CPI do Bingo

STF enfrenta questão de direitos da minoria no Congresso

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12 de maio de 2005, 11h43

O Supremo Tribunal Federal enfrentou pela primeira vez, na quarta-feira da semana passada (4/5), a questão dos direitos da minoria no Congresso Nacional. Com um voto consistente e bem estudado, o relator da matéria, ministro Celso de Mello, sustentou o direito de oposição da minoria e que, mesmo em inferioridade numérica, prevalece o direito de investigar o Poder Executivo — ainda que contra a vontade do grupo dominante. O fundamento básico da decisão foi o parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição Federal.

Na preliminar, o relator descartou a alegação do presidente do Senado de que a discussão da instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito seja assunto interna corporis regulado pelo regimento da causa, demonstrando que a questão é eminentemente constitucional. Rejeitou também o argumento da Procuradoria-Geral da República que tentou desviar a responsabilidade do dirigente do Senado para as lideranças partidárias, que se negaram a indicar seus representantes na CPI do Bingo.

Segundo o ministro, se é lícito aos líderes não indicar nomes, não é lícito ao presidente do Senado deixar de aplicar o que prevê a Constituição já que, subsidiariamente, poderia ser utilizada a regra prevista no regimento da Câmara, que permite à direção da Casa a indicação dos nomes do colegiado. Ainda assim, mesmo discordando da alegação, Celso de Mello notificou, por cautela, os líderes em questão.

Para reforçar a prevalência dos direitos permanentes em contraposição com a ocasião, Celso de Mello resgatou Mandado de Segurança apresentado no passado, por dois ministros do atual governo, Aldo Rebelo e Agnelo Queiroz, que, quando integravam bloco minoritário, sustentaram a mesma tese da qual o governo hoje diz não aceitar.

Segundo Celso de Mello, “o pluralismo é um fundamento do Estado Democrático de Direito”. Em jurisprudência que remonta ao início da República, o relator buscou e apresentou exemplos como o que se verificou em 1922 quando, mesmo estando o país sob Estado de Sítio.

O voto de Celso de Mello foi acompanhado pelos ministros Sepúlveda Pertende, Gilmar Mendes e Carlos de Britto. Mas a votação foi interrompida pelo pedido de vista do ministro Eros Grau. Ao todo, foram levados ao STF seis Mandados de Segurança contra a atitude do presidente do Senado, José Sarney, que tentou impedir a instalação da CPI.

Leia o relatório

04/05/2005 – TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 24.831-9 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: – MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S): – PEDRO JORGE SIMON E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): – RODRIGO FRANTZ BECKER E OUTRO(A/S)

IMPETRADO(A/S): – PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL

LITISCONSORTE(S) PASSIVO(A/S): – LÍDER DO BLOCO PARLAMENTAR DE APOIO AO GOVERNO NO SENADO FEDERAL, SENADORA IDELI SALVATTI

ADVOGADO(A/S): – ADRIANA MOURÃO ROMERO E OUTRO

LITISCONSORTE(S) PASSIVO(A/S): – LÍDER DO PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO – PTB, SENADOR DUCIOMAR GOMES DA COSTA

LITISCONSORTE(S) PASSIVO(A/S): – LÍDER DO PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO – PSB, JOÃO ALBERTO RODRIGUES CAPIBERIBE

ADVOGADO(A/S): – ANTONIO TAVARES VIEIRA NETTO E OUTROS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se de mandado de segurança, que, impetrado por eminentes Senadores da República, insurge-se contra omissão atribuída à Mesa do Senado Federal, representada por seu ilustre Presidente, e que, por alegadamente lesiva a direito público subjetivo das minorias parlamentares, teria frustrado, não obstante a natureza eminentemente constitucional desse instrumento de investigação legislativa, a instauração de inquérito parlamentar destinado a apurar a utilização das “casas de bingos” na prática do delito de lavagem de dinheiro, bem assim a esclarecer a possível conexão dessas mesmas “casas” e das empresas concessionárias de apostas com organizações criminosas.

Estes autos registram que, em 05/03/2004, foi encaminhado à Mesa do Senado Federal requerimento subscrito por 39 (trinta e nove) Senhores Senadores, inclusive os ora impetrantes (mais do que 1/3 dos membros do Senado Federal, portanto), com o objetivo de ver instituída Comissão Parlamentar de Inquérito, para apuração de fato determinado, como se vê do texto do requerimento em causa, a seguir reproduzido:

“REQUERIMENTO N° 245, DE 2004

(do Senador Magno Malta e outros)

Requeremos, em conformidade com o art. 145 do Regimento Interno, conjugado com o art. 58, § 3º, da Constituição Federal, a criação de uma comissão parlamentar de inquérito, composta de 15 membros e igual número de suplentes, com o objetivo de investigar e apurar a utilização das casas de bingo para a prática de crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores, bem como a relação dessas casas e das empresas concessionárias de apostas com o crime organizado, com duração de cento e vinte dias, estimando-se em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) os recursos necessários ao desempenho de suas atividades.

JUSTIFICAÇÃO

Crime organizado e jogos de azar são irmãos siameses. No mundo inteiro, existem fortes evidências de que cassinos e similares funcionam como um biombo para ocultar os verdadeiros negócios – muitas vezes ilícitos – de quem os controla.

Por força do Decreto-Lei n° 9.215, de 30 de abril de 1946, não é permitida a prática ou exploração de jogos de azar no território nacional. Desde então, algumas exceções à regra têm sido abertas, como os concursos de prognósticos explorados pela Caixa Econômica Federal e, mais recentemente, os bingos.

Desde o início de suas atividades, em 1993, as casas de bingo têm prestado um desserviço à Nação. Além de incentivar o terrível vício do jogo, sob o falso manto de contribuir para o financiamento de clubes e desportistas, algumas dessas entidades vêm sendo utilizadas para dar ares de legalidade a recursos oriundos de atividades criminosas.

Importante observar que os bingos têm por sócios, por vezes ocultos, pessoas notoriamente relacionadas ao crime e a contravenção, as quais, não raro, representam os interesses de organizações mafiosas com raízes no exterior.

Nossa firme convicção de que os bingos devem ser extintos está expressa no documento que cria a Frente Parlamentar contra a legalização da exploração dos jogos de azar no Brasil.

Ressaltamos, contudo, que a Frente Parlamentar possui caráter eminentemente preventivo. Para investigar e apurar os abusos que vêm sendo observados, julgamos que somente uma comissão parlamentar de inquérito, com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, terá força para desbaratar as quadrilhas que se valem da exploração das casas de bingo para lavar dinheiro proveniente de atividades criminosas.

Em face de todo o exposto, conclamamos os ilustres Senadores e Senadoras a assinarem o presente requerimento, com finalidade de ver instalada uma comissão parlamentar de inquérito para investigar e apurar a utilização das casas de bingo para a prática de crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores, bem como a relação dessas casas e das empresas concessionárias de apostas com o crime organizado.” (grifei)


O eminente Senhor Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente da Mesa dessa Alta Casa do Congresso Nacional, solicitou aos Senhores Líderes partidários a indicação de Senadores para compor a referida CPI, observada a cláusula de proporcionalidade partidária peculiar à formação e composição das comissões legislativas (CF, art. 58, § 1º).

Em resposta a tal solicitação, somente os Senadores Jefferson Peres, Líder do PDT, e Efraim Moraes, Líder da Minoria – PFL/PSDB, procederam à indicação dos membros destinados a compor as vagas em referida CPI, sendo certo que os Senadores Líderes do PMDB, do Bloco de Apoio ao Governo (PT/PSB/PTB/PL), do PTB, do PSB e do PPS abstiveram-se de tal indicação, o que inviabilizou – não obstante a norma inscrita no art. 58, § 3º da Constituição – a instauração da investigação parlamentar em causa.

Com o impasse criado, o eminente Senador Arthur Virgílio suscitou questão de ordem perante o eminente Senhor Presidente do Senado Federal, destinada a superar o obstáculo surgido com a omissão dos Senhores Líderes das agremiações majoritárias, em ordem a permitir a constituição e o regular funcionamento da referida CPI.

O Senhor Presidente do Senado Federal recusou-se a suprir a omissão dos Líderes partidários do grupo majoritário, por entender não lhe assistir qualquer prerrogativa nesse tema, em face da circunstância de o Regimento Interno do Senado Federal, alegadamente, reservar o exercício desse poder apenas aos Líderes dos Partidos Políticos (arts. 66 e 78).

Por tais razões, e fundando-se, ainda, na existência de lacuna normativa no texto regimental, deixou de acolher a questão de ordem mencionada, o que motivou, por parte do Senador Arthur Virgílio, a interposição de recurso (Recurso nº 5/2004), que resultou improvido pela E. Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa legislativa.

Daí a presente impetração, cujo fundamento essencial reside na alegação de que existe, no sistema constitucional brasileiro – e em favor das minorias parlamentares – o reconhecimento do direito de oposição e da prerrogativa da investigação parlamentar, especialmente se se considerar, nos termos do art. 58, § 3º da Carta Política, que esse poder – impregnado de irrecusável significação político-jurídica – revela-se oponível, até mesmo, às próprias maiorias parlamentares que atuam no âmbito institucional do Legislativo.

Eis, em síntese, os aspectos que, invocados no MS 24.847/DF e no MS 24.849/DF, dos quais também sou Relator, dão suporte àquelas impetrações mandamentais, cujos fundamentos, ante a sua inquestionável pertinência (pois versam o exame da mesma matéria ora em julgamento), revelam-se inteiramente aplicáveis à presente causa:

“2.7. O direito assegurado na Constituição não pode ter seu exercício anulado ou impedido pela maioria, mediante o uso de aparente lacuna ou impasse regimental. O texto constitucional dá à minoria qualificada de 1/3 dos parlamentares da Casa o direito de investigar, por meio de comissão parlamentar de inquérito, fato determinado que considere relevante. Se é certo que a todo direito corresponde um dever, nesse caso, o dever é claramente imputado ao Senado Federal, constituindo, portanto, obrigação da Mesa realizar todos os atos necessários para a criação e instalação da CPI. Se válidos o boicote dos líderes partidários e o comportamento omissivo da Mesa do Senado Federal, estará consolidado o direito da maioria de impedir, por inércia, o exercício do direito constitucional e legítimo da minoria. Ou seja, qualquer investigação parlamentar passará a depender da concordância da maioria parlamentar e, conseqüentemente, da vontade do governo.

2.8. Em suma, a conseqüência clara da existência do direito da minoria à CPI é o nascimento do dever jurídico, imputável à Mesa do Senado Federal, de viabilizar o exercício desse direito. Já cuidou da questão o Ministro MOREIRA ALVES, ao lecionar que ‘a todo direito subjetivo, repita-se, corresponde dever jurídico. Se tenho direito, alguém figurante na relação jurídica tem o dever de me prestar ato ou omissão. Tem-se direito a ato ou omissão de outrem’ (cf. voto proferido no MS n. 20.257, in RTJ n. 99/1035). Conclui-se, destarte, assentando-se no direito do impetrante, a existência do dever da Mesa do Senado Federal de garantir a constituição e o pleno funcionamento da CPI, tal como demanda o artigo 58, § da Constituição Federal.

2.9. A não indicação das lideranças do governo de seus representantes para a CPI deve ser interpretada, no máximo, como renúncia ao direito à composição proporcional da comissão, não possuindo, contudo, o condão de inviabilizar os trabalhos de investigação. Descabido, de outro lado, é o argumento de que a Constituição Federal limita-se a garantir a criação, relegando o seu conseqüente funcionamento à disciplina puramente regimental e, portanto, a piruetas e contorcionismos interpretativos eximidos do controle judicial. A sua adoção, na espécie, implicaria o esvaziamento do conteúdo da norma constitucional, como se a Carta da República não almejasse exatamente as conseqüências da criação da CPI (possibilidade de atuação das minorias), mas apenas a sua abstrata previsão e criação.” (grifei)


Cabe referir, ainda, a alegação – ora deduzida na presente causa – consistente na possibilidade de suprir-se a omissão dos Líderes majoritários, considerado o contexto em exame, pela aplicação analógica de preceitos inscritos tanto no Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 9º, § 1º) quanto no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 28, § 1º e art. 45, § 3º), como resulta dos seguintes fundamentos:

“Conquanto o Regimento Interno do Senado Federal seja omisso nesse aspecto, a questão pode ser equacionada pelo significado da regra que prevê a instalação de CPI mediante requerimento de um terço dos membros da respectiva Casa Legislativa. Ou seja, CPI é instrumento que visa a assegurar os direitos da minoria. (…).

