Independência Judicial

Democracia se constrói com respeito ao Judiciário

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

24 de maio de 2005, 11h11

“La libertad del novo Mundo es la esperanza del Universo”(Bolívar)

Em outubro de 2003 foi realizado o Seminário Sobre Independência Judicial na América Latina, no Equador, centro da Terra, país que resume todos os atributos da nossa América Latina.

De forma freqüente e equivocada a independência judicial é pensada como um benefício do magistrado, mas por óbvio, não pode ser isto. Independência judicial é o outro nome da garantia dos direitos humanos e da democracia e deve ser preservada para que o Judiciário cumpra seu papel de guardião da Constituição.

Ensina Eugenio Raul Zaffaroni que a independência judicial é a garantia que “o magistrado não estará submetido às pressões de poderes externos à própria magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá as pressões dos órgãos colegiados da própria Magistratura”. Fabio Konder Comparato nos diz que a independência judicial refere-se ao “fato de que os juizes individualmente e o Judiciário como órgão estatal não estão subordinados a nenhum outro poder do Estado, mas vinculam-se sempre, diretamente, ao povo. Soberano, é um mecanismo de proteção dos poderes Públicos destinado a proteger os direitos fundamentais da pessoa humana”.

Com essas premissas, não podemos deixar de constatar a fragilidade desta garantia para os cidadãos latino americanos e, portanto, da democracia, especialmente abalada no Equador, em função dos atos dos três Poderes.

Em janeiro de 2005, em Porto Alegre, realizou-se o Fórum Mundial de Juízes, dentro da programação do Fórum Social Mundial, sob a coordenação do magistrado João Ricardo Costa. Juizes de diversos países puderam melhor conhecer os problemas que afligem a democracia latino americana, as violações da independência judicial, de toda ordem, de várias formas, em diversos países e também no Equador. O relato da delegação deste país, coordenada pelo juiz Carlos Poveda Moreno, juiz penal de Cotopaxi levou os participantes do fórum a apresentar moção de apoio pela independência judicial, gravemente ferida.

Parcela dos juízes equatorianos refletiam sobre o grau de legitimidade da magistratura levando em conta a falta de comprometimento do Poder com os cidadãos na execução dos serviços próprios de Justiça, bem como sobre a necessidade de modificação na estrutura do poder, na forma de ingresso, entre outras graves deficiências.

Em 2004, o então presidente Lucio Gutierrez convoca extraordinariamente o Poder Legislativo para analisar e resolver a situação jurídica e constitucional da Função Judicial. É o marco do atentado à ordem democrática.

O Congresso Nacional começa a sessão extraordinária no dia 8 de dezembro e atua, ao arrepio da Constituição, de forma geral e não sobre pontos específicos. No dia 9 de dezembro afasta vinte e sete dos trinta e um juízes da Corte Suprema, que são advertidos de que seriam retirados do prédio com uso de força policial. Determina que em um prazo de no máximo 15 dias se reestruturará a composição do Conselho Nacional da Magistratura, que por sua vez fará os encaminhamentos para a nomeação do novo chefe do Ministério Público e dos demais Ministros das Cortes Superiores.

Conclui-se, pois, que o Poder Executivo quer concentrar todos os poderes em suas mãos, ferindo os princípios que regem um país democrático, o que aprofunda a crise institucional, já aflorada no campo social, econômico e político, tendo em vista o não cumprimento das promessas eleitorais do então presidente.

Vale destacar que a violação ao princípio era tão patente que em 13 de janeiro deste ano o presidente da Corte Suprema, Ramón Rodrigues, renunciou ao cargo para o qual fora recentemente nomeado. Conforme consta da sua carta de renúncia, havia pressões relativa às designações dos ministros das cortes superiores e ele se mostrava contrário a uma resolução do Pleno deste tribunal que proibia a publicação das listas dos indicados para que a sociedade civil se pronunciasse sobre a candidatura.

Os desdobramentos da crise levaram ao Equador o Relator Especial da ONU sobre a Independência de Magistrados e Advogados, Leandro Despuy, no mês de março deste ano. Logo após a visita, tendo em vista a gravidade da crise, em caráter preliminar, já relata que é imperativo o restabelecimento do Estado de Direito e aponta como cerne da crise a destituição e nomeação dos novos magistrados para Corte Suprema, Corte Constitucional e Tribunal Superior Eleitoral.

O Relator Especial recomenda que os responsáveis pela crise tomem medidas para corrigir a situação gerada pela remoção e designação dos magistrados e assim restabelecer a ordem democrática, que somente poderá ocorrer com elementos mínimos para composição das cortes, tais como: independência dos juizes; procedimento pelo qual os cargos vagos sejam preenchidos por eleição nos termos da lei; sistema de nomeação de juizes que garanta a capacidade e probidade para o exercício do cargo e que o processo seja transparente, permitindo a participação dos cidadãos.

De longa data, os instrumentos internacionais afirmam que a independência judicial é requisito essencial do Estado de Direito e da democracia. O Equador e o Brasil são signatários destes documentos e expressaram perante a comunidade internacional o compromisso de garantir a independência do sistema judicial. Confira-se o Pato Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966.

No Sétimo Congresso das Nações Unidas, realizado em agosto de 1985, o tema mereceu especial destaque. Naquela oportunidade a ONU adotou os princípios básicos relativos à independência judicial. Destacou entre outros princípios que a independência da judicatura deve ser garantida pelo Estado; que todas as instituições governamentais e de outra natureza devem respeitar e acatar o princípio de independência; que é necessário que os julgamentos sejam realizados sem pressões, ameaças, intromissões, aliciamentos; que todos as pessoas têm o direito de julgamento com obediência às normas procedimentais; que se garantirá a inamovibilidade dos magistrados; que os juizes, assim como os demais cidadãos, gozam da liberdade de expressão, associação, crença e reunião, preservando a dignidade de suas funções e a imparcialidade e independência da judicatura; que cada Estado membro proporcionará recursos adequados para que a judicatura possa desempenhar devidamente as suas funções.

Observando exclusivamente este último item, podemos afirmar que na América Latina todos os jurisdicionados padecem pelo descumprimento desta norma, Os Estados membros não se empenham para que a jurisdição seja concretizada de forma adequada, afora o grande problema do acesso a justiça (em São Paulo, não há Defensoria Pública até hoje, embora nossa Constituição Federal seja de 1988!!).

Os fatos, de um modo ou de outro, se repetem em toda a América Latina. Presidentes eleitos em razão de uma plataforma viram as costas para o que é devido. O povo, com as mais variadas formas, dá a resposta. Certamente cobrará o que lhe cabe e nesta medida não será possível que venham a se esconder em outros países.

Neste momento, imaginei, como Eduardo Galeano, que a América fosse uma mulher sussurrando seus segredos, os atos de amor e de violação que a criaram. Ouço ela dizer que o povo equatoriano está construindo a democracia e que a balança da Justiça deve ter o seu maior peso no prato da liberdade e da razão, única forma possível do triunfo sobre a força econômica.

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