Vida de mãe

Juiz do RS autoriza aborto de feto anencefálico

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13 de maio de 2005, 13h06

Uma mulher grávida de feto anencefálico foi autorizada a fazer aborto. O juiz substituto Rafael Pagnon Cunha, da comarca de Tupanciretã, no Rio Grande do Sul, concedeu liminar na quarta-feira (11/5) autorizando a interrupção da gravidez.

O juiz entendeu que não há a possibilidade de colisão de direitos fundamentais da gestante e do feto por inexistência técnica de “vida” a ser resguardada. “Tenho tão-só os direitos da mãe (e do pai e de seus familiares) a serem preservados.”

De acordo com processo, o problema foi diagnosticado após três exames distintos de ultra-sonografia e ecografia quando a autora estava com sete meses de gestação. As informações são do TJ-RS.

Para o juiz é impossível avaliar a dor que a autora deve estar sentindo com a notícia da anencefalia do seu bebê. Ele analisou jurisprudência e estudos sobre o tema, e concluiu que não há dúvidas de que o feto sucumbiria após o nascimento enquanto a mãe passaria por inúmeras dificuldades, durante a gravidez. “Com um pouco de ciência e muito de coração, pela vida da Mãe”, concluiu o juiz.

Processo nº 076.105.000.475-0

Leia a íntegra da liminar

“A dignidade humana põe-se na lágrima vertida sem pressa, sem prece e, principalmente, sem busca de troca. Tal como se tem no pranto de Antígona, a dignidade não provoca, não intimida, não se amedronta. Tem ela a calma da Justiça e o destemor da verdade. É por isso que Antígona representa a dignidade do ser humano para além da vida, a que se acha sem rebouços nos momentos extremos da experiência humana e nos quais desimporta a conduta do outro ou a correspondência de seu sentimento, de sua fé ou de seu pensamento em relação àquele que se conduz dignamente. Dignidade é alteridade na projeção sociopolítica tanto quanto é subjetividade na ação individual”. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência (os Novos Domínios Científicos e Seus Reflexos Jurídicos). Publicado na obra coletiva O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 27.

“O trem da liberdade, da redenção, da ÉTICA, da dignidade está passando. Ele não vai parar na estação à nossa espera. Quem quiser terá que saltar, ousadamente, para dentro dele, e quem não o fizer vai ficar para trás. Os que lutam para segurar a História, mantendo mofadas estruturas, teimando em resistir à pluralidade necessária, estão perdendo o tempo de saltar para o trem da história”. (José Paulo Bisol, ao discursar no dia 02.07.1987 na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher – Assembléia Nacional Constituinte).

“O Direito é (…) uma força de transformação da realidade. É sua a tarefa ‘civilizatória’, reconhecida através de uma intrínseca função promocional, ao lado da tradicional função repressiva, mantenedora do status quo”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 71.

Vistos.

I – Recebo a elogiavelmente bem articulada inicial.

Defiro AJG.

II – Cuida-se de decidir pleito de expedição de alvará para interrupção terapêutica de gestação, narrando a inicial que a Autora, gestante com 28 semanas de gravidez, após ultra-sonografia e ecografia, teve seu feto diagosticado portador de anencefalia, o que inviabiliza a vida extra-uterina.

Acostou relatório médico que dá conta da certeza da anencefalia, pontuando a realização de exame ultrassonográfico em três exames ecográficos distintos em si realizados.

Juntou documentos.

Requereu a pronta interrupção da gravidez.

Relatada a espécie.

PASSO AO FUNDAMENTAR.

PROLEGÔMENOS – O DIREITO, O JUIZ, A PESSOA HUMANA

Cumpre registrar, prefacialmente ao exame (técnico?) do caso em tela, que, com ímpar assombro, me dou conta, ao compulsar o pedido liminar, que a espécie propicia situação que tenho como porventura inédita: experimentar a sensação que o exercício jurisdicional pode ensejar não só pura gratificação, mas sentimentos inenarráveis.

Sentimentos que palavras não conseguem expressar.

Que tão-somente a alma e o coração que pulsa por baixo da – simbólica – toga podem exprimir.

Que não se pode descrever.

Que se pode tão-só sentir.

Isso pois que minha Amada Esposa se acha, após percalços que o Destino nos reservou, grávida de nossa(o) primeira(o) filha(o).

