Função do Congresso

Leia o voto de Ellen Gracie na preliminar da anencefalia

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14 de maio de 2005, 13h25

“A sociedade brasileira precisa encarar com seriedade e consciência um problema de saúde pública que atinge principalmente as mulheres das classes menos favorecidas. E deve fazê-lo por meio de seus legítimos representantes perante o Congresso Nacional, não, ao contrário, por via oblíqua e em foro impróprio, mediante mecanismos artificiosos”.

A afirmação é da ministra Ellen Gracie, que votou contra a admissão da ADPF — Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental para discutir a legalização do aborto nos casos de fetos anencéfalos. Ellen foi voto vencido. A ADPF foi admitida por 7 votos a 4.

Para a ministra, “não há o Supremo Tribunal Federal de servir como ‘atalho fácil’ para a obtenção de resultado – a legalização da prática do abortamento – que os representantes eleitos do povo brasileiro ainda não se dispuseram a enfrentar”, afirmou a ministra.

Também votaram contra a admissibilidade ADPF como instrumento processual para o caso os ministros Eros Grau, Carlos Velloso e Cezar Peluso. Votaram a favor os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Nelson Jobim.

A ação foi ajuizada em junho do ano passado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Os ministros derrubaram a hipótese levantada pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, de que a competência para discutir o assunto seria do Congresso, já que a interrupção de gestação de fetos anencéfalos não está prevista em lei.

Leia o voto da ministra Ellen Gracie

TRIBUNAL PLENO

QUEST. ORD. EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54-8 DISTRITO FEDERAL

V O T O

A Senhora Ministra Ellen Gracie

1. Senhor Presidente, na sessão anterior, de 20.10.04, manifestei-me exclusivamente quanto à manutenção da medida liminar que fora deferida monocraticamente pelo eminente Relator, logo após o encerramento da última sessão que antecedeu as férias forenses de julho de 2004.

Pareceu-me, naquele passo, que não se colocava a urgência autorizadora de um provimento monocrático, pois o objeto da ação são normas velhas de 65 anos confrontadas com princípios de uma Constituição que já completou 16 anos de vigência e também porque a forma processual adotada não se presta ao exame de casos concretos nos quais, aí sim, a entrega da prestação jurisdicional só será útil se manifestada em tempo breve.

Portanto, o controle concentrado de constitucionalidade, sem a premência de um caso concreto, aconselharia o exame detalhado da questão pelo colegiado.

Também entendi que estava ausente a plausibilidade da ação proposta que, à primeira vista, parecia-me inadequada para a veiculação da questão de mérito controvertida. Por isso, sem minimamente tangenciar a questão de fundo, formei com a maioria em oposição ao referendo da liminar.

2. Entendo, Senhor Presidente, que o primeiro exercício – difícil, mas necessário para o deslinde da controvérsia – está em olvidarmos, neste momento da discussão, qual o tema em debate nesta ADPF. É indispensável que se ponha de parte a passionalidade com que são defendidas as posições favoráveis e contrárias ao abortamento para que possamos com clareza refletir sobre a adequação do meio processual utilizado. É este um momento importantíssimo de conformação do novo instrumento de controle de constitucionalidade que a doutrina tem apontado como “misterioso e esotérico” (RONALDO POLETTI) e para cuja clarificação a recente regulamentação pela Lei nº 9.882/99 pouco contribuiu (INGO SARLET).

Se isso é bom, porque deixa ao Tribunal ampla margem de discricionariedade na construção do instituto, corresponde também a enorme responsabilidade para com o futuro. As diretrizes que traçarmos devem ter a consistência necessária para enfrentarem o teste dos anos vindouros e haverão de servir como parâmetro para as impetrações que se seguirem. O Tribunal haverá, portanto, de agir na construção desse instituto com a cautela e a serenidade que lhe têm assegurado, ao longo das décadas, o respeito e a credibilidade perante a comunidade jurídica e a Nação.

Ora, como disse, a presente impetração nos coloca diante da necessidade de darmos forma e figura à ADPF. Até o presente momento (27.04.2005), segundo verifiquei, 70 dessas medidas já foram ajuizadas, não tendo nenhuma delas alcançado manifestação de mérito. Dentre elas, 38 não foram conhecidas (1). Das 32 restantes, 7 encontram-se sobrestadas aguardando o julgamento da ADI nº 2.231. Em apenas uma, a liminar foi deferida e referendada pelo Plenário. Trata-se da ADPF nº 33, rel. o Ministro Gilmar Mendes.