……………………………………………

Tanto o Regimento Comum do Congresso Nacional como o Regimento Interno da Câmara dos Deputados tratam, explicitamente, da possibilidade em análise.

Determinam o art. 9º e seu § 1º do Regimento Comum:

Art. 9º Os membros das Comissões Mistas do Congresso Nacional serão designados pelo Presidente do Senado mediante indicação das lideranças.

§ 1º Se os Líderes não fizerem a indicação, a escolha caberá ao Presidente.

(…)

E os arts. 28, § 1º, e 45, § 3º, da Lei Interna da Câmara Baixa:

Art. 28. Estabelecida a representação numérica dos Partidos e dos Blocos Parlamentares nas Comissões, os Líderes comunicarão ao Presidente da Câmara, no prazo de cinco sessões, os nomes dos membros das respectivas bancadas que, como titulares e suplentes, irão integrar cada Comissão.

§ 1º O Presidente fará, de ofício, a designação, se, no prazo fixado, a liderança não comunicar os nomes de sua representação para compor as Comissões, nos termos do § 3º do art. 45.

………………………………………..

Art. 45. A vaga em Comissão verificar-se-á em virtude de término do mandato, renúncia, falecimento ou perda do lugar.

………………………………………..

§ 3º A vaga em Comissão será preenchida por designação do Presidente da Câmara, no interregno de três sessões, de acordo com a indicação feita pelo Líder do Partido ou de Bloco Parlamentar a que pertencer o lugar, ou, independentemente dessa comunicação, se não for feita naquele prazo.

Ou seja, não há, no caso em tela, qualquer dificuldade para que a autoridade indicada como coatora esteja impedida de suprir a omissão com que se pretende fazer, do art. 58, § 3º, letra morta.

……………………………………………

(…)resta que a recusa do Senhor Presidente do Senado Federal, em proceder à designação dos integrantes de Comissão Parlamentar de Inquérito, na omissão dos partidos políticos em fazer a respectiva indicação, lesiona, claramente, direito líquido e certo dos autores.” (grifei)

O Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal, ao prestar as informações que lhe foram requisitadas, sustentou, preliminarmente, a incognoscibilidade do presente “writ” mandamental, alegando, para tanto, que o “tema diz respeito a divergência de interpretação do RISF, constituindo, assim, ato ‘interna corporis’ da Casa Legislativa, insuscetível de interferência do Poder Judiciário”.

Asseverou-se, em tais informações, que, caso superada a questão preliminar suscitada (impossibilidade de revisão judicial de atos “interna corporis”), nada poderia justificar o acolhimento da pretensão mandamental em causa, consideradas, em síntese, as seguintes razões, que assim foram resumidas pelo Senhor Presidente do Senado Federal:

“Por todo o exposto, concluímos, s.m.j., que o presente mandado de segurança não poderá ser conhecido, porque o tema envolve discussão regimental no âmbito do Senado, ostentando assim natureza ‘interna corporis’ do Poder Legislativo.

E, caso conhecido, no mérito, não merece concessão, pois:

a) inexiste direito líquido e certo a ser protegido;

b) não se pode aplicar, por princípio de peculiaridade, a uma Casa Legislativa o regimento interno de outra ou o regimento congressual;

c) a autoridade impetrada não tem competência legal ou regimental para a prática do ato pretendido pelos D. Impetrantes, e não pode a decisão judicial determinar modificação da competência preestabelecida, uma vez que é assunto reservado à norma em sentido estrito; e

d) é plenamente constitucional e doutrinariamente acolhida a atividade legislativa de conformação, desde que criteriosa, a qual aqui foi operacionalizada mediante a instituição de requisitos regimentais para viabilizar a melhor realização da norma constitucional do art. 58, § 3º, e o seu maior grau de efetividade.

Inexiste, assim, a nosso ver, inconstitucionalidade, ilegalidade ou abusividade na interpretação dada (…) às disposições do Regimento Interno da Casa.” (grifei)


O eminente Procurador-Geral da República, Dr. CLÁUDIO FONTELES, não obstante haja reconhecido a impossibilidade de o grupo dominante no Legislativo frustrar o exercício, pelas minorias parlamentares, do direito à investigação parlamentar, opinou pela ilegitimidade passiva “ad causam” da Mesa do Senado Federal, pois “não é a Mesa do Senado que deve figurar no pólo passivo desta relação processual, mas os líderes da maioria”.

Esse parecer, da lavra do eminente Procurador-Geral da República, está assim ementado:

“1. Normas regimentais das Casas do Parlamento, dotadas todas de estatura legal, sofrem o controle judicial, até a que se averigüe sua conformação com o traçado constitucional: considerações.

2. As normas regimentais de cunho instrumental, tal a do artigo 78 – RISF – não podem inviabilizar, pelo não exercício da atribuição constitutiva de formação das comissões parlamentares, pelos líderes da maioria, a instalação destas comissões, devidamente criadas na observância do § 3º, do artigo 58, da Constituição Federal: preservação do direito das minorias: considerações.

3. Ilegitimidade passiva da Mesa do Senado: considerações.

4. Não conhecimento do pleito.”(grifei)

Tendo em vista a preliminar suscitada tanto pela eminente autoridade apontada como coatora quanto pela douta Procuradoria-Geral da República, e visando a afastar objeções de ordem formal que pudessem, eventualmente, inviabilizar o conhecimento da presente ação de mandado de segurança, frustrando-se a definição, pelo Supremo Tribunal Federal, de um tema impregnado da maior importância jurídico-institucional, adotei, “ad cautelam”, medidas destinadas a permitir que os Senhores Líderes do PMDB, do Bloco de Apoio ao Governo, do PSB, do PPS, do PTB e do PL, após pessoal cientificação, ingressassem, formalmente, na presente relação processual, e, querendo, impugnassem a pretensão mandamental em causa.

Devo registrar, neste ponto, que, embora todos houvessem sido pessoalmente notificados, apenas alguns desses ilustres líderes partidários intervieram neste processo mandamental, reiterando a questão preliminar suscitada pelo eminente Senhor Presidente do Senado Federal e pelo douto Procurador-Geral da República, pronunciando-se, ainda, quanto ao mérito, pela denegação do mandado de segurança, por inexistir – segundo sustentam – o direito líquido e certo ora vindicado pela parte impetrante.

O eminente Senhor Procurador-Geral da República, em nova manifestação nestes autos, reiterou o seu anterior pronunciamento, propugnando pelo não-conhecimento da presente ação mandamental, por entender, no tema em exame, que “não compete ao Presidente do Senado Federal, na omissão dos líderes partidários, indicar, de mão própria, os membros de comissões”.

É o relatório.

Leia o voto

04/05/2005 – TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 24.831-9 DISTRITO FEDERAL

V O T O

(s/ questões prévias)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): O Senhor Presidente do Senado Federal, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas, suscitou questão prejudicial cuja apreciação se impõe desde logo, pois essa eminente autoridade ora apontada como coatora sustenta que falece jurisdição constitucional a esta Suprema Corte para apreciar a pretensão mandamental deduzida na presente sede processual, eis que a omissão questionada neste mandado de segurança, segundo alega, traduziria questão de índole regimental, essencialmente imune – enquanto ato “interna corporis” – ao controle do Poder Judiciário.

Essa eminente autoridade ora apontada como coatora, ao sustentar a incognoscibilidade deste mandado de segurança, advertiu, a propósito da matéria em debate, que o “tema diz respeito a divergência de interpretação do RISF, constituindo, assim, ato ‘interna corporis’ da Casa Legislativa, insuscetível de interferência do Poder Judiciário”.

Rejeito a questão prejudicial em referência, eis que o fundamento em que se apóia a presente impetração mandamental concerne à alegação de ofensa a direitos impregnados de estatura constitucional, o que legitima, por si só, afastado o caráter “interna corporis” do comportamento ora impugnado, o exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, da jurisdição que lhe é inerente.


Cumpre ter presente, na espécie, o magistério jurisprudencial, que, firmado por esta Suprema Corte desde a primeira década de nossa experiência republicana, consagra a possibilidade jurídico-constitucional de fiscalização de determinados atos emanados do Poder Legislativo, quando alegadamente eivados do vício da inconstitucionalidade, sem que, ao assim proceder, o Tribunal vulnere o postulado fundamental da separação de poderes.

Impõe-se observar, neste ponto, por necessário, que o exame da postulação deduzida na presente sede mandamental justifica – na estrita perspectiva do princípio da separação de poderes – algumas reflexões prévias em torno das relevantíssimas questões pertinentes ao controle jurisdicional do poder político e às implicações jurídico-institucionais que necessariamente decorrem do exercício do “judicial review”.

Como sabemos, o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.

Na realidade, impõe-se, a todos os Poderes da República (e aos membros que os integram), o respeito incondicional aos valores que informam a declaração de direitos e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a própria organização do Estado.

Delineia-se, nesse contexto, a irrecusável importância jurídico-institucional do Poder Judiciário, investido do gravíssimo encargo de fazer prevalecer a autoridade da Constituição e de preservar a força e o império das leis, impedindo, desse modo, que se subvertam as concepções que dão significado democrático ao Estado de Direito, em ordem a tornar essencialmente controláveis, por parte de juízes e Tribunais, os atos estatais que importem em transgressão a direitos, garantias e liberdades fundamentais assegurados pela Carta da República.

A controvérsia suscitada na presente causa subsume-se, com plena adequação, à esfera de cognoscibilidade do Poder Judiciário, eis que, no processo sob apreciação desta Suprema Corte, a parte impetrante sustenta a impossibilidade de a maioria, nas Casas legislativas, frustrar o exercício, pelas minorias parlamentares, de prerrogativas político-jurídicas a estas asseguradas pela própria Constituição da República, como sucede com o exercício do poder de instauração de inquéritos parlamentares (CF, art. 58, § 3º).

Vê-se, daí, na perspectiva do caso ora em exame, que a intervenção do Poder Judiciário, nas hipóteses de suposta lesão a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, reveste-se de plena legitimidade constitucional, ainda que essa atuação institucional se projete na esfera orgânica do Poder Legislativo, como se registra naquelas situações em que se atribuem, à instância parlamentar, condutas alegadamente tipificadoras de abuso de poder, seja por ação, seja por omissão.

Isso significa, portanto – considerada a fórmula política do regime democrático – que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis.

Uma decisão judicial – que restaure a integridade da ordem jurídica e que torne efetivos os direitos assegurados pelas leis e pela própria Constituição da República – não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou, em unânime decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (RTJ 175/253, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – RTJ 176/718, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, v.g.):

“O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

– A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição. Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir e nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

– O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República. (…).”


(RTJ 173/806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Ninguém ignora, Senhor Presidente, que o controle do poder constitui uma exigência de ordem político-jurídica essencial ao regime democrático.

Como sabemos, o sistema constitucional brasileiro, ao consagrar o princípio da limitação de poderes, teve por objetivo instituir modelo destinado a impedir a formação de instâncias hegemônicas de poder no âmbito do Estado, em ordem a neutralizar, no plano político-jurídico, a possibilidade de dominação institucional de qualquer dos Poderes da República (ou daqueles que os integram) sobre os demais órgãos e agentes da soberania nacional.

Com a finalidade de obstar que o exercício abusivo das prerrogativas estatais possa conduzir a práticas que transgridam o regime das liberdades públicas e que sufoquem, pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, inclusive aqueles assegurados às minorias nas Câmaras legislativas (como o direito de oposição e a prerrogativa de fazer instaurar comissões parlamentares de inquérito), atribuiu-se, ao Judiciário, a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, mesmo aqueles praticados pela Presidência das Casas do Congresso Nacional, quando tais órgãos ou agentes incidirem em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais, no desempenho de sua competência institucional.

Em suma: a estrita observância dos direitos e garantias, notadamente quando se alegar, como se sustenta na espécie, transgressão ao estatuto constitucional das minorias parlamentares, traduz fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei e da Constituição se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.

