Violação à privacidade

Quero monitorar os e-mails dos ministros do TST!

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18 de maio de 2005, 20h18

Por muito tempo, os funcionários de milhares de empresas valeram-se de máquinas de escrever, papéis, envelopes e outros materiais de escritório para o envio de correspondências pessoais. Tal apropriação indébita dos materiais de escritório da empresa jamais serviram de causa excludente de antijuridicidade ou mesmo de culpabilidade para que o empregador violasse a correspondência de seus funcionários.

Da mesma forma, em relação ao telefone, sempre houve a sua utilização dentro das empresas para uso pessoal. Ainda que muitas delas procurassem coibir o uso excessivo do telefone em virtude das altas tarifas, nunca se cogitou que o empregador pudesse “grampear” as comunicações de seus funcionários para interceptar suas conversas.

A invenção do e-mail é tão-somente mais um meio de comunicação, mas ao contrário do tradicional uso pessoal do papel e do telefone nas empresas, que sempre foi resguardado pelo direito fundamental à privacidade, em recente decisão, a Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho entendeu ser lícito ao empregador monitorar os e-mails de seus trabalhadores.

A empresa HSBC Seguros Brasil SA rastreou os e-mails de um de seus empregados e constatou que ele o utilizava para o envio de imagens eróticas aos colegas e o demitiu por justa causa. O funcionário recorreu à justiça do trabalho por entender que houve ofensa a seu direito à privacidade. Os ministros do TST, porém, consideraram que o e-mail é uma ferramenta de trabalho e, portanto, não haveria qualquer violação à privacidade por parte da empresa.

Não se contesta o interesse legítimo das empresas de controlarem a quantidade de e-mails que trafega em seus servidores, mas isso é perfeitamente possível de ser feito sem a necessidade de acesso direto ao conteúdo dos e-mails. Pode-se, por exemplo, impedir o uso de anexos, inclusive filtrando os arquivos de imagens, o que inibiria o envio das indesejáveis imagens eróticas. Pode-se também limitar o número de mensagens enviadas por dia e, ao extremo identificar o e-mail dos destinatários para os quais o empregador envia sua correspondência eletrônica. Mas o rastreamento do conteúdo das correspondências é flagrante violação ao direito fundamental à privacidade, inexplicavelmente tolerado pela decisão do TST.

A privacidade é um direito fundamental da pessoa humana. Um ser humano não deixa de ser humano ao entrar em seu ambiente de trabalho e, por lá estar, não perde seu direito à privacidade. O que diferencia um empregado de um escravo não é a mera remuneração, mas também direitos personalíssimos que não podem ser usurpados pelo empregador e a privacidade é certamente um destes direitos.

Se é certo que um empregador não pode dar chibatadas em seu empregado que trabalha mal, pois estaria praticando crime de lesão corporal, certo é também que não pode violar a correspondência de seus empregados, pois estaria praticando ato ilícito ainda que não crime (inaplicável à espécie seria o artigo 151 do CP, pois não se poderia considerar e-mail uma “correspondência fechada”, sem violar a vedação à analogia in malam partem imposta pelo princípio constitucional da legalidade).

Nem se diga que disposições contratuais entre empregador e empregado expressamente prevêem a possibilidade da vigilância, pois tais cláusulas são flagrantemente potestativas. Não se pode abrir mão, por via contratual, de um direito fundamental constitucionalmente garantido. Tal como seria nula uma cláusula que permitisse ao empregador castigar o empregado relapso com chibatadas, nula é a cláusula que permite o acesso ao conteúdo do e-mail do empregado que o usa para fins pessoais.

A prevalecer o entendimento da Primeira Turma do TST só nos resta defender a idéia de que o povo (que em última análise é o empregador dos membros do poder judiciário, executivo e legislativo) também tenha o direito de monitorar os e-mails de juízes, desembargadores, ministros, deputados, senadores e, por que não, do Presidente da República. Se os e-mails de órgãos públicos são meros instrumentos de trabalho de representantes da soberania popular, não há por que garantir qualquer privacidade na troca destas correspondências. Tais e-mails deveriam ser publicados diariamente em uma página da Internet com acesso público, para que qualquer cidadão tome conhecimento do conteúdo de tais mensagens.

Ou seria a privacidade um privilégio de uma elite de trabalhadores? Aos demais, restaria a vigilância constante, dos e-mails, das câmeras de vídeo, dos chips implantados em seus corpos. O empregador não mais se contenta em controlar a força, o trabalho, o corpo de seus empregados; quer vigiar seus sonhos, seu ócio, sua alma.

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