O policiamento do inconsciente e a decisão da presente questão é exercício, portanto, duro, sofrido e que judia, mas ao qual não me poderei furtar (em mais de seis anos de exercício jurisdicional, proclamei minha suspeição em nenhum feito).

O Magistrado, ao reverso do Advogado – ambos essenciais à distribuição da Justiça, rememore-se -, não pode eleger as causas que abraçará.


A todos os feitos que a si tocar deverá dizer o Direito – não tão-somente o que — em determinado momento histórico e com legitimidade nem sempre presente — disse o Legislador, mas o que o Sistema/Ordenamento Constitucional prevê –, e isso com a mesma dedicação, engajamento e comprometimento e com igual emoção (sem a qual nos tornamos autômatos, máquinas, mais e mais distantes dos Jurisdicionados – não das “partes”, representações em letras registradas nas ‘pilhas’ em nossa frente, mas distantes das pessoas humanas a quem, um dia, juramos distribuir Justiça; e a quem devemos tal compromisso todos os dias de nossa carreira).

No entanto, se a dor que rasga minh’alma neste momento – e que me faz rabiscar estas linhas, há mais de quatro horas, com os olhos francamente embargados -, o que se dirá da dor que leva a Autora em seu coração?

O que se dirá de uma mulher que porta, em seu ventre, durante vinte e oito semanas, um manancial de sonhos, expectativas e planos que, após a realização de uma bateria de exames, se esvaem de um momento para outro?

A imprevista e nunca desejável derrubada de um Castelo de sonhos e simbologias é perda inavaliável!

Em verdade, quem poderá aquilatar a imensidão de uma dor tal senão quem por tal perda já passou?

Cumpre, portanto, com o peito aberto, levar a efeito o exame do thema.

ANENCEFALIA – CARACTERES – CONSEQÜÊNCIAS

Acerca das características da anencefalia, reproduzo inicialmente, a manifestação de José Aristodemo Pinotti, Deputado Federal e Professor Titular de Ginecologia da USP:

A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. As evidências têm demonstrado que a diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí sua maior freqüência nos níveis socioeconômicos menos favorecidos. O Brasil é um país com incidência alta, cerca de 18 casos para cada 10 mil nascidos vivos, a maioria deles do sexo feminino.

O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia tornou-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líquido amniótico obtido por amniocentese.

A maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas sempre é questão de dias. As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líquido amniótico), levando as mães a percorrerem uma gravidez com risco elevado. (http://www.febrasgo.org.br/anencefalia2.htm, acesso em 11.05.05).

É esclarecido por Jorge Andalaft Neto, Presidente da Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista por Leis, no saite da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia que se trata de patologia fetal letal em 100% dos casos, e que o recém-nato poderá falecer minutos após o parto (http://www.febrasgo.org.br/anencefalia1.htm, acesso em 11.05.05).

Em fecho, no tópico, a pesquisa efetivada pelo Des. ALEXANDRE MUSSOI MOREIRA, em profundo e técnico artigo nominado Anencefalia e antecipação de parto (a legislação de Buenos Aires), publicado na Revista da AJURIS, vol. 95, setembro de 2004, p. 7 e ss:

A anencefalia é uma alteração congênita da qual resulta a ausência dos dois hemisférios cerebrais e estrutura óssea do crânio, a situação é irreversível, entretanto, tal não equivale à morte cerebral.

Conforme PESSINI e BARCHIFONTAINE:

“Não corresponde exatamente, no plano médico, à ‘morte cerebral’. O sinal inequívoco desta reside na constatação da ausência funcional total e definitiva do tronco cerebral. Ora, este está presente nos fetos anencéfalos e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias fora do útero materno.”

Conforme SEBASTIANI, a anencefalia é a falta de desenvolvimento dos hemisférios cerebrais, do hipotálamo, o desenvolvimento incompleto da hipófise e do crâneo, com as estruturas faciais alteradas que lhe dão uma aparência grotesca e anormalidades nas vértebras cervicais, existe a função do tronco encefálico que pode estimular vários reflexos, como as funções do coração e pulmões, por um período curto de tempo sendo que alguns anencéfalos apresentam ações de pressão, sucção, respondendo a estímulos dolorosos, ou seja, há um reflexo doloroso do tronco encefálico – este detalhe tem importância na medida em que identifica a existência de um arco reflexo intacto.


A anencefalia é um tipo de defeito do tubo neural, assim como a espinha bífida – coluna vertebral aberta, apresentando um ou dois casos a cada mil nascimentos com vida.