É que o poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.

Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum órgão estatal, como a Presidência do Senado da República, pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal.

A separação de poderes – consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional – não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício do direito de investigar, em sede de inquérito parlamentar, abusos que possam ter sido cometidos pelos agentes do Estado.

Cumpre ressaltar, por isso mesmo, que o comportamento ensejador do presente “writ”consistente na omissão do Presidente do Senado Federal de adotar medidas que dêem efetividade ao seu dever de constituir, instalar e dar regular funcionamento à CPI em questão, fazendo cumprir o que determina o art. 58, § , da Carta Política – não configura nem se qualifica como ato “interna corporis”, eisque, como precedentemente já ressaltado, a jurisprudência desta Suprema Corte, desde a primeira década de nossa experiência republicana, vem consagrando a possibilidade jurídico-constitucional de fiscalização de determinados atos ou omissões do Poder Legislativo, quando alegadamente eivados do vício da inconstitucionalidade, sem que o Tribunal, ao assim proceder, vulnere o postulado fundamental da separação de poderes.

A qualificação constitucional do direito público subjetivo invocado pela parte ora impetrante, enquanto integrante da minoria parlamentar que atua no Senado da República, que alega desrespeito à prerrogativa que lhe é assegurada pelo art. 58, § 3º, da Constituição, apresenta-se claramente evidenciada no caso ora em exame, em ordem a viabilizar, por isso mesmo, o conhecimento, por esta Suprema Corte, da presente ação de mandado de segurança, eis que a controvérsia instaurada nesta sede processual não se resume, não se reduz nem se degrada à condição de um tema revestido de caráter meramente regimental.

Ao contrário, as alegações deduzidas pela parte impetrante põem em evidência, na espécie em exame, a inquestionável magnitude constitucional do fundamento jurídico em que se apóia esta impetração.

Extremamente significativas, Senhor Presidente, a propósito da natureza eminentemente constitucional do direito subjetivo invocado pela parte impetrante, são as observações que o ilustre Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE fez consignar, em douto pronunciamento, quando do exame, por esta Corte, do MS 22.494/DF (RTJ 163/176-209, 209):


“Hoje, tem-se um grupo de parlamentares, em número indiscutivelmente bastante, à luz do art. 58, § da Constituição, para requerer a constituição de Comissão Parlamentar de Inquérito, a sustentar que violou a Constituição, em primeiro lugar, mas violou também o próprio Regimento Interno do Senado Federal a deliberação da maioria que, depois de instalada a CPI, veio a extingui-la, provendo recurso contra ato do Presidente da Casa, a pretexto da ausência de fato determinado a investigar e da indicação do limite de despesas para o seu funcionamento, como seria exigido por norma regimental (na verdade, habitualmente não cumprida).

Indaga-se: há direito subjetivo em jogo? A meu ver, sim, e direito fundamental: a CPI é instrumento básico da minoria; a maioria não precisa de CPI. A constituição de comissões parlamentares de inquérito para fiscalizar o Governo, sem se converter antes em maioria, é direito fundamental da minoria e, portanto, dos deputados que, em determinado episódio, a personalizam, na medida em que firmam requerimento para investigação de fato que consideram relevante.

Por isso, sem adentrar no mérito, para não violar as fronteiras que a maioria se impôs, conheço do mandado de segurança.” (grifei)

Essa compreensão do tema, que se tem refletido, historicamente, na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, ao longo do período republicano, em torno da cognoscibilidade das denominadas questões políticas, encontra perfeita tradução em douto voto proferido, em 1922, pelo saudoso e eminente Ministro GUIMARÃES NATAL, quando do julgamento do HC 8.584/DF, Rel. Min. Muniz Barreto (“Revista do Supremo Tribunal Federal” , volume 42/135-221, 192-194):

“Nunca professei a doutrina que considera as questões políticas como absolutamente impenetráveis aos olhos investigadores da Justiça, que deverá ter sempre por impecáveis, na sua constitucionalidade e na sua conformidade á Lei, as soluções que lhe houverem dado os poderes políticos a cuja competência constitucional pertencerem. Nos regimes, como o nosso, de constituição escrita, os poderes são limitados, e as limitações excluem a discrição e o arbítrio. Se, no exercício de suas funções, qualquer dos poderes políticos exorbita, lesando um direito, o direito lesado pela exorbitância poderá reclamar a sua reintegração ao judiciário, o poder especialmente preposto pela Constituição a tais reintegrações. E a ação do judiciário não se poderá deter diante de uma questão política, sob o pretexto de que é ela atribuída privativamente a um poder político, porque privativa do Congresso Nacional é a decretação das leis e o judiciário declara-as inaplicáveis, quando contrárias á Constituição; privativos do executivo são atos que o judiciário anula, quando, contrariando a Constituição e as leis, lesam um direito.

……………………………………………

Nos regimes de Constituição escrita, de poderes limitados, a Lei Fundamental é, na frase de ‘Cooley’, a regra absoluta de ação e decisão para todos os poderes públicos e para o povo, e tudo quanto em oposição a ela se faz é substancialmente nulo.

Mas para que a Constituição mantivesse esta preeminência de regra absoluta de ação e decisão, que lhe dera o povo, decretando-a, era necessário criar um órgão que fosse dela a encarnação viva, que a interpretasse soberanamente, irrecorrivelmente, que com ela confrontasse as Leis e os atos dos Poderes Públicos e até do próprio povo e que tivesse o poder de declarar tais Leis e tais atos insubsistentes quando desconformes aos princípios nela consagrados. Esse órgão no nosso regime, como nos semelhantes ao nosso, é o Poder Judiciário Federal (…).

……………………………………………

Dada uma violação da Constituição, parta de quem partir, verse sobre que matéria versar, desde que contra ela se insurja um direito individual lesado e invoque, em processo regular, o amparo e proteção do Judiciário, é este, sob pena de incorrer em denegação de Justiça, obrigado a conhecer do caso e julgá-lo. (…).” (grifei)

A imperiosa necessidade de fazer prevalecer a supremacia da Constituição, a que se acha necessariamente subordinada a vontade de todos os órgãos e agentes do Estado que se revelam depositários das funções político-jurídicas definidas pela teoria da separação de poderes, de um lado, e a inafastável obrigação de tornar efetivas as cláusulas constitucionais que dispõem, em caráter mandatório e vinculante, sobre os direitos das minorias parlamentares, de outro, legitimam, plenamente, na espécie ora em julgamento, a atuação do Poder Judiciário, especialmente se considerar a situação de que ora se cuida, em que se alega o caráter lesivo da omissão imputada ao Presidente do Senado Federal, cuja conduta teria frustrado o direito dos grupos legislativos minoritários à instauração de investigação parlamentar, não obstante requerida, no caso, por 39 Senadores (mais do que o mínimo exigido pelo art. 58, § , da Constituição).


Impõe-se ter presente que o postulado da inafastabilidade do controle jurisdicional justifica, de modo amplo, nas hipóteses de invocada lesão a direitos constitucionalmente assegurados (como este cujo fundamento apóia-se no art. 58, § 3º, da Carta Política), a possibilidade de atuação reparadora do Judiciário, especialmente quando os atos vulneradores de situações jurídicas promanarem de órgãos ou agentes integrantes do próprio aparelho de Estado.

A cláusula do “judicial review”, cuja gênese reside no texto da própria Constituição da República, rompe – ao viabilizar a invocação da tutela jurisdicional do Estado – qualquer círculo de imunidade que vise a afastar, numa comunidade estatal concreta, o predomínio da lei e do direito sobre a arbitrariedade do Poder Público.

Nesse contexto, o princípio da separação de poderes não pode ser invocado para estabelecer, em torno de um dos órgãos da soberania nacional, um indevassável círculo de imunidade que torne insuscetível de revisão judicial, atos ou omissões emanados dos órgãos dirigentes das Casas legislativas, ainda mais naquelas situações em que, das condutas impugnadas, derive alegada vulneração a direitos titularizados por membros do Congresso Nacional, mesmo que – tal como sucede na espécie – sejam integrantes dos grupos parlamentares minoritários.

O reconhecimento de imunidade ao controle jurisdicional, tal como pretendido pelo Senhor Presidente do Senado Federal, quando sustenta, sem razão, o caráter “interna corporis” de sua conduta, revela-se conflitante com a própria essência e com os valores que informam o ordenamento constitucional brasileiro.

Nada impede, pois, em situações como a de que ora se cuida, que o Supremo Tribunal Federal, regularmente provocado por quem dispõe de legitimidade ativa “ad causam”como os membros do Congresso Nacional (RDA 193/268, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 22.494/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA) – venha a exercer o poder que a própria Lei Fundamental outorgou a esta Corte, autorizando-a a proclamar, quando for o caso, a ilegitimidade constitucional de atos ou de omissões que possam transgredir a cláusula da Constituição que ampara, no âmbito das Casas Legislativas, as minorias parlamentares que nelas atuam.

O fato, Senhor Presidente, é que representaria estranho paradoxo, se o Congresso Nacional, em função de critérios desvestidos de qualquer valia jurídica, ou motivado por interpretações de mera conveniência político-partidária, absolutamente estranhas aos parâmetros estabelecidos pela Constituição da República, viesse a desrespeitar, ele próprio, as cláusulas, que, qualificadas pela nota da compulsória observância pela instituição parlamentar, definem a garantia que assiste a todos os membros do Legislativo, inclusive àqueles que compõem os grupos políticos minoritários que nele atuam, consistente no direito à instauração da investigação parlamentar, desde que respeitadas as exigências mínimas do art. 58, § 3º, da Carta Política: subscrição do requerimento por 1/3 dos membros da Casa legislativa, indicação de fato determinado a ser objeto de apuração e temporariedade da comissão parlamentar de inquérito.

Se é certo, portanto, que os atos “interna corporis” e os de índole política são abrangidos pelos círculos de imunidade que excluem a possibilidade de sua revisão judicial, não é menos exato que essa particular qualificação das condutas legislativas (sejam positivas ou negativas) não pode justificar ofensas a direitos públicos subjetivos que os congressistas titularizam e que lhes conferem a prerrogativa institucional de estrita observância, por parte do órgão a que pertencem, das normas constitucionais pertinentes à organização e ao funcionamento das comissões parlamentares de inquérito.

Não obstante o caráter político dos atos “interna corporis”, é essencial proclamar que a discrição dos corpos legislativos não pode exercer-se – conforme adverte CASTRO NUNES (“Do Mandado de Segurança” , p. 223, 5ª ed.) – nem “(…) fora dos limites constitucionais (…)”,nem “(…) ultrapassar as raias que condicionem o exercício legítimo do poder”.

Lapidar, sob tal aspecto, o magistério, erudito e irrepreensível, de PEDRO LESSA (“Do Poder Judiciário” , p. 65/66, 1915, Livraria Francisco Alves):


“Em substância: exercendo atribuições políticas, e tomando resoluções políticas, move-se o poder legislativo num vasto domínio, que tem como limites um círculo de extenso diâmetro, que é a Constituição Federal. Enquanto não transpõe essa periferia, o Congresso elabora medidas e normas, que escapam à competência do poder judiciário. Desde que ultrapassa a circunferência, os seus atos estão sujeitos ao julgamento do poder judiciário, que, declarando-os inaplicáveis por ofensivos a direitos, lhes tira toda eficácia jurídica.” (grifei)

É por essa razão que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação da natureza “interna corporis” do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários do Poder Legislativo. É que, consoante observa PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969” , tomo III/644, 3ª ed., 1987, Forense) – ainda que acentuando a incognoscibilidade judicial das questões políticas atinentes à oportunidade, conveniência, utilidade ou acerto do ato emanado do órgão estatal -, “sempre que se discute se é constitucional ou não, o ato do poder executivo, ou do poder judiciário, ou do poder legislativo, a questão judicial está formulada, o elemento político foi excedido, e caiu-se no terreno da questão jurídica” (grifei).

Impõe-se rememorar, bem por isso, lapidar decisão proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar o MS 1.959/DF, Rel. Min. LUIZ GALLOTTI, reconheceu, em votação unânime, a existência de jurisdição desta Suprema Corte sobre controvérsia motivada por deliberação político-administrativa da Câmara dos Deputados, de que resultara – consoante então sustentado pela parte impetrante – injusto gravame a direito individual por ela titularizado, afastando-se, em conseqüência, a questão prejudicial de incognoscibilidade do “writ” mandamental.

