Mercado imobiliário

População pagará a conta da súmula do STJ sobre hipoteca

Autor

  • Bruno Mattos e Silva

    é advogado professor de Direito Comercial consultor legislativo do Senado Federal mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha) e bacharel em Direito pela USP. Foi procurador federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores e assessor especial do ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

27 de maio de 2005, 12h19

1. Teor e alcance da Súmula 308

O Superior Tribunal de Justiça editou o seguinte enunciado da súmula da jurisprudência predominante:

“Súmula nº 308. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

Como se vê, a Súmula 308 é expressa no sentido de que não apenas a hipoteca firmada após a celebração do compromisso de compra e venda não é válida contra o compromissário comprador, mas também a hipoteca pré-existente à celebração não seria eficaz.

O locus desse entendimento jurisprudencial é a aquisição de imóvel em sede de incorporação imobiliária. Trata-se, normalmente, de aquisição de coisa futura, mediante pagamento parcelado.

Desde logo se vê o primeiro erro técnico do enunciado: não se trata de hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, pois quem celebra o contrato de financiamento não é construtora, mas sim a incorporadora. A incorporadora pode até ser a construtora do imóvel, mas quando ela celebra contratos com o dono do terreno, com a instituição financeira e com os compradores do imóvel, está agindo como incorporadora e não como construtora.

A despeito desse erro conceitual na redação do enunciado, é evidente que o entendimento se aplica nas relações oriundas da incorporação imobiliária. No caso, o entendimento sumulado é no sentido de que a hipoteca da qual detém a instituição financeira não é eficaz contra o compromissário comprador do imóvel.

Isso significa que a hipoteca celebrada nessas condições não é um direito real, uma vez que não pode ser oposta contra terceiros. O que é essa hipoteca então? Mero direito pessoal da instituição financeira contra a incorporadora, que é a própria parte com a qual o banco celebrou um contrato, ou seja, algo absolutamente inócuo. Logicamente não é possível direito de garantia sem natureza real em que o garante e o devedor são a mesma pessoa.

Além do mais, nada menciona a súmula quanto à necessidade de ter sido o financiamento celebrado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação para sua aplicabilidade. Desse modo, ao menos por uma interpretação literal da do enunciado, é o entendimento da súmula aplicável a qualquer incorporação, decorrente de qualquer financiamento, seja qual for a origem dos recursos.

2. Antecedentes históricos da Súmula 308 e seus equívocos técnicos

O Brasil estava — e com muita razão — sensibilizado com os prejuízos sofridos por milhares ou milhões de mutuários que pagaram o preço de imóveis em construção, a serem construídos ou mesmo prontos em sede incorporação imobiliária, mas não obtiveram ou perderam a propriedade do imóvel ou os direitos a essa aquisição em razão da existência de uma hipoteca.

A hipoteca decorria de um contrato de financiamento celebrado pela incorporadora com uma instituição financeira. O fundamento jurídico dessa hipoteca era ou a inexistência de um compromisso de compra e venda referente ao imóvel em construção a ser dado em hipoteca ou, quando existente o compromisso, a previsão contratual da possibilidade da instituição da hipoteca.

Quando a incorporadora pagava corretamente a instituição financeira, procedia-se à liberação do gravame e às vezes o comprador do imóvel nem mesmo ficava sabendo que seu imóvel esteve hipotecado. Porém, quando a incorporadora não pagava o financiamento, o imóvel — às vezes pronto e já de propriedade do comprador — era utilizado para quitar a dívida da incorporadora com a instituição financeira.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a hipoteca realizada nessas condições não seria válida, sob fundamento de que “regras gerais sobre a hipoteca não se aplicam no caso de edificações financiadas por agentes imobiliários integrantes do sistema financeiro da habitação, porquanto estes sabem que as unidades a serem construídas serão alienadas a terceiros, que responderão apenas pela dívida que assumiram com o seu negócio, e não pela eventual inadimplência da construtora”(1).

Na verdade, a hipoteca é um direito real e, como direito real, é oponível contra todos (erga onmes), inclusive contra o comprador (se não for assim, não é hipoteca!), inexistindo qualquer lei a dizer que a hipoteca no âmbito de financiamento imobiliário não é direito real ou não é oponível contra o comprador.