Durante a gravidez o encéfalo e a coluna vertebral desenvolvem-se em forma de um prato plano de células que formará o referido tubo. Se este tubo não restar fechado totalmente, produz-se o chamado defeito de tubo neural aberto (ONTD – sua sigla em inglês), sendo possível que esta abertura fique exposta (80% dos casos) ou que seja coberta por ossos e pele (20% dos casos).

Os casos de ONTD mais freqüentes, entre eles a anencefalia, em mais de 90% dos casos, têm origem em casais sem histórico familiar relacionado ao problema. Estas anomalias resultam de uma combinação de gens herdados de ambos os pais, somada a diversos fatores ambientais, daí porque são consideradas de risco hereditário multifatorial, ou seja, vários fatores, genéticos e ambientais, contribuem para sua incidência. Entre alguns dos fatores ambientais, pode-se incluir uma diabetes não controlada na mãe ou o uso de medicamentos controlados, por exemplo.

Estas anomalias congênitas se manifestam com uma freqüência cinco vezes maior nas mulheres do que nos homens, sendo que, nascido um bebê com ONTD em uma família, a possibilidade de recorrência aumenta de 3 a 5%, sendo relevante notar que o tipo de anomalia pode ser outro.

O diagnóstico pré-natal é possível, possibilitado o acompanhamento visual de parte do desenvolvimento intra-uterino a partir de cinco semanas de gestação (após a data da última menstruação) através da ultra-sonografia, a qual funciona segundo o mesmo princípio de um sonar (ondas refletidas pela estrutura do feto são captadas, formando sua imagem).

Além da ultra-sonografia, outros exames também são levados a efeito para detectar a ocorrência da anencefalia, ressaltando-se, em especial: alfafetoproteína (proteína produzida pelo feto, que é eliminada no líquido amniótico, podendo níveis anormais desta indicar a existência de defeitos encefálicos ou na medula espinhal, fetos múltiplos, erro no cálculo da data do parto ou transtornos cromossômicos) e amniocentese (exame para determinar existência de transtornos cromossômicos e genéticos, além de defeitos congênitos, consistente em inserir uma agulha através da parede abdominal e uterina até o saco amniótico para tomar uma amostra do líquido amniótico).

Inexiste tratamento para a anencefalia, havendo apenas tratamento preventivo, que consiste na administração de ácido fólico às mulheres com histórico relacionado ao problema, ainda antes de engravidar. Devido à falta de desenvolvimento do encéfalo, aproximadamente 75% dos bebês nascem mortos e o restante não consegue sobreviver mais que horas, dias ou semanas.

Dúvidas não há, assim, que o feto sucumbirá após seu nascimento.

DIGNIDADE DA(S) PESSOA(S) HUMANA(S) – COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS?

No presente tópico, de pronto rememoro, com INGO, que se mostra inafastável dever do Estado – Estado-Jurisdição incluso – impedir a violação da dignidade da pessoa humana:

… todos os órgãos, funções e atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte de protegê-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos) contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência, vale dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares, especialmente – mas não exclusivamente – dos assim denominados poderes sociais (ou poderes privados).

KARL LARENZ, pronunciando-se sobre o tema, reconhece, na dignidade pessoal, a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio.

Oportuna, ainda, é a transcrição dos apontamentos de MORAES, o qual, versando o dispositivo constitucional que contemplou a dignidade da pessoa humana como princípio fundante e fim principal de nosso Estado, ponderou que a dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas a pessoas enquanto seres humanos.

A dignidade da pessoa humana, portanto, é centro, norte e vértice normativo e axiológico do sistema.

Sim, “e os direitos do feto?”, questiona, por todos, MUSSOI MOREIRA, no inquietante artigo dantes referido.


Estar-se-ia em face de uma colisão de direitos fundamentais – direito a uma existência digna, à vedação de tratamento degradante e à própria vida da Mãe x o direito à vida do feto?

Talvez.

Considerando que é este o presente momento de aplicação e atuação dos princípios constitucionais, relembro que, como não é desconhecido em sede doutrinária, um direito fundamental pode estar em conflito com outros direitos ou com bens constitucionalmente protegidos. O fenômeno da colisão ou conflito de direitos fundamentais verifica-se quando o seu exercício colide: (a) com o exercício do mesmo ou de outro direito fundamental por parte de outro titular (conflito de direitos em sentido estrito); (b) com a defesa e proteção de bens da coletividade e do Estado constitucionalmente protegidos (conflito entre direitos e outros bens constitucionais).