Por isso, é fundamental tentar esquematizar o debate reduzindo ao mínimo a ingerência da polêmica que inflama a matéria de fundo para que – neste momento – nossa atenção se concentre exclusivamente na conformação do instituto novo. Antes do controle de constitucionalidade propriamente dito, é preciso que a Corte proceda ao controle de passionalidade e coloque, de forma objetiva, o conteúdo da ação.


3. O que vem ao crivo do Tribunal nesta ação? Uma norma velha de 65 anos que, ao momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi recepcionada, como todo o Código Penal. Essa disposição de lei comina com pena privativa de liberdade quem promova o abortamento. Criadas foram duas exceções em que tal prática não será penalizada.

O que a ação pretende é fazer inserir, nesse dispositivo, por criação jurisprudencial, uma terceira causa exculpante. Ou seja, que, além do abortamento sentimental (gravidez fruto de violência) e do abortamento terapêutico (risco para a vida da mãe), também seja isento de penalidade o abortamento de feto diagnosticado como anencefálico. É, sem dúvida, atuação legislativa que se pretende do Tribunal.

A esse propósito, é preciso também registrar que inúmeras são as iniciativas parlamentares tendentes a alargar as excludentes de ilicitude da prática de abortamento. Sete desses projetos (2) encontram-se em tramitação conjunta nas casas legislativas, um deles foi arquivado no Senado em 21.10.04 (3) e outro, em regime de tramitação ordinária, aguarda parecer (4).

Por isso, “não há como deixar de conferir à pretensão da autora o evidente intuito de ver instituído, por meio de decisão judicial, em controle concentrado de constitucionalidade, aquilo que o legislador, até hoje, não concedeu, ao não aprovar projetos de lei, no Congresso Nacional, com objetivo de introduzir, no sistema do Código Penal, a hipótese de não punição de aborto praticado, quando se comprovarem graves anomalias no feto, em termos a não apresentar condições de sobrevida. (…) Assim sendo, não é de admitir-se que, por meio de interpretação conforme a Constituição, consoante pretende a autora, no bojo de procedimento de controle concentrado de constitucionalidade de normas, as quais explicitamente regulam instituto jurídico penal, com contornos específicos, se venha a instituir hipótese outra de excludente de punição, quando o legislador, de forma inequívoca e estrita, alinha os casos em que o crime em referência não se pune, máxime, na espécie, diante da existência de proposta legislativa em exame no Congresso Nacional.” (5)

4. Entendo não se tratar de matéria que se ajuste às hipóteses de cabimento da ADPF. Li e reli a bem lançada peça inaugural e devo dizer, não sem antes elogiar o engenho com que se houve seu ilustre autor, que nela vislumbro uma tentativa de artificiosa utilização do novo instituto, com um objetivo que nele, porém, não se comporta. O objeto da ação corresponde inegavelmente à tentativa de obter do Supremo Tribunal Federal manifestação jurisdicional que acrescente ao ordenamento penal uma nova hipótese de excludente de ilicitude da prática de abortamento. Ou seja, pede-se ao Tribunal que atue como legislador positivo, preenchendo tal lacuna. A tal prática o Tribunal já se tem recusado nas demais formas de controle.

O pedido, consoante depreendo da inicial, talvez melhor se pudesse enquadrar na moldura da antiga interpretação de lei, com eficácia normativa do sistema anterior à Constituição de 1988. Pela Emenda Constitucional nº 7/77, deferiu-se ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar representação do Procurador-Geral da República “para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual”. A propósito, refere o eminente Ministro José Néri da Silveira, em seu parecer:

“Segundo a disciplina regimental expedida pelo Supremo Tribunal Federal, na Emenda Regimental nº 7, de 23/8/78, após o julgamento da representação, o sentido e alcance da lei ou ato normativo federal ou estadual seriam os fixados na interpretação proclamada, implicando sua não observância negativa de vigência do texto interpretado, cumprindo considerar existente, em princípio, violação a literal disposição de lei para os efeitos do art. 485, V, do Código de Processo Civil, ou negativa de vigência da lei, se federal, aos fins do recurso extraordinário, com apoio no art. 119, III, alínea “a”, da Emenda Constitucional nº 1/1969, consoante examinei a espécie no trabalho intitulado ‘O Supremo Tribunal Federal e a interpretação jurídica com eficácia normativa’, inserto em ‘Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal’, Editora Universidade de Brasília, 1982, págs. 131/153. Cuidava-se aí, de medida adotada, apenas, em situações especiais em que interesse público superior estivesse a justificar, desde logo, o pronunciamento do Alto Tribunal do país, que detinha, então, a competência não só de guardião da Constituição, mas também da unidade do direito federal infraconstitucional e da uniformidade de sua interpretação.”