O voto então proferido nesse julgamento pelo Ministro NELSON HUNGRIA assim analisou o tema, cuja discussão é ora renovada na presente sede mandamental:

“(…) alega-se que se trata na espécie de matéria que escapa à censura do Poder Judiciário, por isso que consiste numa ‘resolução’ votada pela Câmara dos Deputados sobre assunto político-administrativo, compreendido no âmbito da sua atuação discricionária. É o que se depreende das informações prestadas pela ilustre Mesa da Câmara dos Deputados.

Entendo que não é exata, assim formulada, a pretensa imunidade do Poder Legislativo. Como muito bem acentuou o eminente Sr. Ministro Relator, constitui, hoje, ponto morto, que é irrelevante indagar se trata, ou não, de ato político, para que seja excluída ou admitida a intervenção do Poder Judiciário. O que há a indagar é se o ato, político ou não, lesa um direito individual, um interesse individual legalmente protegido.

Se apresenta essa lesão direta, esse dano imediato a um direito individual, surge a possibilidade, a legitimidade constitucional da intervenção do Poder Judiciário. Evidentemente, não pode o Supremo Tribunal Federal arrogar-se a faculdade de praticar ou obstar a política legislativa, como não pode criticar ou inibir a política do Poder Executivo. Não pode o Poder Judiciário entender, por exemplo, que determinada medida tomada por qualquer dos dois outros Poderes não atende ao interesse nacional. Haveria, com isso, uma evidente usurpação de poder, uma indébita intromissão do Judiciário. Ainda que dessa medida possa decorrer, por via remota ou indireta, qualquer dano a interesse privado, será defeso ao Judiciário intervir. O indivíduo, atingido em ricochete, não poderia vir bater às portas do Supremo Tribunal Federal, porque as encontraria fechadas. Mas, desde que se identifique lesão direta e imediata a direito individual, aí pode interferir o Judiciário, e isto está escrito com todas as letras na Constituição, no cujo art. 141, § 4º, dispõe que nenhuma lesão a direito individual escapará à apreciação do Poder Judiciário. Não há que renovar discussão em torno do tema; não é mais possível estar-se a revolver debates de um passado longínquo, do tempo em que Ruy Barbosa ensinava o ABC do Direito Constitucional no Brasil. No caso, apresenta-se o seguinte: um mandado de segurança contra um ato político-administrativo da Câmara dos Deputados, que terá como conseqüência direta a violação de um interesse individual legalmente tutelado, qual seja o sigilo bancário. Em tese, não pode haver dúvida sobre a competência do Poder Judiciário para conhecer do caso e resolvê-lo.”(grifei)


Pelas mesmas razões que vêm de ser expostas, revela-se plenamente cognoscível, pelo Supremo Tribunal Federal, a controvérsia ora suscitada pela parte impetrante.

Na realidade, a exegese abusiva da Constituição e do próprio Regimento Interno – especialmente naqueles pontos que não permitem qualquer margem de discrição aos corpos legislativos -, não pode ser tolerada, sob pena de converter-se em inaceitável instrumento opressivo de dominação política, além de gerar uma inadmissível subversão do ordenamento positivo fundado e legitimado pela própria noção de Estado Democrático de Direito, que repele qualquer desrespeito aos direitos públicos subjetivos titularizados pelos congressistas, mesmo os que compõem, como na espécie, os grupos parlamentares minoritários.

Revelam-se extremamente pertinentes, neste ponto, as ponderações feitas, com o brilho de sempre, pelo eminente e saudoso Professor GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias” , “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 96/189-194, 190), quando, depois de assinalar que De nada vale fazer uma Constituição, se ela não for obedecida”, adverte:

“Na democracia, governam as maiorias. Elas fazem as leis, elas escolhem os governantes. Estes são comprometidos com as maiorias que os elegeram e a elas devem agradar. As minorias não têm força. Não fazem leis, nem designam agentes públicos, políticos ou administrativos.

Sua única proteção está no Judiciário. Este não tem compromisso com a maioria. Não precisa agradá-la, nem cortejá-la. Os membros do Judiciário não são eleitos pelo povo. Não são transitórios, não são periódicos. Sua investidura é vitalícia. Os magistrados não representam a maioria. São a expressão da consciência jurídica nacional.

Seu único compromisso é com o direito, com a Constituição e as leis; com os princípios jurídicos encampados pela Constituição e os por ela não repelidos (…).” (grifei)

Os fundamentos em que se apóia a presente impetração põem em evidência, Senhor Presidente, consoante sustentado pelos ilustres Senadores impetrantes, prerrogativa político-jurídica resultante do próprio texto da Constituição (art. 58, § 3º), alegadamente desrespeitada pela omissão do Presidente do Senado Federal, que foi motivada pela inércia dos Líderes dos partidos majoritários em indicar os representantes das suas respectivas bancadas para compor a “CPI dos Bingos”.

Vê-se, desse modo, que a omissão ora questionada neste mandado de segurança concerne à discussão em torno de um direito que transcende o caráter meramente interno da conduta omissiva imputada ao Senhor Presidente do Senado Federal, eis que se postula, nesta sede mandamental, o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de que existe, em nosso ordenamento positivo, com fundamento no princípio democrático, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, que protege os grupos minoritários em atuação nos corpos legislativos, assegurando-lhes, dentre outras prerrogativas de índole político-jurídica, aquelas concernentes ao direito de fiscalizar, ao direito de opor-se ao próprio Governo e ao direito de promover inquéritos parlamentares, quando essenciais à apuração e à neutralização de abusos praticados pelos agentes estatais.

Ou, em outras palavras, a conduta atribuída ao Senhor Presidente do Senado Federal, mais do que simples comportamento omissivo pretensamente imune ao controle jurisdicional, faz instaurar, na espécie ora em exame, discussão relevantíssima em torno do alto significado constitucional que deve assumir, para o regime democrático, o reconhecimento, por esta Suprema Corte, da proteção a ser efetivamente dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática constitucional e republicana das instituições parlamentares.

Lapidar, sob tal aspecto, a advertência de GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias” , “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 96/189-194), exposta em preciso magistério que bem define a qualificação eminentemente constitucional da controvérsia jurídica instaurada nesta impetração, em ordem a permitir que se rejeite, por incabível, a questão prejudicial suscitada pelo Senhor Presidente do Senado Federal:

“É que só há verdadeira república democrática onde se assegure que as minorias possam atuar, erigir-se em oposição institucionalizada e tenham garantidos seus direitos de dissensão, crítica e veiculação de sua pregação. Onde, enfim, as oposições possam usar de todos os meios democráticos para tentar chegar ao governo. Há república onde, de modo efetivo, a alternância no poder seja uma possibilidade juridicamente assegurada, condicionada só a mecanismos políticos dependentes da opinião pública.

……………………………………………

A Constituição verdadeiramente democrática há de garantir todos os direitos das minorias e impedir toda prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas. Mais que isso – por mecanismos que assegurem representação proporcional -, deve atribuir um relevante papel institucional às correntes minoritárias mais expressivas.

……………………………………………

O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração.

……………………………………………

Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio texto constitucional, de existência, sobrevivência, liberdade de ação e influência da minoria, para que se tenha verdadeira república.

……………………………………………

Se a maioria souber que – por obstáculo constitucional – não pode prevalecer-se da força, nem ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a minoria, então os compromissos passam a ser meios de convivência política.”(grifei)


Torna-se irrecusável reconhecer, portanto, Senhor Presidente, que a controvérsia ora submetida à apreciação jurisdicional desta Suprema Corte não se reveste de caráter meramente regimental. Muito mais do que isso, defronta-se, este Supremo Tribunal, com um tema impregnado de extração iniludivelmente constitucional, consistente no pretendido reconhecimento, tal como postulado nesta sede de mandado de segurança, de que as minorias parlamentares possuem, com fundamento no direito de oposição – que traduz verdadeiro consectário do princípio democrático – a prerrogativa de fazer instaurar, sem quaisquer obstáculos ou artifícios arbitrariamente criados por grupos políticos majoritários, comissões parlamentares de inquérito, desde que atendidas as exigências mínimas impostas pelo art. 58, § , da Carta Política.

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, rejeito a questão prejudicial suscitada pelo Senhor Presidente do Senado Federal.

Cabe analisar, agora, por necessário, outra questão prévia, que foi suscitada pelo eminente Procurador-Geral da República, pertinente à falta da legitimidade passiva do Presidente do Senado Federal.

O Senhor Procurador-Geral da República, em parecer que analisou a impetração deduzida nesta sede mandamental, sustenta falecer legitimação passiva “ad causam” ao Presidente do Senado Federal, enquanto órgão dirigente da Mesa dessa Casa legislativa, para figurar como autoridade coatora na presente ação de mandado de segurança.

Segundo o eminente Chefe do Ministério Público da União, compete aos Líderes partidários a “atribuição constitutiva de formar comissões parlamentares de inquérito”, cabendo, ao Presidente do Senado Federal, tão-somente, a função de mera designação dos membros de tais Comissões, desde que precedida de indicação escrita dos respectivos líderes.

Com esse entendimento, o Senhor Procurador-Geral da República, após rejeitar a possibilidade de integração analógica do Regimento Interno do Senado Federal, por reputar inaplicáveis o art. 28, § 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o art. 9º, § 1º, do Regimento Comum do Congresso Nacional – que devolvem, ao Presidente de tais órgãos legislativos, na omissão dos líderes das agremiações partidárias, o poder de designar os congressistas a elas filiados, para compor as Comissões em geral -, opina no sentido de excluir, da presente relação processual, o Senhor Presidente do Senado Federal, enquanto órgão dirigente da Mesa dessa Alta Casa do Parlamento brasileiro, pronunciando-se, desse modo, em face de tal manifestação, pelo reconhecimento da incompetência do Supremo Tribunal Federal, eis que – segundo afirma – o mandado de segurança em questão, porque unicamente impetrável contraos líderes da maioria”, deveria ter sido ajuizado perante magistrado federal de primeira instância.

Entendo não assistir razão à douta Procuradoria-Geral da República. É que incumbe, não aos Líderes partidários, mas, sim, ao Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente da Mesa dessa Casa legislativa, e até mesmo em função da própria estatalidade do ato de constituição das CPIs, o poder de viabilizar a organização e o funcionamento dessas comissões parlamentares de inquérito, adotando, para tanto, seja no âmbito administrativo, seja no plano da gestão financeira de recursos públicos destinados a custear as atividades de tais órgãos de investigação legislativa, as medidas necessárias à efetiva instalação das referidas CPIs.

Isso significa, portanto, ao contrário do sustentado pelo eminente Procurador-Geral da República, que, ainda que os líderes partidários desempenhem atividade de colaboração na indicação dos congressistas filiados aos respectivos partidos políticos, para efeito de composição da CPI, não lhes assiste, contudo, poder de ingerência direta no plano da gestão administrativa e financeira do Senado Federal, considerada a relevante circunstância de que a adoção de providências viabilizadoras do funcionamento da CPI traduz matéria que se inclui, por seu caráter eminentemente oficial, na esfera de estrita (e exclusiva) competência da própria Mesa dessa Casa legislativa.

Daí a correta impetração do mandado de segurança, não em face da inércia dos Líderes dos agrupamentos políticos majoritários, mas contra a alegada omissão atribuída à Mesa do Senado Federal, representada por seu Presidente, eis que somente a esse órgão estatal – e a ele apenas – compete implementar, nos planos administrativo e financeiro, a organização e o funcionamento da comissão parlamentar de inquérito.


Eis porque, presente o contexto ora em exame, será sempre imputável, à Mesa do Senado Federal, qualquer ato ou omissão que comprometa a instalação do órgão de investigação legislativa em questão, ainda mais se considerar que o Senhor Presidente do Senado Federal, constatada a situação de lacuna normativa, poderia valer-se, na espécie em análise, de meios legitimados pela própria prática parlamentar em vigor no âmbito do Poder Legislativo da União.

Refiro-me à possibilidade de a Mesa do Senado Federal, por intermédio de seu eminente Presidente, suprir a referida lacuna normativa, mediante processo de integração analógica, colmatando o “vacuum juris” com a aplicação de preceitos regimentais peculiares aos próprios órgãos componentes do Parlamento brasileiro.