Ainda, com GILMAR MENDES, embora não se possa negar que à unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de uma rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando também a Constituição enquanto complexo normativo unitário e harmônico.

O que até aqui foi pontuado serve para enfatizar que a presente situação bem demonstra(ria, como adiante se verá) que o tempo da singela técnica/fórmula da subsunção (premissa maior: fatos; premissa menor: norma; resultado: aplicação do conteúdo da norma sobre os fatos) é passado.

Como lembra STEINMETZ, após LARENZ e ALEXY, a insuficiência da subsunção lógica é uma das poucas teses sobre as quais há consenso na teoria contemporânea do método jurídico.

Trata-se de técnica afeita aos tempos em que o direito não se mostrava com a complexidade da pós-modernidade; em que o acesso à ordem jurídica justa constituía objeto de desejo de sonhadores; em que o papel dos Juízes era de ‘boca da lei’.

Em que a ética e os valores não passavam de estudo dos filósofos, relação alguma tendo com os operadores jurídicos – muitíssimo menos com os Magistrados.

Como mui bem aduzem BARROSO e BARCELOS, mais recentemente, porém, a dogmática deu-se conta de que a subsunção tem limites, não sendo por si só suficiente para lidar com situações que, em decorrência da expansão dos princípios, são cada vez mais freqüentes.

… por força do princípio instrumental da unidade da constituição, o intérprete não pode simplesmente optar por uma norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas. Como conseqüência, a interpretação constitucional viu-se na contingência de desenvolver técnicas capazes de lidar com o fato de que a Constituição é um documento dialético – que tutela valores e interesses potencialmente conflitantes – e que princípios nela consagrados freqüentemente entram em rota de colisão.

Mas maiores problemas ainda surgem.

É que se se adotasse, tecnicamente, a máxima da proporcionalidade para a solução do presente imbróglio jurídico, quaestio insolúvel emergiria, já que, com o critério referido, tecnicamente não se admite o aniquilamento de um dos direitos.

Trata-se, portanto, de simplesmente (se possível for) decidir se se dá guarida a uma existência digna à gestante – preservando-se, além disso, sua própria vida, já que acima apontados os riscos que corre quem gesta um feto anencéfalo -, ou se se preserva uma vida (?) que se extinguirá, por mandamento do Patrão Viejo, momentos após sua vinda a este Plano de Existência (com dúvidas – logo dilatadas – se se pode mesmo considerar a existência científica de vida sem funções cerebrais).

Proporcionalidade, portanto, estimo, não cabe na espécie.

E, até por minha experiência pessoal de vida, pelo momento existencial em que me encontro, não vislumbro como se possam aditar maiores sofrimentos a quem faz face ao ruir dos Castelos de seus sonhos, portando a Autora, dentro de si, uma vida com fim já acertado pelo Destino.

A decisão ora posta tem, sem dúvidas, foros de/a ciência social que é o Direito.

Mas é – vênia aos mais conservadores, que se fizeram Magistrados sob as lições de Edgard de Moura Bittencourt e da 1ª edição do (já citado) ‘Elogio’ de Calamandrei – pontuada e ditada pela emoção.

Pelo coração.

Que é o que – estou certo – aguarda a Sociedade de seus Juízes:

Que tenham agudos sentimentos;

Que expressem emoção;

Que sejam, em suma, verdadeiras e genuínas pessoas humanas.

Na linha, pois, de Debora Diniz, Doutora em Antropologia, Professora da UnB, no saite dantes apontado, adoto, aliado ao que suso argumentei, um dos fundamentos que escoraram a ação cuja liminar foi recentemente deliberada pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, admitindo a realização de interrupção de gravidez na hipótese de feto com diagnóstico de anencefalia:


Uma pessoa leiga pode considerar um coração batendo como sinônimo de vida. Mas esta não é uma definição suficiente para a Medicina tampouco para o Direito brasileiro. Desde o primeiro transplante de coração, em 1969, morte cerebral passou a ser uma definição corrente de morte. Uma pessoa sem atividade cerebral está morta, tanto que é possível, mesmo com o coração batendo e o sangue fluindo, a retirada de órgãos para transplantes. Um feto anencefálico não tem córtex cerebral, portanto, é um feto sem atividade cerebral.