Porém, no mesmo texto, ressalta o Ministro José Néri que: “Tal instrumento, que não era de controle de constitucionalidade, veio, todavia, a ser extinto no sistema da Constituição de 1988.”


5. O objeto da ação é, como já disse antes, o de acrescentar conteúdos à norma vigente. Ora, a jurisdição constitucional é normalmente convocada para expungir do ordenamento normas que estejam em descompasso com a Constituição, não para oferecer acréscimos ao ordenamento positivo em usurpação à competência dos outros dois poderes.

Circunstâncias há, porém, em que as disposições de inconstitucionalidade tornam necessário o preenchimento de lacunas criadas pela própria decisão. Por isso, fala-se em efeitos aditivos que podem ter as sentenças dos Tribunais Constitucionais. São decorrência, são efeitos periféricos ou colaterais de decisões preponderantemente ablativas e que, ao declararem uma inconstitucionalidade, invalidam a situação de segurança jurídica que se baseara na presunção de legitimidade da norma ou ato administrativo, com base nas quais muitas relações se terão desenvolvido.

Consciente dessa realidade, o Tribunal Constitucional então adota as medidas necessárias a evitar oneração excessiva a todos quantos de boa-fé regraram sua atuação pelo diploma ou ato viciado. Não conheço, porém, exemplo de jurisdição constitucional em sistema de direito codificado (Civil Law) que seja provocada para atitude exclusivamente criadora de direito, como se vê no caso presente. No direito alemão, por exemplo, os efeitos da sentença correspondem a anular a decisão judicial, o ato administrativo ou o ato legislativo que desrespeitou ou deixou de observar um preceito fundamental.

Sempre numa atividade de excisão, não de inclusão de regras. Entre nós, mesmo na avaliação da inconstitucionalidade por omissão, este Tribunal tem-se limitado a assinalar ao legislador a falha diagnosticada, não se adiantando a preenchê-la.

Não se ignora que as decisões dos Tribunais Constitucionais possam ter efeitos aditivos, mesmo nos países do sistema do Civil Law. Essa possibilidade decorre de um processo de polinização cruzada mediante o qual espécies diferentes de sistemas jurídicos incorporam características um do outro. O movimento convergente dos grandes sistemas jurídicos tem sido assinalado pela doutrina e corresponde a uma das faces virtuosas da globalização. Assim, os efeitos aditivos das sentenças dos Tribunais Constitucionais são objeto de estudo aprofundado.

Em palestra proferida nesta capital, durante o ano passado, o ilustre Professor J.J. Gomes Canotilho alinhou uma revisão dos prós e contras de uma posição mais ativista dos diversos Tribunais Constitucionais europeus. De logo, sinalou o fato de que, contrariamente às cortes italiana e alemã, que têm recusado reduzir-se ao modelo do “legislador negativo” kelseniano, nos sistemas português, espanhol e brasileiro, a justiça constitucional exibe um maior self restraint quanto a esse papel normador. E, no capítulo em que arrolou objeções às sentenças aditivas, o ilustre autor destacou:

a) Em primeiro lugar, que “Facultar aos Tribunais Constitucionais a faculdade de produzirem normas não decididas pelo legislador e não derivadas expressa e inequivocamente de uma regra Constitucional será investir os mesmos tribunais em funções legislativas e administrativas, funções essas que os mesmos Tribunais não possuem, incorrendo as referidas decisões normativas em vício de usurpação de poder”;

b) Em segundo lugar, que “Cometer aos Tribunais Constitucionais a faculdade de preencherem lacunas e emprestar às normas criadas jurisprudencialmente para o efeito força de caso julgado (na fiscalização concreta) será violar a competência atribuída aos tribunais comuns para procederem à integração dessas lacunas”;