Note-se que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados dispõe, em seu art. 28, § , que o Presidente, de ofício, fará a designação de parlamentares para integrar as Comissões legislativas, se, no prazo fixado, a Liderança não comunicar os nomes de sua representação partidária para compor as referidas Comissões, quer como titulares, quer como suplentes.

Essa mesma disciplina acha-se prevista no art. 9º, § 1º, do Regimento Comum do Congresso Nacional, que devolve, ao Presidente, o poder de escolher os membros das Comissões Mistas, se os Líderes partidários não fizerem a indicação que lhes foi solicitada.

Ninguém ignora que o mandado de segurança há de ser impetrado em face de órgão público investido de poderes para praticar o ato cuja implementação se busca, o que significa, na perspectiva do caso ora em exame, adotar medidas que viabilizem a efetiva constituição, organização e funcionamento da CPI em questão.

Na realidade, a impetração mandamental há de ser deduzida em face de quem dispõe do poder de decidir, o que faz, do Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente da Mesa dessa Casa legislativa, a autoridade responsável pela condução dos trabalhos da Câmara Alta, incumbindo-lhe, por isso mesmo, a adoção, dentre outras, de providências oficiais tendentes a remover quaisquer obstáculos que se verifiquem em relação à definitiva formação, organização e constituição da CPI requerida no âmbito do Senado da República.

É por essa razão que o magistério da doutrina acentua que, no âmbito das Casas legislativas, assiste, às respectivas Mesas, representadas por seus Presidentes, legitimação passiva em sede de mandado de segurança, qualificando-se tais órgãos como autoridades responsáveis do Poder Legislativo, para efeito de sofrer a impetração mandamental, tal como assinala, em douta exposição, o saudoso e eminente Ministro e Professor ALFREDO BUZAID (“Do Mandado de Segurança” , vol. I/126, item n. 65, 1989, Saraiva).

Esse aspecto é corroborado em precisa lição expendida por CASTRO NUNES (“Do Mandado de Segurança”, p. 77, item n. 53, 9ª ed., 1988, Forense):

“(…). Ter-se-ia então de fixar que, não obstante os termos elásticos da lei, tais autoridades não poderiam ser outras senão as que, na direção dos trabalhos das Câmaras legislativas, praticassem atos de natureza administrativa. São esses atos, não-legislativos, mas oriundos de autoridades legislativas, os que podem autorizar o mandado de segurança.

É que a mesa das Câmaras é o poder executivo dessas corporações. Os atos que elas praticam na esfera das suas atribuições administrativas são da mesma natureza dos praticados pelo Poder Executivo. (…).” (grifei)

É certo que compete aos líderes partidários a indicação dos representantes das respectivas agremiações para compor as diversas Comissões legislativas (RISF, art. 66).

Sabe-se, ainda, que os membros das comissões, inclusive das CPIs, “serão designados pelo Presidente, por indicação escrita dos respectivos líderes, assegurada, tanto quanto possível, a participação proporcional das representações partidárias ou dos blocos parlamentares com atuação no Senado Federal (…)” (RISF, art. 78).

Essas normas regimentais, na realidade, ajustam-se às prescrições, que, consagradas na Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95), dispõem sobre o funcionamento parlamentar das agremiações partidárias, como resulta claro do art. 12 desse diploma legislativo, que estabelece, a esse respeito, que “O partido político funciona nas casas legislativas, por intermédio de uma bancada, que deve constituir suas lideranças de acordo com o estatuto do partido, as disposições regimentais das respectivas casas e as normas desta Lei” (grifei).


O Regimento Interno do Senado Federal, por isso mesmo, nas regras mencionadas (arts. 66 e 78), objetiva dar concreção às normas inscritas na Lei Orgânica dos Partidos Políticos, notadamente no ponto em que esse estatuto legislativo consagra diretrizes pertinentes ao funcionamento parlamentar e à disciplina das agremiações partidárias.

Isso significa, pois, longe do que preconiza o eminente Procurador-Geral da República, que a indicação de membros da CPI, por iniciativa dos líderes dos partidos políticos, representa, unicamente, matéria típica e peculiar ao funcionamento parlamentar e à viabilização da disciplina partidária, enquanto valores consagrados na legislação sobre partidos políticos.

Essa prerrogativa de indicar membros para a CPI, contudo, enquanto faculdade reconhecida aos líderes partidários, não se confunde com o próprio regime constitucional de criação das comissões parlamentares de inquérito, que se submete, no tema, por inteiro, ao que dispõe a Lei Fundamental, cujas prescrições (art. 58, § 3º) têm por únicos destinatários os órgãos de direção das Casas integrantes do Poder Legislativo, em sua condição de órgãos de Estado.

Desse modo, eventuais litígios e incidentes surgidos em torno da formação inaugural dessas comissões de investigação instaurar-se-ão em face de deliberações, positivas ou negativas, emanadas da Mesa da instituição parlamentar, e não em face de resoluções adotadas por organismos partidários.

Isso significa, portanto, tal como referido em Memorial apresentado pelo ilustre Advogado, Dr. Léo Ferreira Leoncy, nos autos do MS 24.847/DF e do MS 24.849/DF, de que também sou Relator(em cujo âmbito se discute matéria idêntica à ora em exame, motivada pela mesma omissão ora atribuída ao Senhor Presidente do Senado Federal), que o presente mandado de segurança não poderia ser impetrado em face dos líderes partidários, mas, isso sim, como efetivamente o foi, em face da Mesa do Senado Federal, representada por seu eminente Presidente:

“O sentido da faculdade concedida aos líderes de bancada, consistente na indicação de membros do respectivo partido ou bloco parlamentar para compor a representação proporcional das CPI’s, não pode levar à obstrução do direito da minoria ao inquérito parlamentar. Constitui, na verdade, direito disponível, cujo não exercício ou renúncia, ‘in casu’, não tem o poder de inviabilizar a criação da CPI requerida.

A adequada interpretação dos artigos 66 e 78, do RISF, c/c artigo 58, § 1º, da CF, reforça o entendimento dos impetrantes.

Quanto ao artigo 58, § 1º, da Constituição de 1988, tem-se que a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares em cada comissão é um direito público (constitucional) subjetivo de suas bancadas, cujo cumprimento pode ser exigido por seus Deputados ou Senadores.

Trata-se de um direito que poderá ser objeto de renúncia concreta, tanto que ‘a formação da comissão, sem observância do princípio da co-participação pluripartidária nas comissões, sem protesto, sana o vício’. Do mesmo modo, é da rotina parlamentar a troca entre bancadas de vagas em comissões distintas, ainda que em prejuízo da proporcionalidade constitucional.

Por outro lado, a postura dos líderes partidários, no presente caso, deve ser tomada como uma ‘autolimitação voluntária ao exercício de um direito num caso concreto’, sem que isso implique uma renúncia geral ao direito previsto abstratamente na Constituição. Em outras palavras, os senhores líderes apenas deixaram de exercer o direito, admitindo que as vagas fossem preenchidas por parlamentares de outras bancadas.

Quanto aos artigos 66 e 78, do Regimento Interno do Senado Federal, apenas prestigiam o artigo 12 da Lei dos Partidos Políticos, segundo o qual o funcionamento parlamentar das agremiações partidárias se dá por meio de bancadas, sujeitas às respectivas lideranças. Com isso, também prestigia, o Regimento Interno do Senado Federal, o cumprimento da disciplina partidária, outro valor expresso na Lei dos Partidos Políticos, em seus artigos 24 e 25.

Como se vê, indicação pelos líderes partidários dos membros da CPI é matéria afeta ao funcionamento parlamentar dos partidos políticos e à disciplina partidária dos integrantes de bancada. Apenas isso. E nada tem que ver com o regime de criação de CPI, que, por envolver direito de minoria qualificada, atende apenas a requisitos cujo implemento está ao alcance dos requerentes do inquérito parlamentar.” (grifei)


Daí a correta afirmação dos impetrantes, no ponto em que, contrapondo-se à questão preliminar suscitada pelo eminente Procurador-Geral da República, assinala que a discussão, na espécie, cinge-se a uma específica situação de polaridade conflitante que se instaurou, não entre os requerentes da CPI em causa e os líderes das agremiações majoritárias, mas entre os ora impetrantes e a Mesa do Senado Federal, representada por seu ilustre Presidente, pois a tal órgão estatal – e não aos líderes partidários – incumbia a obrigação constitucional de criar e de organizar a referida comissão parlamentar de inquérito, viabilizando-lhe, com a adoção das medidas administrativas e financeiras cabíveis, o seu regular funcionamento.

Tal, porém, não ocorreu na espécie, olvidando-se a Mesa do Senado Federal, por seu Presidente, que o dever jurídico–institucional de assegurar a integridade do direito ao exercício da investigação parlamentar, mediante regular instauração do pertinente inquérito legislativo, compete àquele órgão estatal (a Mesa da Casa legislativa), cabendo-lhe, por tal motivo, conferir efetividade ao requerimento, que, emanado da minoria parlamentar naquela Casa do Congresso Nacional, observou as exigências impostas pelo art. 58, § , da Constituição da República.

A omissão contra a qual se insurge a parte impetrante, portanto, além de alegadamente lesiva aos direitos subjetivos por ela titularizados, transgride o próprio ordenamento constitucional, expondo-se, por tal razão, ao controle jurisdicional desta Suprema Corte.

É por tal motivo que, acolhendo as razões consignadas no Memorial a que anteriormente me referi, reconheço a plena legitimidade passiva “ad causam” da Mesa do Senado Federal, representada por seu Presidente, considerados, para esse efeito, os fundamentos que ora reproduzo:

“Não assumem relevância, no caso, as disposições regimentais que atribuem aos líderes partidários a faculdade de indicar os componentes da CPI. Sua eficácia limita-se ao âmbito do Senado Federal, constituindo sua observância questão ‘interna corporis’, imune, portanto, ao controle jurisdicional.

O dever de ‘criar’ a Comissão, ou seja, constituir, instalar e dar-lhe regular funcionamento, é confiado, nos estritos termos constitucionais, à própria Casa Legislativa. Nesse sentido, o § 3º do art. 58 da Constituição é absolutamente impositivo ao determinar que as CPI’s ‘serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros’. Logo, cumpre, constitucionalmente, ao Senado Federal, assegurar o exercício do direito à CPI, enquadrando-se, pois, por sua Mesa, no conceito de autoridade responsável.

De outra parte, a jurisprudência desta Elevada Corte admite que a Mesa do Senado Federal é quem deve figurar no pólo passivo nos casos de mandado de segurança contra o próprio Senado Federal e os órgãos que o integram. Nessa linha, é o lapidar magistério do Ministro MAURÍCIO CORRÊA:

‘Senhor Presidente, ao abordar questão desta natureza, é mister registrar a jurisprudência que se consolidou nesta Corte, quando decidiu sobre as preliminares argüidas no MS n. 1.959/DF, Rel. Min. Luiz Gallotti, j. em 23.01.53, entendimento que foi reiterado, logo em seguida, no RHC n. 32.678/DF, Rel. Min. Mário Guimarães, j. em 05.08.53. Nestes precedentes, e nos que se seguiram, vê-se que o elastério da expressão ‘atos da Mesa da Câmara ou do Senado’ – para o fim de albergar, também, os demais atos da Câmara ou do Senado – deu-se por construção pretoriana que homenageou outros princípios constitucionais, principalmente a garantia contra lesão, ou ameaça de lesão, a direito individual líquido e certo.’