Finalizo com ela:

As mulheres brasileiras estão em luto. Elas estão em luto não apenas pela solidariedade ao sofrimento de dezenas de mulheres grávidas de fetos com anencefalia, que experimentam uma das dores mais dilacerantes que é a morte precoce do futuro filho, mas principalmente pela crueldade com que são tratadas por um Estado que não reconhece sua autonomia, sua dignidade e seu sofrimento.

Não vislumbro como superar tais fundamentos.

Não tenho como existente colisão de direitos fundantes – pela inexistência técnica de ‘vida’ a ser resguardada.

Tenho tão-só os direitos da Mãe (e do Pai e de seus familiares) a serem preservados.

PRECEDENTE – REFORÇO ARGUMENTATIVO – SITUAÇÃO ALBERGADA PELA CORTE FARROUPILHA

A fim de dar razoável suporte à presente pretensão, reproduzo manifestação da Corte do Garrão da Pátria acerca do tema, servindo como reforço argumentativo e de convencimento:

Assim o e. Des. PITREZ, quando da composição do MS 70005577424, Segunda Câmara Criminal da Corte local, ponderou, com suporte em provas técnicas levadas a efeito no feito que compôs:

O feto torna-se incompatível para a vida, após o nascimento, tendo um péssimo prognóstico, pois não sobreviveria mais do que poucas horas após o parto, além do que gera risco à vida da gestante, visto que o parto de um portador de acrania é difícil, podendo a gestação, inclusive, prolongar-se por período superior a um ano.

Deve ser salientado, ainda, que os recursos de que são dotados os aparelhos de ecografia modernos tornam praticamente nula a possibilidade de um erro no diagnóstico, além do que quanto mais cedo for interrompida a gravidez menor o risco sofrido pela gestante, ante o afastamento dos fatores que o agravariam no momento do parto.

Nestes termos, a interrupção da gravidez se impunha, pois a morte do concepto é inequívoca e a cessação da gravidez trará benefícios para a gestante.

Corroborando o afirmado pelos médicos, vê-se na obra “Obstetrícia”, de Jorge de Rezende, 3ª edição, 1974, Editora Guanabara-Koogan, páginas 805/807, que a anencefalia é uma anomalia do sistema nervoso central, que se caracteriza pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida a vestígios da substância cerebral, sendo que freqüentemente a gravidez não alcança o termo, podendo tornar-se trabalhosa a extração do feto, que não sobrevive, atingindo excepcionalmente dois a três dias de vida.

É verdade que, em tese, o caso concreto não se enquadra nas hipóteses do artigo 128, do CP. Todavia, o parecer médico aponta que o risco da gestante é grande, levando a termo a gravidez, com a periclitação de sua vida, além de que nula a possibilidade do concepto sobreviver.

Imperativa a interrupção da gestação, pois, se conduzida a termo, a retirada do feto será laboriosa e de alto risco para a gestante, que poderá morrer no ato.

A jurisprudência desta Corte vem admitindo a interrupção da gravidez, em casos assemelhados, como se constata do agravo nº 70.002.099.836, relatado pelo Des. Carlos Cini Marchionatti, perante a Câmara Criminal de Férias, em sessão de 09 de março de 2001 e da apelação nº 70.005.037.072, da lavra do Des. José Antônio Hirt Preiss, julgada na sessão de 12 de setembro de 2002, da egrégia 3ª Câmara Criminal.

O colendo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em lapidar aresto, admitiu a postulação da interrupção da gravidez, no caso de constatação de má formação do feto, ante o diagnóstico de acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino ou no período neonatal, apesar de não se achar entre as causas autorizadoras do aborto, dispostas no artigo 128, do CP, pois a lei deve se adaptar ao avanço tecnológico da medicina, que antecipa a situação do feto (Apelação nº 0264255-3, 3ª Câmara Cível, relatada pelo Dr. Duarte de Paula).

Assim já me pronunciei perante este órgão fracionário, quando do julgamento da apelação nº 70.005.148.135, em sessão de 07 de novembro de 2002.

Pela vida da Mãe, pois.

Com um pouco de ciência e muito de coração, pela vida da Mãe.

ISSO POSTO, DEFIRO A MEDIDA PLEITEADA ‘IN LIMINE LITIS’, AUTORIZANDO A REALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ DA DEMANDANTE.

Diligências legais.

Intimem-se.

Da Cruz Alta para a Terra da Mãe de Deus, aos 11 de maio de 2005.

Rafael Pagnon Cunha

Juiz de Direito Substituto

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