c) Como terceira objeção, entende ele que “Conferir força obrigatória à parte aditiva da sentença será investir a regra criada pelo Tribunal Constitucional numa potência superior à da própria lei, e desviar o fim dos processos de fiscalização de inconstitucionalidade por acção, para o controlo de omissões. Tal seria tanto mais inaceitável, quanto o facto de em muitos ordenamentos não se ter contemplado o instituto da inconstitucionalidade por omissão e naqueles em que se previu (Portugal e Brasil) os efeitos da declaração de omissões são desprovidos de efeitos sancionatórios ou injuntivos, se se tratar de leis. Dar-se-ia, assim, por via de um processo inadequado, o do controlo da validade por acção, efeitos mais intensos à reparação das omissões do que no próprio processo de controlo da inconstitucionalidade por omissão, o que seria ilógico”;

d) Por último, alerta ele para o fato de que “o alargamento automático de certos benefícios de prestação a categorias que a lei julgada parcialmente inconstitucional excluía ou não contemplava pode violar outras disposições constitucionais, como as das leis-travão que asseguram a estabilidade orçamental”.


Refere como exemplo a seguinte hipótese: “Se uma decisão do Tribunal Constitucional alargar certos subsídios relevantes, a estrangeiros residentes, não incluídos numa previsão legal, a qual os conferia apenas a nacionais, disso resultará um aumento anômalo de despesa, violando-se as regras constitucionais que impedem iniciativas não governamentais que desequilibrem negativamente o orçamento.”

O exemplo que, entre nós, demonstraria com maior clareza este inconveniente poderia decorrer da fixação judicial de um valor para o salário mínimo, com base nas garantias asseguradas pelo art. 7º, IV, da Constituição Federal.

O ilustre constitucionalista, ao tomar posição sobre o tema, considera como não desconformes com a Constituição as sentenças que descodifiquem algum conceito jurídico indeterminado contido na Constituição. Nesse caso, entende ele que “se o decisor constitucional renunciou a definir um conceito que se afigura como uma medida de valor de normas jurídicas, é porque decidiu conceder uma delegação implícita ao Tribunal Constitucional para o concretizar por via jurisprudencial”.

A tais sentenças atribui ele um poder e uma abrangência extraordinários, pois consoante expressa: “embora os critérios de orientação interpretativa não valham como norma constitucional, o facto é que os mesmos, no caso de ganharem estabilidade e permanência, ficarão investidos de uma força persuasiva e de um poder de autoridade criativos de Direito, funcionando como parâmetro de outras decisões jurisdicionais com um valor assimilável ao de uma regra constitucional escrita. Transformam-se, pois, em Direito Constitucional Complementar, de caráter não escrito, operando como parâmetro das decisões de constitucionalidade. A sua substituição apenas poderá operar mediante alteração da orientação jurisprudencial ou através da alteração ou definição em sentido diferente do conceito indeterminado, mediante revisão constitucional.”

No caso brasileiro, exemplo de tais decisões conformadoras de preceitos imprecisos seriam as que definissem a amplitude e a abrangência da expressão “preceito fundamental”, inserida no § 1º, III, do art. 102 da Constituição Federal.

6. Mas, é de ver que a própria lei regulamentadora do instituto encontra-se submetida ao juízo de inconstitucionalidade na ADI nº 2.231.

Logo, antes de qualquer outra perquirição é preciso verificar se a ação tem seu trâmite desimpedido ou se depende de definições que estão pendentes de resposta em feitos que lhe sejam cronologicamente anteriores. Parece-me que sim, porém, como os votos que me precederam avançaram no exame da matéria, assim também o farei. A Constituição Federal é suscinta ao mencionar a argüição de descumprimento de preceito fundamental no § 1º do inciso III, do art. 102.

Diz, simplesmente, que “A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.

O que o constituinte instituiu, portanto, sob o nomen juris de argüição de descumprimento de preceito fundamental foi nova fórmula para controle da constitucionalidade de atos do Poder Público relativamente apenas a princípios sensíveis da Carta, aqueles que, sem especificação, são denominados “preceitos fundamentais” que será exercitada pelo Supremo Tribunal Federal, em forma a ser definida por legislação ordinária.

O fato de que esta nova fórmula para controle de constitucionalidade não esteja elencada no rol definidor da competência originária da Corte pode causar estranheza, mas pode, também, dar ensejo a que se compreenda que tanto na forma autônoma de ação, quanto na de incidente, possa ser veiculada a pretensão. Este parece ter sido o entendimento da comissão redatora do anteprojeto de que resultou a Lei nº 9.882/99.