Desse modo, ainda que outras instâncias internas ao Senado tenham a atribuição regimental de indicar os componentes da Comissão, o dever constitucional de dar cumprimento ao requerimento da minoria, observados os requisitos constitucionais e regimentais, é da própria Casa Legislativa, representada ‘externa corporis’ pela respectiva Mesa. Assim, descabe qualquer alegação de que a Mesa do Senado Federal não deve compor o pólo passivo do ‘mandamus’.”(grifei)

Daí a advertência que faz, na matéria, LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES (“Comissões Parlamentares de Inquérito – Poder de Investigação”, p. 42, item n. 5, 2001, Juarez de Oliveira), em magistério que bem ressalta – presente o contexto ora em exame – a plena legitimação passiva “ad causam” da Mesa do Senado Federal:

“O papel assinado às Mesas das Casas Congressuais (…) cinge-se à verificação do cumprimento das exigências formais. Elas não possuem poderes para obstar a instauração da comissão se o requerimento desta apresentou o número exigido de assinaturas e indicou o fato sobre o qual procederá a investigações. Não se trata de temas que, a nosso ver, se sujeitem a deliberações plenárias, pois aí justamente estaria coarctada a proteção do direito das minorias assinado na Carta Política.” (grifei)


Assinalo, finalmente, que, atento à jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 82/618 – RTJ 94/481 – RTJ 148/724), determinei, “ad cautelam”, embora considerando-a desnecessária na espécie, a convocação formal de todos os Senhores Líderes partidários que se abstiveram de indicar nomes de Senadores para compor a denominada “CPI dos Bingos”, fazendo-o com o objetivo de ensejar-lhes a possibilidade de contestar a pretensão mandamental ora deduzida pela parte impetrante.

Acentuo, neste ponto, Senhor Presidente, que assim procedi, considerada a suscitação da questão preliminar ora em exame, visando a afastar possíveis objeções de ordem formal que pudessem, eventualmente, inviabilizar o conhecimento da presente ação de mandado de segurança.

Na realidade, ao ensejar o ingresso formal, nesta causa mandamental, dos Senhores Líderes do bloco majoritário, busquei impedir, com a possibilidade dessa intervenção processual, que se frustrasse a definição, pelo Supremo Tribunal Federal, de um tema impregnado da maior importância jurídico-institucional, como este que se traduz na discussão em torno do pretendido reconhecimento – fundado no princípio democrático – da existência, em nosso sistema jurídico, do direito das minorias legislativas à investigação parlamentar.

Cumpre ressaltar, neste ponto, que a intervenção “jussu judicis”que tem fundamento em norma legal expressa (CPC, art. 47) – compreende-se no poder de direção processual do magistrado, inclusive do Relator da causa no Tribunal, mesmo tratando-se de processo de mandado de segurança, em que se revele indispensável a intervenção de terceiros, na condição de litisconsortes passivos necessários, cuja presença, na relação processual, se mostre essencial à própria eficácia da decisão a ser nela proferida.

Esse poder de direção – que permite ao Relator determinar, até mesmo “ex officio”, o chamamento de terceiros para integrar a relação processual – é reconhecido pelo magistério da doutrina (FRANCISCO ANTONIO DE OLIVEIRA, “Mandado de Segurança e Controle Jurisdicional”, p. 98/99, item n. 5.6, 3ª ed., 2001, RT; HELY LOPES MEIRELLES, “Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data”, p. 66/67, 26ª ed., atualizada por Arnoldo Wald, 2003, Malheiros; CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, “Manual do Mandado de Segurança”, p. 111, 4ª ed., 2003, Renovar; ALFREDO BUZAID, “Do Mandado de Segurança”, vol. I/181-184, itens ns. 107/111, 1989, Saraiva, v.g.), além de proclamado pela jurisprudência dos Tribunais (RSTJ 40/154 – RSTJ 180/78-80), inclusive a desta Suprema Corte (RTJ 82/618 – RTJ 94/481 – RTJ 148/724).

Daí porque, Senhor Presidente, atento a essa orientação, embora assim procedesse por simples cautela, determinei o chamamento processual dos Senhores Líderes dos partidos majoritários.

Registro que, embora todos os Senhores Líderes do bloco majoritário houvessem sido formalmente notificados, apenas alguns intervieram na presente relação processual, reiterando, em suas manifestações, as mesmas questões prévias e reafirmando as mesmas objeções quanto ao fundo da controvérsia ora em análise.

O fato, Senhor Presidente, é que todos os Senhores Líderes dos partidos recalcitrantes tiveram assegurada a sua faculdade de intervir nesta causa mandamental e de, assim, contestar a pretensão de ordem jurídica nela deduzida.

Desse modo, e tendo presentes as razões expostas, rejeito a questão preliminar suscitada pelo eminente Procurador-Geral da República, reconhecendo, em conseqüência, na espécie, a plena legitimação passiva “ad causam” da Mesa do Senado Federal, representada por seu eminente Presidente.

É o meu voto, consideradas as questões prévias examinadas e por mim ora repelidas.

Leia o voto no mérito

04/05/2005 – TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 24.831-9 DISTRITO FEDERAL

V O T O

(mérito)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Passo a apreciar, neste ponto, superadas as questões prévias, o fundo da controvérsia delineado nesta ação de mandado de segurança.

Vale relembrar que a presente impetração mandamental, deduzida perante esta Suprema Corte, insurge-se contra omissão atribuída à Mesa do Senado Federal, representada por seu ilustre Presidente, e que, por alegadamente lesiva a direito público subjetivo das minorias parlamentares, teria frustrado, não obstante a natureza eminentemente constitucional desse instrumento de investigação legislativa, a instauração de inquérito parlamentar destinado a apurar a utilização das “casas de bingos” na prática do delito de lavagem de dinheiro, bem assim a esclarecer a possível conexão dessas mesmas “casas” e das empresas concessionárias de apostas com organizações criminosas.


Como precedentemente referido, os autos comprovam que, em 05/03/2004, foi encaminhado, à Mesa do Senado Federal, requerimento subscrito por 39 (trinta e nove) Senhores Senadores, inclusive pela parte ora impetrante (mais do que 1/3 dos membros do Senado Federal, portanto), com o objetivo de ver instituída Comissão Parlamentar de Inquérito para apuração de fato determinado.

Assinalo, neste ponto, que, dos 39 (trinta e nove) Senadores que subscreveram o Requerimento nº 245/2004, apenas 1 (um) ilustre membro daquela Casa legislativa – o Senador Hélio Costa – “retirou” a sua assinatura, o que não afeta, no caso, a observância da exigência numérica mínima que a Constituição estabeleceu no seu art. 58, § 3º, pois tal requisito – que corresponde, no Senado da República, a 27 Senadores (1/3) – continua plenamente atendido na espécie ora em exame.

A análise dos elementos produzidos neste processo revela que as exigências de ordem constitucional (CF, art. 58, § 3o) e os requisitos regimentais (RISF, arts. 66 e 78), necessários à instalação da CPI, foram plenamente atendidos, no caso, pelo requerimento em questão (Requerimento nº 245/2004).

Por reputar satisfeitas, na espécie, as exigências constantes do preceito constitucional mencionado (CF, art. 58, § ), o eminente Senhor Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente da Mesa dessa Alta Casa do Congresso Nacional, solicitou aos Senhores Líderes partidários a indicação de Senadores para compor a referida CPI, observada a cláusula da proporcionalidade partidária peculiar à formação e composição das comissões legislativas (CF, art. 58, § 1º).

Em resposta a tal solicitação, somente os Senadores Jefferson Peres, Líder do PDT, e Efraim Moraes, Líder da Minoria – PFL/PSDB, procederam à indicação dos membros destinados a compor as vagas em referida CPI, sendo certo que os Senadores Líderes do PMDB, do Bloco de Apoio ao Governo (PT/PSB/PTB/PL), do PTB, do PSB e do PPS mantiveram-se inertes, o que inviabilizou – não obstante a norma inscrita no art. 58, § , da Constituição – a efetiva instauração da investigação parlamentar em causa.

Diante do impasse criado, o ilustre Senador Arthur Virgílio suscitou questão de ordem, perante o eminente Senhor Presidente do Senado Federal, destinada a superar o obstáculo surgido com a inércia dos Senhores Líderes das agremiações majoritárias, para, com tal medida, viabilizar a imediata constituição e o regular funcionamento da referida CPI.

O Senhor Presidente do Senado Federal, recusando-se a suprir a omissão dos Líderes partidários, por entender não lhe assistir, nesse tema, qualquer prerrogativa, em face da circunstância de o Regimento Interno do Senado Federal reservar o exercício desse poder, unicamente, aos Líderes dos Partidos Políticos (arts. 66 e 78), deixou de acolher a questão de ordem mencionada, o que motivou, por parte do Senador Arthur Virgílio, a interposição de recurso (Recurso nº 5/2004), que resultou improvido pela E. Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa legislativa.

Daí a presente impetração, cujo fundamento essencial reside na alegação de que existe, no sistema constitucional brasileiro, em favor das minorias parlamentares, o reconhecimento do direito de oposição e da prerrogativa da investigação parlamentar, especialmente se considerar, nos termos do art. 58, § , da Constituição, que esse poder – impregnado de irrecusável significação político-jurídica – revela-se oponível, até mesmo, às próprias maiorias que atuam no âmbito institucional do Legislativo.

O eminente Ministro PAULO BROSSARD, em artigo que escreveu a propósito do episódio que motivou a presente impetração mandamental (“Zero Hora”, de 08/03/2004), expendeu valiosas considerações nas quais formulou um severo juízo de censura constitucional ao comportamento das agremiações majoritárias no Senado Federal, fazendo-o em termos que vale reproduzir “in extenso”:

Se bem me lembro, foi a Constituição alemã de 1919, elaborada logo depois da I Grande Guerra, que tanta coisa mudou na Europa e no mundo, a primeira a cuidar da CPI como direito da minoria. Desde muito se reconhecia a legitimidade da criação de CPI, como auxiliar inerente às atribuições parlamentares. Foi a Constituição de Weimar, porém, que assegurou à minoria a prerrogativa de criá-las.

Querendo ou não a maioria, basta um terço de cada casa para que CPI seja criada na forma da lei. É um caso de deliberação minoritária. Pode desagradar à maioria, não obstante, a decisão cabe à minoria, independentemente de votação. O simples requerimento assinado por um terço dos deputados ou senadores gera a CPI para investigar fato determinado que esteja na competência do poder federal, estadual ou municipal, conforme a esfera legislativa. Entre nós, a Constituição de 1934 adotou regra semelhante à de Weimar, ainda hoje inserta na Constituição.

Estas lembranças vêm a propósito do que está ocorrendo aqui. Independentemente dos fatos que têm mudado as cores do cenário governamental, o que se vê é o Executivo, pela maioria que o apóia, procurar abafar (esta a palavra usada) a possível investigação parlamentar, deste ou daquele fato. E, desse modo, o que era ou deveria ser prerrogativa da minoria, passaria a ser disposta segundo o interesse da maioria. No governo passado houve coisa semelhante, aliás, envolvendo assunto de suma gravidade.

Agora, no entanto, a imprensa fala em novo expediente. Criada a CPI, que não pode ser obstada por força da Constituição, que assegura a um terço da Câmara ou do Senado o poder de criá-la, seria ela mumificada pela ausência deliberada dos representantes da maioria. Isto ocorrendo, a CPI não funcionaria, embora formalmente criada. Este seria o mecanismo desenhado. A hipótese, e falo em hipótese, seria letal para as instituições; o expediente teria o efeito de derrogar, prática e efetivamente, a cláusula constitucional que confere à oposição ou à minoria a prerrogativa de realizar determinadas investigações na esfera governamental.

A maioria pode muito e quanto mais numerosa mais facilmente pode ser levada a supor que pode tudo. É um ledo engano que tem gerado muito desengano. Mas, como dizia Bernard Shaw, ‘a experiência revela que o homem nada aprende com a experiência’.

Segundo se diz, a criação de uma CPI teria inconvenientes; pode ser que sim, pois em geral qualquer medida apresenta vantagens e desvantagens; mas me pergunto, abafar a CPI não os terá, muitos e altamente perniciosos? Este o singelo dilema que retrata a situação.

Aliás, se prevalecer o estratagema, que tenho como mera hipótese, volto a dizer, tão cedo não se fará investigação parlamentar no plano federal, por mais grave seja o fato a apurar, e isso não é bom.” (grifei)


Eis, portanto, Senhor Presidente, a delicada questão constitucional que se põe em análise na presente impetração: pode a maioria, abstendo-se de indicar representantes de sua bancada para compor determinada CPI, frustrar, com tal comportamento, o direito da minoria em ver instaurada uma investigação parlamentar?

É importante ter presente que o Parlamento recebeu dos cidadãos não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Poder, desde que respeitados os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal.

