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Montesquieu enraivecido

Leia artigo escrito pelo ministro Fraciulli Netto

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21 de novembro de 2005, 19h54

(artigo públicado na Consultor Jurídico em 25 de maio de 2005)

Ao entardecer de minha carreira, prestes a findar-se por força da aposentadoria compulsória, vejo com certo espanto e alguma amargura a mudança que houve na magistratura de uns tempos a esta parte.

Recordo-me dos tempos felizes em que ser juiz era um cargo e uma honraria bastantes em si, rido por orgulho, mas por vocação cumprida e satisfeita. Lembro-me da indignação – e por que não dizer tristeza – que causou para boa parte da magistratura paulista a atitude de um desembargador que se aposentara para ser secretário de governo estadual.

Depois a moda quase pegou, uma vez que alguns poucos seguiram a mesma trilha até para servir governos municipais. Nada tenho contra a importância e dignidade desses cargos, mas, sem nunca ter sofrido de “juizite”, para minha satisfação pessoal, a maioria vocacionada continuou fiel à toga.

Os tempos foram evoluindo (ou involuindo) e eis senão quando alguns nem precisam mais se aposentar para incursionar no Executivo e no Legislativo sem maiores cerimônias e chegam até a ditar cátedra, bem como pensam ensinar como a coisa deve ser feita.

Fui dormir com essas conjecturas na cabeça e acabei sonhando com Montesquieu. O sonho sonhado foi ou pareceu ser comprido, daí a razão do resumo que se segue.

Montesquieu, dizendo-se estupefato com o que estava acontecendo em Brasília e alhures, começou por me perguntar se sua obra havia chegado ao Brasil e se era conhecida, a que respondi “sim”, tanto que a tripartição de poderes, alicerçada em O Espírito das Leis, estava tradicionalmente consagrada em nossas constituições.

Na atual, aliás, insculpida no art. 2°, acerca dos princípios fundamentais: são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, princípio nem sequer suscetível de ser abolido por emenda ( art. 60, § 4°, III) .

A única exceção ao princípio da independência dos poderes, ao que parece, atalhei, deu-se com a Constituição de novembro de 1937, a rigor verdadeira Carta outorgada por Getúlio Vargas, apelidada de “Polaca”, por Assis Chateaubriand. Montesquieu, curioso no particular, quis saber a razão do estigma.

A duras penas procurei explicar que, segundo alguns, era por ter sido inspirada na Carta Política da Polônia, fruto do Golpe de Estado de 1921. Para outros, contudo, Francisco Campos (o “Chico Ciência”) , o jurista de Getúlio, ter-se-ia servido da malograda Constituição de Weimer (1919) , da Carta de Trabalho da Itália de Mussolini e da Constituição portuguesa de 1933.

Endossa essa última versão o saudoso desembargador do TJ-SP, Emeric Lévay, historiador do Direito, uma vez que a Carta polonesa, revista em 1926, tornou-se democrática ( cf. site do TJSP,www.tj. sp. gov. br) .

Prosseguindo, indagou-me o barão se por uma deturpação vernácula, em português, por acaso, “harmônico” e “promíscuo” não queriam dizer a mesma coisa, única explicação que ele encontrava para certas condutas de altos próceres do Judiciário brasileiro.

– Até onde sei, Charles – a essa altura do sonho era como se fôssemos amigos desde criancinha –, ninguém medianamente instruído faz semelhante confusão.

Então, Montesquieu, com ares agora de Sherlock Holmes, concluiu que só podia estar acontecendo uma coisa: essas preclaras autoridades estavam confundindo-o com o Nicolau. Nicolau Maquiavel, para quem, em se tratando de poder, todas as artimanhas são válidas.

Já um tanto desolado, quis saber se eram tais mandatários chegados às letras, pois, nos idos do século XVIII, penoso lhe fora contrariar aqueles que, por ciência humana ou por invocação divina, defendiam ser a soberania e, portanto, o poder uno e indivisível.

Elucidar esse aspecto não me foi difícil, pois são letrados, sim; não poucos hauriram seu saber das fontes límpidas de Darcy Azambuja e Ruy Cirne Lima, entre outros, daí por que “o buraco não estava aí, só não sei se estava mais em cima ou mais em baixo”.

Tenho a impressão de ter ouvido um sussurro de meu ilustre interlocutor, ao balbuciar que em um país onde havia até bancada em tribunal tudo era possível.

Disse-lhe por derradeiro se deveria acordar deixando toda a esperança de fora, consoante a inscrição da porta do Inferno de Dante. Conquanto visivelmente enraivecido com o que estava vendo em nosso país, Charles-Louis de Secondat escusou-se de responder, sob a alegação de que entendido no assunto era Maquiavel.