A lei regulamentadora distinguiu com clareza duas modalidades de argüição: a preventiva (evitar lesão) e a repressiva (reparar lesão). Alega-se que criou, todavia, – e nesse ponto há debate aberto pendente perante o Plenário (6) – modalidade de argüição de descumprimento de preceito fundamental abstrata ou por equiparação, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 9.882/99, que estendeu a aplicabilidade do instituto às controvérsias relevantes sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive os anteriores à Constituição. Segundo Alexandre de Moraes, em seu “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, neste passo a norma regulamentadora “distanciou-se do texto constitucional”.

Diz ele “O texto constitucional é muito claro quando autoriza à lei o estabelecimento exclusivamente da forma pela qual o descumprimento de um preceito fundamental poderá ser argüido perante o Supremo Tribunal Federal. Não há qualquer autorização constitucional para uma ampliação das competências do Supremo Tribunal Federal. Controvérsias entre leis ou atos normativos e normas constitucionais, relevantes que sejam, não são hipóteses idênticas ao descumprimento pelo poder público de um preceito fundamental, e devem ser resolvidas em sede de controle de constitucionalidade, tanto difuso quanto concentrado. O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição”.


Sérgio Rezende de Barros é ainda mais incisivo. Para ele a Lei nº 9.882/99 “foi além da forma processual e alterou a forma substancial do instituto, para transformá-lo em ação direta”. Diz o mesmo autor que “Inegavelmente é inconstitucional atribuir mediante lei ordinária uma tal competência ao Supremo Tribunal Federal, pois é evidente no sistema de controle constituído em 1988 – e já foi fartissimamente apontada pela doutrina e pela jurisprudência constitucionais – a recusa de controlar leis ou atos normativos municipais, bem como leis ou atos normativos anteriores, em relação à Constituição Federal vigente. Trata-se de indisfarçável ampliação de competência, levada a efeito inconstitucionalmente, como parte do objeto (parágrafo único do art. 1º) atribuído à argüição de descumprimento pela Lei nº 9.882/99.” (7)

Nesse tópico, a doutrina só faz eco à jurisprudência da Casa, que tem sido reiterada no sentido preconizado pelo eminente Min. José Carlos Moreira Alves: “… o controle da inconstitucionalidade das leis em tese, ainda quando deferido – como sucede no Brasil – ao Poder Judiciário, não é, ao contrário do que ocorre com o controle incidenter tantum (que, por isso mesmo, foi admitido nos Estados Unidos da América do Norte, independentemente de texto constitucional que o consagrasse expressamente), ínsito à atribuição jurisdicional (aplicar a lei válida e vigente ao caso concreto submetido ao judiciário), mas ato de natureza eminentemente política, uma vez que, por ele, se julga, diretamente e em abstrato, a validade de ato dos outros poderes do Estado (o Legislativo e o Executivo), em face dos preceitos constitucionais a que todos os poderes devem guardar obediência.

(…)

Por isso mesmo, o controle de constitucionalidade in abstracto (principalmente em países em que, como o nosso, se admite, sem restrições, o incidenter tantum) é de natureza excepcional, e só se permite nos casos expressamente previstos pela própria constituição, como consectário, aliás, do princípio da harmonia e independência dos poderes do Estado.” (RE nº 109.098, rel. Min. Moreira Alves)

Na mesma linha já se manifestaram outros ilustres constitucionalistas. Donde concluir-se que desborda da competência do legislador ordinário a possibilidade de erigir competência nova (Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental …) onde a Constituição não a deferiu.

Mas, mesmo que admitida a ampliação de competência do Supremo Tribunal Federal para apreciar a higidez da legislação pré-constitucional em face da Carta de 88, restaria a indagação quanto ao veículo para esse questionamento. Se o caput do art. 1º regula a argüição autônoma ou direta, o par. único cogita de uma modalidade incidental.

O voto do Min. Néri da Silveira, único colhido até agora no julgamento da Medida Liminar na ADI 2.231 (hoje com vista ao Min. Sepúlveda Pertence), acolheu em parte o pedido no que diz respeito ao inciso I, do par. único do artigo 1º da Lei nº 9.882/99, para dar-lhe interpretação conforme. Nos dizeres de S. Exa., na conclusão de seu voto, “fica excluída de sua aplicação (do art. 1º, par. único, I) controvérsia constitucional concretamente já deduzida em processo judicial em curso, o qual assim fica imune à sua incidência.” No referido voto, longo, de 52 laudas, S. Exa., todavia, não tratou autonomamente da possibilidade, ou não, de serem contrastados, face à Constituição atual, os atos legislativos a ela anteriores, tudo levando a crer que S. Ex.ª admitiria tal hipótese, desde que não colocada no bojo de processo já submetido ao crivo judicial. Ou, em outras palavras, desde que não representasse disfarçada fórmula avocatória de feitos regularmente distribuídos a seu juízo natural.