O Poder Legislativo, ao desempenhar a sua tríplice função – a de representar o Povo, a de formular a legislação da República e a de controlar as instâncias governamentais de poder – jamais poderá ser acoimado de transgressor da ordem constitucional, pois, na realidade, estará exercendo, com plena legitimidade, os graves encargos que lhe conferiu a cidadania.

O exame dessa questão impõe algumas considerações prévias em torno da alta missão institucional de que se acha investido, em nosso sistema constitucional, o Poder Legislativo.

Vê-se, portanto, que, dentre as funções constitucionais inerentes ao Poder Legislativo, enquanto órgão da soberania estatal e delegado da vontade popular, avulta, por sua significativa importância, a atribuição de fiscalizar os órgãos e agentes do Estado.

Como se sabe, Senhor Presidente, os meios de que se vale o Poder Legislativo, para exercer as atribuições de fiscalização que lhe são próprias, correspondem, basicamente, em nosso ordenamento jurídico, a três instrumentos de extração constitucional: (a) a interpelação parlamentar, (b) o pedido de informações e (c) o inquérito parlamentar.

A interpelação parlamentar decorre da prerrogativa congressual de provocar o comparecimento de Ministro de Estado perante as Casas Legislativas ou qualquer de suas comissões.

Outro meio de investigação, igualmente valioso, apóia-se nos pedidos de informação, dirigidos ao Poder Executivo, sobre fato relacionado com matéria legislativa em trâmite ou sujeito à fiscalização do Congresso Nacional ou de qualquer de suas Casas.

O direito de investigar, por sua vez – que a Constituição da República atribuiu ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem (art. 58, § ) – tem, no inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização desse relevantíssimo encargo constitucional, consistente no desempenho, pela instância legislativa, do seu essencial poder de controle.

Sabemos todos que o direito de investigar foi consagrado, explicitamente, pela primeira vez, no ordenamento constitucional brasileiro, pela Constituição Federal de 1934, que, também nesse tema, sofreu a influência positiva da Constituição da República de Weimar, de 11 de agosto de 1919, que, ao disciplinar o poder de controle do Parlamento, assim dispôs, em seu art. 34:

“‘O Reichstag’ tem o direito e, se o requer uma quinta parte de seus membros, o dever de instituir comissões de investigação. Estas comissões examinam em sessão pública as provas que elas mesmas, ou quem tenha apresentado a acusação, consideram necessárias. (…).”(grifei)

Daí a ênfase com que o eminente e saudoso Senador JOSAPHAT MARINHO, em primoroso trabalho sobre a matéria (Revista Forense, vol. 151/98-102, 99), referiu-se à significativa importância do poder de controle parlamentar:

“Desse modo, a função de controle, que é essencialmente política, cresce de importância, não só no regime parlamentar de governo propriamente dito, como em todo sistema de que participem, investigando e deliberando, Câmaras provindas do voto popular.

Através dela, o Poder Legislativo exerce alta missão de crítica dos atos governamentais e de defesa do interesse coletivo, tão relevante quanto a tarefa de formular normas jurídicas, a que fornece, continuamente, valiosos subsídios.

Além disso, essa forma de ação, visando, geralmente, à análise de fatos determinados, concorre mais do que o trabalho legislativo ordinário, quando exercitada com sobriedade, para que os órgãos do Parlamento conquistem a estima popular, indispensável ao respeito de suas atribuições (…).” (grifei)

É irrecusável, pois, Senhor Presidente, que o poder de investigar constitui uma das mais expressivas funções institucionais do Legislativo. A fiscalização dos atos do Poder Executivo, na realidade, consideradas as múltiplas competências constitucionais deferidas ao Congresso Nacional, traduz atribuição inerente à própria essência da instituição parlamentar.

Não obstante a precedência histórica da Constituição Federal de 1934, em atribuir, de modo expresso, ao Legislativo, o poder de fiscalizar, cumpre referir, neste ponto, o magistério – sempre atual – do eminente PIMENTA BUENO, Marquês de São Vicente, que, em seus clássicos comentários à Carta Política do Império do Brasil (“Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, p. 105/106, itens ns. 125/127, obra reeditada, em 1958, pelo Ministério da Justiça), já ensinava, em 1858, que o Poder Legislativo, investido na Assembléia Geral, além da sua atribuição institucional de fazer as leis do Império, também dispunha de competência para inspecionar os administradores, fiscalizar os serviços públicos e observar o modo como as leis são executadas, fazendo-o, até mesmo, quando necessário, por meio de comissões ou de inquéritos:

“Este direito de inspeção em todo e qualquer tempo, em que o poder legislativo se reúne, é um dos principais atributos que a soberania nacional lhe delegou; é uma garantia, um exame, que a sociedade, os administrados exercem sobre seus administradores, um corretivo valioso e indispensável contra os abusos ministeriais, corretivo que procede da índole e essência do governo representativo, que, sem ele, não se poderia manter.

……………………………………………

A principal vigilância que a Assembléia Geral deve exercer é que o poder executivo se encerre em sua órbita, que não invada o território constitucional dos outros poderes, é a primeira condição da pureza do sistema representativo e que decide das outras; que respeite as liberdades individuais.

……………………………………………

Além da inspeção sobre a observância das leis, cumpre também à Assembléia Geral examinar e reconhecer se o governo tem ou não exercido bem, se tem empregado no sentido dos interesses públicos o poder discricionário que as leis lhe confiam.

Esta fiscalização, que tanto importa aos direitos sociais, não pode ser prejudicial aos ministros que bem cumprirem seus deveres, antes concorrerá para realçar sua força moral e fazer bem conhecido o valor de seus úteis serviços.

O direito de que tratamos pode ser exercido por diversos meios, segundo as circunstâncias e exigências.

……………………………………………

Pode ser também exercido por meio de comissões ou inquéritos, que penetrem nos detalhes da gestão administrativa, mormente quanto à administração financeira.” (grifei)

Na verdade, Senhor Presidente, e como bem assinalou PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969”, tomo III/51-52, item n. 4, 2ª ed., 1970, RT), as comissões de inquérito, independentemente de qualquer previsão normativa, nasceram no momento em que o Parlamento surgiu na história dos povos livres.

É certo, Senhor Presidente, que o direito à investigação parlamentar, para ser legitimamente exercido, depende da conjugação de três (3) requisitos de índole constitucional, previstos no art. 58, § , da Lei Fundamental da República, que assim dispõe:

As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.” (grifei)

Vê-se, do preceito constitucional em questão, que a instauração do inquérito parlamentar, para viabilizar-se no âmbito das Casas legislativas, está vinculada, unicamente, à satisfação de três (03) exigências definidas, de modo taxativo, no texto da Carta Política: (1) subscrição do requerimento de constituição da CPI por 1/3 dos membros da Casa legislativa, (2) indicação de fato determinado a ser objeto de apuração e (3) temporariedade da comissão parlamentar de inquérito.

Esse entendimento – que encontra apoio no magistério da doutrina – foi assim exposto na autorizada lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 515/516, item n. 4, 24ª ed., 2005, Malheiros):

Comissões parlamentares de inquérito são organismos que desempenharam e desempenham papel de grande relevância na fiscalização e controle da Administração (…). Foram bastante prestigiadas pela Constituição vigente (…). Essa liberdade de criação de comissões parlamentares de inquérito depende, contudo, do preenchimento de três requisitos: (a) requerimento de pelo menos um terço de membros de cada Casa, para as respectivas comissões, ou de ambas, para as comissões em conjunto (comissão mista); (b) ter por objeto a apuração de fato determinado; (c) ter prazo certo de funcionamento. (…).” (grifei)

Cabe assinalar, neste ponto, que essa mesma orientação, referente aos 3 (três) únicos requisitos constitucionais necessários à criação e instalação de uma CPI, foi igualmente sustentada, com inteiro acerto, por dois eminentes Ministros de Estado do atual Governo – Ministro Aldo Rebelo e Ministro Agnelo Queiroz -, quando compunham, então, um grupo minoritário de oposição parlamentar no Congresso Nacional (1999), ocasião em que, insurgindo-se contra ato da Mesa da Câmara dos Deputados, deduziram, no MS 23.418/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, os seguintes fundamentos:

“Para a criação de uma CPI, o texto constitucional exige três requisitos:

1. requerimento de um terço dos membros da Casa Legislativa;

2. apuração de fato determinado;

3. prazo certo de funcionamento.

Dessa forma, a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito consiste em um ato administrativo vinculado ao preenchimento do requisito constitucional da apresentação do requerimento firmado por um terço dos membros da Casa Parlamentar e à indicação de fato determinado a ser apurado em prazo delimitado.

Esta circunstância impõe apenas à Mesa da respectiva Casa Legislativa a prática dos procedimentos formais subseqüentes, ou seja, a publicação do requerimento e a instalação da respectiva Comissão, não cabendo a ela qualquer apreciação de mérito sobre a matéria.

……………………………………………

Não havendo limitação constitucional, não pode a autoridade coatora invocar norma infra-constitucional que restringe o alcance de norma hierarquicamente superior, para negar o exercício de direito líquido e certo dos impetrantes.” (grifei)

Registro que o mandado de segurança ora mencionado – que buscava instalar a denominada CPI da Nike/CBF – foi julgado prejudicado, por efeito de perda superveniente de seu objeto.

No caso ora em exame, impende assinalar que os 3 (três) requisitos constitucionais que venho de referir foram plenamente atendidos, na espécie, pela minoria parlamentar que atua no Senado Federal, inexistindo, a esse respeito, qualquer controvérsia ou contestação.

Isso significa, portanto, Senhor Presidente, que cabe fazer, aqui, uma vez mais, a indagação que anteriormente formulei no início deste voto: pode a maioria, abstendo-se de indicar representantes de sua bancada para compor determinada CPI, frustrar, com tal comportamento, o direito da minoria em ver instaurada uma investigação parlamentar?

Entendo que não, Senhor Presidente.

É que a prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional e que, por efeito de sua intencional recusa em indicar membros para determinada comissão de inquérito parlamentar (ainda que fundada em razões de estrita conveniência político-partidária), culmine, por esse ato de voluntária inércia, por frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalização e de investigação do comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo.

A matéria ora submetida ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, Senhor Presidente, reveste-se de inquestionável relevância. A afirmação que ora faço apóia-se no reconhecimento de que existe, em nosso sistema político-jurídico, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, o que deve conduzir esta Suprema Corte a proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares.

Essa percepção do tema – que reconhece, no direito à efetiva instauração do inquérito parlamentar, uma garantia instrumental constitucionalmente atribuída às minorias legislativas, por efeito da imanência do direito de oposição em face do próprio modelo democrático de Estado que entre nós prevalece – encontra pleno suporte no mais autorizado magistério doutrinário (J. M. SILVA LEITÃO, “Constituição e Direito de Oposição”, 1987, Almedina, Coimbra; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” , p. 309/312, 1998, Almedina, Coimbra; DERLY BARRETO E SILVA FILHO, “Controle dos Atos Parlamentares pelo Poder Judiciário” , p. 131/134, item n. 3.1, 2003, Malheiros; JOSÉ WANDERLEY BEZERRA ALVES, “Comissões Parlamentares de Inquérito: Poderes e Limites de Atuação” , p. 169/170, item n. 2.1.2, 2004, Fabris; UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, p. 216, item n. 5, 2001, Saraiva; MANOEL MESSIAS PEIXINHO/RICARDO GUANABARA, “Comissões Parlamentares de Inquérito: Princípios, Poderes e Limites”, p. 76/77, item n. 4.2.3, 2001, Lumen Juris, v.g.).

É por esse motivo que entendo procedente a pretensão mandamental ora deduzida perante esta Suprema Corte, porque reconheço que o órgão ora apontado como coator transgrediu o direito titularizado pela parte impetrante, desconsiderando a relevantíssima circunstância de que se trata de garantia instrumental diretamente atribuída às minorias parlamentares pela Constituição da República, que, na linha de uma tradição inaugurada pela Lei Fundamental de 1934, consagrou o direito de oposição )e a prerrogativa da investigação parlamentar, especialmente se considerados os termos do art. 58, § , da Carta Política, que assim dispõe:

“Art. 58…………………………………….