Tecnicamente, nas condições que estamos tratando, deve a hipoteca conferida pela incorporadora ao banco ser considerada nula em razão de ser nula a cláusula contratual que a gerou, por força de ser abusiva a cláusula que permite ao banco hipotecar a unidade já compromissada à venda, nos termos do Código do Consumidor, art. 39, V(2) e art. 51, IV(3). Nesse sentido, a nulidade da cláusula que permite à incorporadora hipotecar o imóvel foi afirmada pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, por meio da Portaria no 3, de 15-3-2001(4).


Além do mais, é plenamente aplicável ao caso o art. 422 do novo Código Civil, que estabelece a obrigação dos contratantes de agirem com boa-fé, que é entendida como exigência de um comportamento leal. Salvo em situações específicas, dar um imóvel compromissado à venda em garantia de um débito da incorporadora não é um comportamento leal, especialmente quando essa dívida não é paga!

Seja como for, o fato é que restou pacificado pela jurisprudência que não pode a incorporadora hipotecar a unidade já compromissada à venda, nem mesmo se isso estiver expressamente autorizado no contrato com o comprador.

Até certo tempo atrás, a jurisprudência do STJ diferenciava a hipótese da hipoteca ter sido efetivada (isto é, registrada no cartório de registro de imóveis para conhecimento público) antes da celebração do compromisso de compra e venda da hipótese em que a hipoteca é constituída após o imóvel ser compromissado à venda. De forma correta, afirmava o STJ em vários precedentes que era válida a hipoteca quando o comprador tinha adquirido o imóvel já hipotecado(5).

Posteriormente, alargando o entendimento inicial do STJ de que a hipoteca constituída após o compromisso de compra e venda não era válida, vários julgados afirmaram que até mesmo a hipoteca anterior ao compromisso de compra e venda não seria válida na incorporação imobiliária realizada com recursos do SFH(6).

Essa situação é totalmente diferente, não havendo razão para se alegar boa-fé ou aplicar o Código do Consumidor para proteger o comprador que comprou imóvel já hipotecado! Uma situação é a pessoa que adquire um imóvel já hipotecado; outra é a situação da pessoa que adquire um imóvel que, posteriormente, vem a ser hipotecado com fundamento em uma cláusula contratual manifestamente nula.

Data venia, acredito que os precedentes que determinam a invalidação da hipoteca nas hipóteses em que o comprador adquiriu o imóvel já hipotecado decorrem de uma aplicação automática e sem maiores meditações da jurisprudência que entende ser inválida a instituição de hipoteca em imóvel já compromissado à venda. Dizer que a hipoteca não é válida só porque os recursos são originários do SFH não encontra o menor amparo legal, decorrendo de tese equivocada do STJ.

Com o advento da Súmula 308, foi alargada ainda mais o entendimento do STJ quanto à invalidade ou ineficácia da hipoteca: nada menciona o enunciado quanto a origem dos recursos, vale dizer, se o compromisso de compra e venda e o financiamento foram realizados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação. De acordo com a redação da súmula, esse elemento foi omitido, tornando-se irrelevante (ao menos pela interpretação literal do enunciado), aplicando-se o entendimento sumulado a qualquer incorporação decorrente de qualquer financiamento!

3. Conseqüências políticas da Súmula 308

Parecem-me sinceras as boas intenções dos julgadores responsáveis pela jurisprudência que deu origem à Súmula 308, que pretende proteger o comprador que adquire um imóvel hipotecado, em um país carente de assistência jurídica (a despeito do astronômico número de advogados existentes no mercado, muitos dos quais de boa qualidade técnica).

A primeira conseqüência da adoção dos precedentes equivocados que me vem à mente é a possibilidade de adoção, por parte dos bancos, de alienação fiduciária em vez de hipoteca para a garantia dos financiamentos. Isso, por si só, não causaria dano algum à sociedade. Porém, qual será o entendimento do STJ quanto à validade da alienação fiduciária realizada no âmbito dos financiamentos imobiliários? Considerará que o banco é proprietário do imóvel? Como se vê, está inaugurada mais uma era de incertezas e de insegurança jurídica.

No nosso sistema jurídico, como qualquer estudante de direito aprende nos bancos das faculdades e também na vida prática, a atividade bancária não é um serviço público, mas sim uma atividade econômica, embora dependente de autorização do Poder Executivo. As instituições financeiras, como é sabido por todos, não são entidades filantrópicas, preocupadas com o bem estar da sociedade brasileira. Para as instituições financeiras, o financiamento imobiliário é um negócio lucrativo como qualquer outro.