Mas, penso eu, a interpretação conforme do referido inciso I (único sobrevivente do parágrafo único, desde que vetado o inciso de nº II) leva ao seu total esvaziamento, pois não há como interpretar que “a controvérsia constitucional”, em que se faça presente o “relevante fundamento” que justifique a instauração do procedimento incidente, de que trata o dispositivo, possa se manifestar em outra sede que não a jurisdicional.

A controvérsia sobre a constitucionalidade de atos do Poder Público (ou, como no caso presente, a inconstitucionalidade por omissão de legislação pré-constitucional) não pode ser compreendida como uma eventual divergência manifestada no seio da comunidade jurídica, ou da sociedade em geral, a respeito do tratamento que de lege ferenda deva ser conferido a uma determinada questão. Não é evidentemente a controvérsias acadêmicas que o novo instituto visa dirimir. Aliás, fosse este o seu objetivo, teríamos algo de monstruoso, do ponto de vista da liberdade de pensamento, dados os efeitos que se atribuem à decisão, aplicável erga omnes e com força vinculante.


7. Penso que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – que já é, sem sombra de dúvida, dados os aportes que incorporou dos dois grandes sistemas do direito comparado, extremamente complexo e completo para não deixar fora de judicial review qualquer possibilidade de afronta aos dispositivos constitucionais – não pode, por isso mesmo, afastar-se de algumas balizas lógicas que se construíram ao longo de sua evolução.

Por isso, além do vício formal de criação da nova modalidade de argüição de descumprimento de preceito fundamental por lei ordinária, em matéria que se reserva à atuação de constituinte reformador, verifico, também, que a possibilidade de contraste entre norma pré-constitucional e Constituição vigente está na contramão da lógica vigorante no sistema de controle brasileiro.

O Tribunal tem entendido que é conflito intertemporal aquele que opõe lei pré-constitucional à nova Constituição. Neste sentido, leia-se, na esteira de tantas decisões que compõem a memória desta Corte, a palavra límpida do Min. Paulo Brossard: “a lei só poderá ser inconstitucional se estiver em litígio com a Constituição sob cujo pálio agiu o legislador. A correção do ato legislativo, ou sua incompatibilidade com a lei maior, que o macula, há de ser conferida com a Constituição que delimita os poderes do Poder Legislativo que elabora a lei, e a cujo império o legislador está sujeito. E em relação a nenhuma outra. O legislador não deve obediência à Constituição antiga, já revogada, pois ela não existe mais. (…) Muito menos à

Constituição futura, inexistente, por conseguinte, por não existir ainda. É por essa singelíssima razão que as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham.”(8)

A esse propósito, não resisto a registrar o lúcido ensinamento de Victor Nunes Leal, citado por Paulo Brossard: “Parece-nos mais acertada a corrente que vê na incompatibilidade entre a lei anterior e a Constituição nova um simples caso de revogação e não de inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, porque o conflito que aí se abre é tipicamente um conflito de normas no tempo: a norma anterior considera-se revogada pela promulgação da norma posterior com ela incompatível.

Pouco importa que, na hipótese, a norma posterior não tenha apenas este caráter de norma posterior, mas seja também uma norma superior do ponto de vista hierárquico. A razão parece clara. O vício de inconstitucionalidade importa nulidade da lei. A lei que ofende a Constituição é como se não existisse, e a sua nulidade resulta da incompetência do órgão que a editou, já que o legislador ordinário não tem poder para emendar a Constituição. Mas, se a norma constitucional, com a qual a norma legal é incompatível, for posterior a esta, então não era incompetente o órgão que promulgou a norma legal, porque ao tempo de sua promulgação o legislador ordinário não exorbitara de sua competência: como a norma questionada não era incompatível com a Constituição vigente na época, não pertencia ela à competência do legislador constituinte, mas justamente à competência do legislador ordinário que a decretou.

Nessas condições como é possível considerar que uma lei seja válida até o momento da promulgação do novo texto constitucional e daí por diante se considere nula ou inexistente? Se nulidade houvesse, essa nulidade atingiria a lei desde o seu nascimento, e conseqüentemente deveriam ser desfeitas todas as relações jurídicas constituídas sob a sua égide. Mas tal não acontece. As relações jurídicas que se constituíram ao amparo da norma em questão até o momento de ser promulgado o novo texto constitucional com ela incompatível são plenamente válidas e subsistentes.

