjugated by the dominant race, and, whether emancipated or not, yet remained subject to their authority, and had no rights or privileges but such as those who held the power the Government might choose to grant them.” (Civil Rights: Leading Cases. Edited by Derrick A. Bell, Jr.. Boston: Little, Brown and Company, 1980, p. 3)

(3) “The only two provisions which point to them and include them, treat them as property, and make it the duty of the Government to protect it…. The Governmet of the United States had no right to interfere for any other purpose but that of protecting the rights of the owner…” (Civil Rights: Leading Cases. cit., p. 23)

(4) SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de lingustique générale. Paris: Payot, 1974, p. 100, § 2. A arbitrariedade do nexo entre significado e significante não quer dizer que este dependa de livre escolha do sujeito que fala, se não que é apenas imotivado, “c’est-àdire arbitraire par rapport au signifié, avec lequel il n’a aucune attache naturelle dans la réalité” (p. 101).


(5) ROSS, Alf. apud CAPELLA, Juan-Ramon. El derecho como lenguaje. Barcelona: Ariel, 1968, p. 248.

(6) ECO, Humberto. Interperetação e superinterpretação. Trad.: MF. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 50. Grifos do original.

(7) “Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

§ 2º A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.”

(8) “Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.”

(9) “Art. 219 – Nas vendas em grosso ou por atacado entre comerciantes, o vendedor é obrigado a apresentar ao comprador por duplicado, no ato da entrega das mercadorias, a fatura ou conta dos gêneros vendidos, as quais serão por ambos assinadas, uma para ficar na mão do vendedor e outra na do comprador. Não se declarando na fatura o prazo do pagamento, presume-se que a compra foi à vista (artigo nº. 137). As faturas sobreditas, não sendo reclamadas pelo vendedor ou comprador, dentro de 10 (dez) dias subseqüentes à entrega e recebimento (artigo nº. 135), presumem-se contas líquidas.”

(10) PIS – Exclusão do ICM de sua base de cálculo. Revista de Direito Tributário nº 35, p. 153-154.

(11) GERALDO ATALIBA e CLEBER GIARDINO. Ob cit., p. 155.

(12) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, p. 488.

(13) CANOTILHO. Op. cit.. p. 491.

(14) CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 437.

(15) CARRAZZA. Op. cit., p. 433.

(16) MELO FRANCO, Afonso Arinos de. Estudos de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, Forense, 1957, p. 148, apud ROQUE CARRAZZA. Op. cit., p. 434.

(17) “Art. 17. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos:

I – em relação aos arts. 2º a 8º, para os fatos geradores ocorridos a partir de 1º de fevereiro de 1999;”

(18) BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. At. por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2003. p. 40.

(19) The writings of John Marshall, late chief justice of the United States, upon the Federal Constitution. Boston, 1839, p. 24, apud RUI BARBOSA. Op. e loc. cits.

(20) ÁVILA, Humberto Bergmann. COFINS E PIS: inconstitucionalidade da modificação da base de cálculo e violação ao princípio da igualdade.In: Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena de julho de 1999, nº 14/99, caderno 1, p. 438.

(21) “O suporte fático [Tatbestand] que deve ser subsumido à norma constitucional quando da decisão sobre a constitucionalidade de uma lei, não é uma norma – fato e norma são conceitos distintos – mas sim a produção de uma norma, um verdadeiro suporte fático material, aquele suporte fático que é regulado pela norma constitucional e que, porque e na medida em que é regulado pela Constituição como qualquer outro suporte fático sob qualquer outra norma. Pois um suporte fático só pode ser subsumido a uma norma se esta regular esse suporte fático, ou seja, estabelecê-lo como condição ou conseqüência. Tanto se um tribunal civil decide sobre a validade de um testamento ou contrato ou declara inconstitucional um decreto para não aplicá-lo no caso concreto, ou se um tribunal constitucional qualifica uma lei como inconstitucional, em todos esses casos é o suporte fático da produção de uma norma que é subsumido à norma que o regula e que é reconhecido como conforme ou contrário a ela. O tribunal constitucional, por outro lado, reage ao julgamento de inconstitucionalidade de uma lei com o ato que corresponde, como actus contrarius, ao suporte fático inconstitucional da produção da norma, isto é, com a anulação da norma inconstitucional, seja apenas – de modo pontual – para o caso concreto, seja – de modo geral – para todos os casos.” (Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 256-257).

(22) CANOTILHO. Op. cit, p. 834.

(23) ÁVILA. COFINS E PIS: Inconstitucionalidade da modificação da base de cálculo e violação ao princípio da igualdade. cit., p. 438.

(24) COFINS e pis… cit., p. 436.

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