Quando há um aumento do risco em qualquer atividade econômica, os agentes apenas aceitam continuar nessa atividade caso o retorno (lucro) aumente na mesma proporção. Caso contrário, podem eles naturalmente buscar outras atividades em que há uma melhor relação entre risco e retorno.

Como o risco do financiamento imobiliário vem aumentando em razão do aumento de uma suposta proteção conferida aos compradores de imóveis, é evidente que as taxas de juros exigidas pelos agentes financeiros será maior.


Na verdade a questão é ainda mais grave, extravasando os limites do financiamento imobiliário: existe mais uma redução da segurança jurídica, pois como não se sabe mais se uma hipoteca vale alguma coisa, ainda que constituída sem qualquer nulidade, também não se pode prever como agirão os tribunais em face de outros institutos jurídicos consolidados. Quando é menor a segurança jurídica, maior é a taxa de lucro exigida pelos agentes econômicos.

Portanto, as conseqüências políticas da adoção dessa orientação não serão boas para a população brasileira: adivinhe quem vai pagar a conta do maior risco bancário? Com certeza, serão as mesmas pessoas que pagarão a conta da redução da segurança jurídica: a população brasileira, principalmente os desempregados, que tanto necessitam de um maior incremento na produção para seu bem estar social.

Notas de rodapé

(1) STJ, REsp no 187.940-SP, citado por ocasião do julgamento do REsp no 205.607-SP, 4a Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 11-5-1999, DJ de 1-7-1999.

(2) “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços dentre outras práticas abusivas: (…) V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;”

(3) “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”

(4) O item no 15 da Portaria afirma ser abusiva cláusula que “preveja, no contrato de promessa de venda e compra de imóvel, que o adquirente autorize ao incorporador alienante constituir hipoteca do terreno e de suas acessões (unidades construídas) para garantir dívida da empresa incorporadora, realizada para financiamento de obras”.

(5) “CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. HIPOTECA ANTERIOR. Se, à data da promessa de compra e venda, o imóvel já estava gravado por hipoteca, a ela estão sujeitos os promitentes compradores, porque se trata de direito real oponível erga omnes; o cumprimento da obrigação de escriturar a compra e venda do imóvel sem quaisquer onerações deve ser exigida de quem a assumiu, o promitente vendedor. Recurso especial conhecido, mas não provido” (STJ, 3a Turma, REsp 314.122/PA, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 27-6-2002, DJ de 5-8-2002).

(6) “CIVIL E CONSUMIDOR. IMÓVEL. INCORPORAÇÃO. FINANCIAMENTO. SFH. HIPOTECA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-FÉ. NÃO PREVALÊNCIA DO GRAVAME. 1 – O entendimento pacificado no âmbito da Segunda Seção deste STJ é no sentido de que, em contratos de financiamento para construção de imóveis pelo SFH, a hipoteca concedida pela incorporadora em favor do Banco credor, ainda que anterior, não prevalece sobre a boa-fé do terceiro que adquire, em momento posterior, a unidade imobiliária. 2 – Recurso especial conhecido, mas não provido.” (STJ, Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 557.369/GO, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, j. em 7/10/2004, DJ de 08/11/2004)

“Direito imobiliário. Recurso especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Construção e incorporação. Contrato de financiamento para a construção de imóvel (prédio com unidades autônomas). Recursos oriundos do SFH. Outorga, pela construtora, de hipoteca sobre o imóvel ao agente financiador. Posterior celebração de compromisso de compra e venda com terceiros adquirentes. Invalidade da hipoteca. É nula a hipoteca sobre a unidade autônoma outorgada pela construtora ao agente financiador em data posterior à celebração da promessa de compra e venda com o promissário-comprador. Ainda que constituída e levada a registro em data anterior ao pacto de compromisso de compra e venda, é nula a hipoteca firmada se os recursos ofertados pelo agente financeiro à construtora foram captados junto ao Sistema Financeiro da Habitação. Recurso especial conhecido pela divergência e provido.” STJ, Terceira Turma, REsp nº 316.640/PR, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, j. em 18/5/2004, DJ de 07.06.2004).

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