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Montesquieu enraivecido

Em país onde há até bancada em tribunal tudo é possível

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25 de maio de 2005, 19h00

Ao entardecer de minha carreira, prestes a findar-se por força da aposentadoria compulsória, vejo com certo espanto e alguma amargura a mudança que houve na magistratura de uns tempos a esta parte.

Recordo-me dos tempos felizes em que ser juiz era um cargo e uma honraria bastantes em si, rido por orgulho, mas por vocação cumprida e satisfeita. Lembro-me da indignação – e por que não dizer tristeza – que causou para boa parte da magistratura paulista a atitude de um desembargador que se aposentara para ser secretário de governo estadual.

Depois a moda quase pegou, uma vez que alguns poucos seguiram a mesma trilha até para servir governos municipais. Nada tenho contra a importância e dignidade desses cargos, mas, sem nunca ter sofrido de “juizite”, para minha satisfação pessoal, a maioria vocacionada continuou fiel à toga.

Os tempos foram evoluindo (ou involuindo) e eis senão quando alguns nem precisam mais se aposentar para incursionar no Executivo e no Legislativo sem maiores cerimônias e chegam até a ditar cátedra, bem como pensam ensinar como a coisa deve ser feita.

Fui dormir com essas conjecturas na cabeça e acabei sonhando com Montesquieu. O sonho sonhado foi ou pareceu ser comprido, daí a razão do resumo que se segue.

Montesquieu, dizendo-se estupefato com o que estava acontecendo em Brasília e alhures, começou por me perguntar se sua obra havia chegado ao Brasil e se era conhecida, a que respondi “sim”, tanto que a tripartição de poderes, alicerçada em O Espírito das Leis, estava tradicionalmente consagrada em nossas constituições.

Na atual, aliás, insculpida no art. 2°, acerca dos princípios fundamentais: são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, princípio nem sequer suscetível de ser abolido por emenda ( art. 60, § 4°, III) .

A única exceção ao princípio da independência dos poderes, ao que parece, atalhei, deu-se com a Constituição de novembro de 1937, a rigor verdadeira Carta outorgada por Getúlio Vargas, apelidada de “Polaca”, por Assis Chateaubriand. Montesquieu, curioso no particular, quis saber a razão do estigma.

A duras penas procurei explicar que, segundo alguns, era por ter sido inspirada na Carta Política da Polônia, fruto do Golpe de Estado de 1921. Para outros, contudo, Francisco Campos (o “Chico Ciência”) , o jurista de Getúlio, ter-se-ia servido da malograda Constituição de Weimer (1919) , da Carta de Trabalho da Itália de Mussolini e da Constituição portuguesa de 1933.

Endossa essa última versão o saudoso desembargador do TJ-SP, Emeric Lévay, historiador do Direito, uma vez que a Carta polonesa, revista em 1926, tornou-se democrática ( cf. site do TJSP,www.tj. sp. gov. br) .

Prosseguindo, indagou-me o barão se por uma deturpação vernácula, em português, por acaso, “harmônico” e “promíscuo” não queriam dizer a mesma coisa, única explicação que ele encontrava para certas condutas de altos próceres do Judiciário brasileiro.

– Até onde sei, Charles – a essa altura do sonho era como se fôssemos amigos desde criancinha –, ninguém medianamente instruído faz semelhante confusão.

Então, Montesquieu, com ares agora de Sherlock Holmes, concluiu que só podia estar acontecendo uma coisa: essas preclaras autoridades estavam confundindo-o com o Nicolau. Nicolau Maquiavel, para quem, em se tratando de poder, todas as artimanhas são válidas.

Já um tanto desolado, quis saber se eram tais mandatários chegados às letras, pois, nos idos do século XVIII, penoso lhe fora contrariar aqueles que, por ciência humana ou por invocação divina, defendiam ser a soberania e, portanto, o poder uno e indivisível.

Elucidar esse aspecto não me foi difícil, pois são letrados, sim; não poucos hauriram seu saber das fontes límpidas de Darcy Azambuja e Ruy Cirne Lima, entre outros, daí por que “o buraco não estava aí, só não sei se estava mais em cima ou mais em baixo”.

Tenho a impressão de ter ouvido um sussurro de meu ilustre interlocutor, ao balbuciar que em um país onde havia até bancada em tribunal tudo era possível.

Disse-lhe por derradeiro se deveria acordar deixando toda a esperança de fora, consoante a inscrição da porta do Inferno de Dante. Conquanto visivelmente enraivecido com o que estava vendo em nosso país, Charles-Louis de Secondat escusou-se de responder, sob a alegação de que entendido no assunto era Maquiavel.

Artigo publicado na revista Carta Capital

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