Desse momento em diante é que a lei deixa de operar, mas não por motivo de nulidade. E sempre que uma lei opere validamente até determinado momento e daí por diante deixe de operar, em virtude da expedição de uma norma nova, o fenômeno jurídico que temos é o da revogação, pouco importando que a norma nova seja de categoria igual ou superior à da norma anterior revogada. O mesmo fenômeno se passa quando uma lei nova é incompatível com uma norma regulamentar anterior, expedida legitimamente nos limites do poder regulamentar. A norma do regulamento, no caso, não se tornou ilegal em virtude da norma legal nova, mas simplesmente foi revogada.”(9)

Em nosso sistema, portanto, a apreciação destes atos em que se questione a recepção ou não da legislação anterior se comporta na jurisdição concreta e difusa, podendo chegar ao exame do Supremo Tribunal Federal na via do recurso extraordinário.


Mas, como estamos diante de instituto novo, em boa parte influenciado pela experiência constitucional européia, devemos, necessariamente, refletir sobre a realidade do direito comparado. Colho ensinamento de um dos redatores do anteprojeto de que resultou a Lei nº 9.882/99, o eminente colega Min. Gilmar Mendes que leciona: “A práxis austríaca parte do princípio de que o objeto do controle abstrato de normas, nos termos do art. 140 da Lei Constitucional, não são apenas as leis federais e estaduais, mas também as antigas Leis do Reich e dos Estados, desde que tenham sido recebidas em conformidade com o preceituado nas Disposições Transitórias de 1920. A discussão sobre a constitucionalidade dessas leis antigas deve ser examinada, todavia, em face das disposições constitucionais vigentes à época”.(10).

A conformação do instituto, através da Lei nº 9.882/99, porém, foi muito além de sua matriz no direito comparado, quando admite – ilimitadamente – o questionamento da legislação pré-constitucional em face do texto constitucional vigente: “A Lei nº 9.882/99 não previu a existência de prazo fatal para o ajuizamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, afastando-se, portanto, dos modelos austríaco e alemão previstos para o recurso constitucional perante os respectivos Tribunais Constitucionais. Na Áustria, o prazo é de seis meses a contar da prática do ato inconstitucional do poder público, enquanto na Alemanha, o recurso constitucional deve ser interposto, em regra, no prazo de um mês da violação dos direitos fundamentais, salvo na hipótese de dirigir-se contra uma lei ou ato especial do poder público contra o qual não se admita o controle judicial, quando então o prazo será de um ano da entrada em vigor da lei ou da emissão do ato,conforme prevê o art. 93 da Lei do Tribunal Constitucional” (11).

Em se tratando de legislação pré-constitucional, há de se imaginar que tais prazos sejam contados a partir da entrada em vigor dos novos parâmetros constitucionais com os quais as referidas normas estariam em choque. Assim é, aliás, no direito espanhol, em que a criação do Tribunal Constitucional é recente, “a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Espanhol prevê, no art. 33, um prazo de três meses para a instauração do processo de controle abstrato de normas a contar da publicação da lei ou do ato normativo com força de lei. Nos termos do art. 2º das disposições transitórias dessa Lei, aplica-se ao controle abstrato de normas, ao recurso constitucional e aos conflitos de competência o prazo previsto de três meses para os atos anteriormente editados, a contar da data de instituição do Tribunal.” (15/7/1980) (12).

Faço tais referências para demonstrar o exagerado elastério em admitir o questionamento pela via da ADPF de todo o regramento pré-constitucional, sem qualquer limitação preclusiva. Estaríamos transformando a ordem jurídica do país – que já é um vasto emaranhado de disposições contraditórias, boa parte das quais de natureza provisória – numa sede de absoluta insegurança.

8. Pelas razões expostas, não posso deixar de alinhar com as ponderações do eminente Min. José Néri da Silveira, para quem “Não é de admitir-se que, por meio de interpretação conforme à Constituição, consoante pretende a autora, no bojo de procedimento de controle concentrado de constitucionalidade de normas, as quais explicitamente regulam instituto jurídico penal, com contornos específicos, se venha a instituir hipótese outra de excludente de punição, quando o legislador, de forma inequívoca e estrita, alinha os casos em que o crime em referência não se pune, máxime, na espécie, diante da existência de proposta legislativa em exame no Congresso Nacional. Não tenho como possível, desse modo, o Poder Judiciário fixar juízo de natureza normativa, antecipando-se à deliberação dos outros Poderes Políticos, a tanto competentes, excluindo em decisão, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, do âmbito de incidência de normas infraconstitucionais anteriores à Constituição vigente, a situação em foco que, de resto, em princípio, está envolta em questões de fato pendentes de comprovação técnica complexa”. (13)

Entendo, Senhor Presidente, que a sociedade brasileira precisa encarar com seriedade e consciência um problema de saúde pública que atinge principalmente as mulheres das classes menos favorecidas. E deve fazê-lo por meio de seus legítimos representantes perante o Congresso Nacional, não, ao contrário, por via oblíqua e em foro impróprio, mediante mecanismos artificiosos que, inobstante o brilho com que deduzidos os argumentos na inicial e na sustentação oral pelo eminente Professor Luiz Roberto Barroso, acarretaria uma ruptura de princípios basilares, como o da separação de poderes e a repartição estrita de competências entre eles.


Pareceme profundamente antidemocrático pretender obter, por essa via tão tortuosa da ADPF, manifestação a respeito de um tema que, por ser controverso na sociedade brasileira, ainda não logrou apreciação conclusiva do Congresso Nacional, ainda que registradas tantas iniciativas legislativas em ambas as Casas. Não há o Supremo Tribunal Federal de servir como “atalho fácil” para a obtenção de resultado – a legalização da prática do abortamento – que os representantes eleitos do povo brasileiro ainda não se dispuseram a enfrentar.

Além do mais, contrastar, por via da ADPF, um ato normativo anterior com a Constituição atual só pode ter o efeito de concluir pela sua revogação (não recepção) no todo ou em parte, pela ordem constitucional superveniente. Nunca terá o resultado de acrescentar àquela norma anterior à ordem vigente palavras ou conteúdos novos.

Este é, aliás, o testemunho trazido por um dos autores do anteprojeto, Prof. Ives Gandra da Silva Martins, quando expressa, “Jamais imaginamos que o veículo criado para que o Poder Judiciário protegesse, como legislador negativo, e não positivo, preceito fundamental violado pudesse ser utilizado para criar nova hipótese legal, via Poder Judiciário, e não Poder Legislativo.”

9. Por todas estas razões é que não conheço da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Notas de rodapé

(1) Argüições de descumprimento de preceito fundamental não conhecidas:

25 por ilegitimidade ativa ad causam ou ausência de capacidade postulatória;

9 por existência de outro meio judicial eficaz para alcançar o efeito pretendido;

2 por atacarem projeto de lei ou projeto de emenda constitucional;

1 por inépcia da inicial; e,

1 por perda de objeto.

(2) São eles os:

PL 4304/2004, autor Dep. Eduardo Valverde – PT/RO;

PL 3.744/2004, autor Dep. Coronel Alves – PL/AP;

PL 2.929/1997, autor Dep. Wigberto Tartuce – PPB/DF;

PL 1.956/1996, autora Dep. Marta Suplicy – PT/SP;

PL 1.76/1995, autor Dep. José Genoíno – PT/SP;

PL 3.280/1992, autor Dep. Luiz Moreira – PTB/BA;

PL 1.174/1991, autor Dep. Eduardo Jorge – PT/SP.

(3) Trata-se do PLS 183/2004, autor Sen. Duciomar Costa.

(4) Trata-se do PL 1.135/1991, autor Dep. Eduardo Jorge – PT/SP.

(5) Parecer oferecido pelo Min. José Néri da Silveira e encaminhado pela União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, fl. 9.

(6) ADI nº 2.231.

(7) Sérgio Resende de Barros, O Nó Górdio do Sistema Misto, in ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL : Análises à luz da Lei nº 9.882/99, São Paulo, Ed. Atlas, 2001, p. 194

(8) Paulo Brossard, Constituição e Leis a Ela Anteriores, in Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, p.16.

(9) Idem, p. 21.

(10) Gilmar Ferreira Mendes, Argüição de descumprimento de preceito fundamental: Parâmetro de Controle o Objeto, in ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL : Análises à luz da Lei nº 9.882/99, São Paulo, Ed. Atlas, 2001, p. 136.

(11) Alexandre de Moraes, Comentários à Lei nº 9.882/99 – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, in ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL : Análises à luz da Lei nº 9.882/99, São Paulo, Ed. Atlas, 2001, p. 20.

(12) Gilmar Ferreira Mendes, op. cit., p. 137.

(13) Parecer citado, p. 9

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