§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.” (grifei)

Não constitui demasia assinalar, neste ponto, que a norma inscrita no art. 58, § , da Constituição da República destina-se a ensejar a participação ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa, sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar. Se não fosse assim, Senhor Presidente, o preceito constitucional em referência, que se satisfaz com a subscrição do requerimento por apenas 1/3 dos membros da Casa legislativa, certamente teria estipulado exigência numérica maior do que a mera fração contemplada no já mencionado art. 58, § 3º, da Lei Fundamental.

Não se pode recusar procedência à afirmação, em tudo compatível com a essência democrática que qualifica o regime político brasileiro, tal como veio este a ser definido pelo próprio texto da Constituição da República, de que “O fato de a maioria não necessitar dos votos da minoria para lograr sucesso em todas as suas iniciativas não significa possa ela, só por isso, violentar normas constitucionais e regimentais para abreviar a consumação de atos de seu interesse. A minoria, face à lei, está colocada em pé de igualdade com ela e todos têm a obrigação indeclinável de se subordinar às normas que se impuseram através de Regimento e às que lhes impôs a Constituição”, tal como assinalou, em memorável julgamento, o E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (RT 442/193-210, 196).

Não se revela possível desconsiderar, por isso mesmo, a própria “ratio” subjacente ao preceito normativo inscrito no art. 58, § , da Constituição, cujo fundamento político-jurídico – que deriva da necessidade de respeito incondicional às minorias parlamentares – atua como verdadeiro pressuposto de legitimação da ordem democrática, tal como adverte o próprio magistério da jurisprudência dos Tribunais, em particular a magnífica decisão que emanou do E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (RT 442/193- -210, 195):

“A atuação dum governo democrático e responsável ante o povo requer, pois, o concurso de uma oposição que desempenhe a dupla função do princípio motor e de órgão de proteção da Constituição.

Se um dos vários setores da coletividade está descontente, nada serve melhor, nem com mais eficácia, para expressão desse descontentamento, que a conduta da oposição parlamentar.

……………………………………………

Não há, na realidade, regime democrático sem oposição e que a esta se assegure o pleno direito de fiscalizar os atos do grupo majoritário e contribuir para o aperfeiçoamento das instituições.” (grifei)

Também o eminente Professor PINTO FERREIRA ( “Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno”, tomo I/195-196, item n. 8, 5ª ed., 1971, RT) demonstra igual percepção do tema ao enfatizar – com fundamento em irrepreensíveis considerações de ordem doutrinária – que a essência democrática de qualquer regime de governo apóia-se na existência de uma imprescindível harmonia entre a “Majority rule” e os “Minority rights”:

“A verdadeira idéia da democracia corresponde, em geral, a uma síntese dialética dos princípios da liberdade, igualdade e dominação da maioria, com a correlativa proteção às minorias políticas, sem o que não se compreende a verdadeira democracia constitucional.

A dominação majoritária em si, como o centro de gravidade da democracia, exige esse respeito às minorias políticas vencidas nas eleições. O princípio majoritário é o pólo positivo da democracia, e encontra a sua antítese no princípio minoritário, que constitui o seu pólo negativo, ambos estritamente indispensáveis na elucidação do conceito da autêntica democracia.

O princípio democrático não é, pois, a tirania do número, nem a ditadura da opinião pública, nem tampouco a opressão das minorias, o que seria o mais rude dos despotismos. A maioria do povo pode decidir o seu próprio destino, mas com o devido respeito aos direitos das minorias políticas, acatando nas suas decisões os princípios invioláveis da liberdade e da igualdade, sob pena de se aniquilar a própria democracia.

A livre deliberação da maioria não é suficiente para determinar a natureza da democracia. STUART MILL já reconhecia essa impossibilidade, ainda no século transato: ‘Se toda a humanidade, menos um, fosse de uma opinião, não estaria a humanidade mais justificada em reduzir ao silêncio tal pessoa, do que esta, se tivesse força, em fazer calar o mundo inteiro’. Em termos não menos positivos, esclarece o sábio inglês, nas suas Considerations on Representative Government, quando fala da verdadeira e da falsa democracia (of true and false Democracy): ‘A falsa democracia é só representação da maioria, a verdadeira é representação de todos, inclusive das minorias. A sua peculiar e verdadeira essência há de ser, destarte, um compromisso constante entre maioria e minoria.”(grifei)

Vê-se, daí, que a questão ora submetida ao julgamento desta Suprema Corte faz com que este Tribunal se defronte com um tema de extração iniludivelmente constitucional, eis que o reconhecimento do direito de oposição, de um lado, e a afirmação da necessidade de se assegurar, em nosso sistema jurídico, a proteção às minorias parlamentares, de outro, qualificam-se, na verdade, como fundamentos imprescindíveis à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito.

Lapidar, sob tal aspecto, a advertência do saudoso e eminente Professor GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 96/189-194):

É que só há verdadeira república democrática onde se assegure que as minorias possam atuar, erigir-se em oposição institucionalizada e tenham garantidos seus direitos de dissensão, crítica e veiculação de sua pregação. Onde, enfim, as oposições possam usar de todos os meios democráticos para tentar chegar ao governo. Há república onde, de modo efetivo, a alternância no poder seja uma possibilidade juridicamente assegurada, condicionada só a mecanismos políticos dependentes da opinião pública.

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A Constituição verdadeiramente democrática há de garantir todos os direitos das minorias e impedir toda prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas. Mais que isso – por mecanismos que assegurem representação proporcional -, deve atribuir um relevante papel institucional às correntes minoritárias mais expressivas.

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Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a minoria. Esta exerce também função política importante, decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe relevante papel no funcionamento das instituições republicanas.

O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração.

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Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio texto constitucional, de existência, sobrevivência, liberdade de ação e influência da minoria, para que se tenha verdadeira república.

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Pela proteção e resguardo das minorias e sua necessária participação no processo político, a república faz da oposição instrumento institucional de governo.

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É imperioso que a Constituição não só garanta a minoria (a oposição), como ainda lhe reconheça direitos e até funções.

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Se a maioria souber que – por obstáculo constitucional – não pode prevalecer-se da força, nem ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a minoria, então os compromissos passam a ser meios de convivência política.” (grifei)

O Estado de Direito, concebido e estruturado em bases democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma realidade constitucional densa de significação e plena de potencialidade concretizadora dos direitos e das liberdades públicas.

A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas, Senhor Presidente, no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República.

Para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual, torna-se necessário assegurar, às minorias, mesmo em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, um direito fundamental que vela ao pé das instituições democráticas: o direito de oposição.

Não basta, desse modo, que se atribua, aos grupos minoritários, o direito de oposição, quer se cuide de oposição parlamentar, quer se trate de oposição extraparlamentar. Mais do que o mero reconhecimento formal da existência desse direito, torna-se imperioso garantir-lhe, em plenitude, o seu efetivo exercício, com todas as conseqüências que dele derivem.

Isso significa, portanto, numa perspectiva pluralística, em tudo compatível com os fundamentos estruturantes da própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que, ao lado do direito de oposição, há que haver a garantia de opor-se, para que essa prerrogativa essencial não se converta em fórmula destituída de significação, o que subtrairia – consoante adverte a doutrina (SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, “Fundamentos de Direito Constitucional” , p. 161/162, item n. 602.73, 2004, Saraiva) – o necessário coeficiente de legitimidade jurídico-democrática ao regime político vigente em nosso País.

Por isso mesmo, o direito de oposição, Senhor Presidente, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática concreta.

Nesse contexto, o inquérito parlamentar desempenha um papel impregnado de essencial relevo, pois se qualifica – enquanto garantia instrumental do direito de oposição – como meio expressivo de investigação legislativa, ensejando, a quem a promove, mesmo contra a vontade dos grupos majoritários, a possibilidade de apreciar, de inspecionar e de averiguar, para coibi-los, abusos, excessos e ilicitudes eventualmente cometidos pelos órgãos e agentes do Governo e da Administração.

Essa garantia instrumental – reconhecida (e efetivamente assegurada) às minorias legislativas (CF, art. 58, § 3º) – representa a fórmula constitucional destinada a amparar tais grupos minoritários no desempenho – que se deseja eficaz – do direito de investigar os próprios detentores do Poder, impedindo que estes, por intermédio dos blocos hegemônicos no Parlamento, obstruam, mediante artifícios regimentais ou manipulações interpretativas, a instauração e a realização do inquérito parlamentar.

Daí a procedente observação de J. J. GOMES CANOTILHO e de VITAL MOREIRA (“Constituição da República Portuguesa Anotada” , p. 719/720, item VII, 3ª ed., 1993, Coimbra Editora), em magistério que guarda inteira pertinência com a realidade constitucional vigente no Brasil, notadamente no ponto em que esses ilustres Autores advertem sobre a impossibilidade constitucional de sujeitar-se, à prévia aquiescência do grupo majoritário, o exercício do poder – que assiste à minoria legislativa – de fazer instaurar o pertinente inquérito parlamentar, tal como sucede em nosso sistema jurídico:

“(…) as comissões parlamentares de inquérito são necessariamente constituídas sempre que tal seja requerido por um certo número de deputados (…). Trata-se, assim, de um verdadeiro poder potestativo, que torna a constituição das comissões de inquérito independente do controlo da maioria parlamentar e dá aos deputados dos partidos de oposição o poder de desencadear um número mínimo de inquéritos parlamentares. Não se afigura, por isso, compatível com o regime constitucional sujeitar o requerimento de propostas de inquérito a deliberação parlamentar.” (grifei)

Em uma palavra: a outorga de meios eficazes – que não deve ser recusada às minorias legislativas, quando promovem investigações parlamentares – rege-se, consoante observa JORGE MIRANDA (“Sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito”, “in” Revista da Faculdade de Direito/FAAP, vol. 1/55-60, 56, 2002), pelo “princípio geral de vigilância, fiscalização ou controlo”, o que lhes confere plena legitimidade para insurgir-se contra medidas, como a ora questionada nesta sede mandamental, que visem a obstar, de modo claramente arbitrário, a efetiva realização da investigação parlamentar.

Isso significa, portanto, que a maioria legislativa, mediante deliberada inércia de seus líderes na indicação de membros para compor determinada CPI, não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição, que a eles confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar em torno de fato determinado e por período certo.

Vale referir, neste ponto, a precisa observação de DERLY BARRETO E SILVA FILHO (“Controle dos Atos Parlamentares pelo Poder Judiciário”, p. 133/134, item n. 3.1, 2003, Malheiros):

“No Brasil, a vontade política da maioria parlamentar, ajustada à do Presidente da República, pode desnaturar a função constitucional de controle a cargo do Poder Legislativo, vital ao equilíbrio interorgânico.

Ao grupo hegemônico do Parlamento, aliado ao Chefe do Poder Executivo, caberá, indubitavelmente, a tarefa de direção política do país. Em virtude disso, pergunta-se: quem responderá pela tarefa de controle do poder político, tão preciosa no Estado Democrático de Direito Brasileiro, a ponto de a Constituição salvaguardar a separação dos Poderes até das arremetidas do poder de reforma constitucional (art. 60, § 4º, III, da CF)?

A minoria parlamentar. É ela que poderá ativar, manejando os institutos previstos nos regimentos, comandos constitucionais como o do art. 58, § 3º, pelo qual – repetindo – ‘um terço’ dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal pode, independentemente da autorização ou do beneplácito da maioria parlamentar, requerer a criação de CPIs.” (grifei)

Essa mesma visão do tema, reconhecendo assistir às minorias legislativas o direito à efetiva instauração da investigação parlamentar, é também perfilhada pelo saudoso e eminente NELSON DE SOUZA SAMPAIO (“Do Inquérito Parlamentar”, p. 34, 1964, FGV):

“A Constituição quis apenas dizer que a investigação parlamentar não ficaria dependente sempre da vontade da maioria, geralmente o grupo menos interessado em iniciativa dessa ordem. O pensamento do Constituinte foi, por conseguinte, o de ampliar os meios de contrôle do govêrno, conferindo à oposição ou a determinada minoria, ainda contra a vontade da maioria, a faculdade de provocar a investigação parlamentar. Do contrário se limitariam muito o emprêgo e alcance dessa arma de fiscalização do Executivo, de informação do Legislativo e de esclarecimento da opinião pública.” (grifei)

Cumpre registrar, na matéria, o valioso magistério de LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES (“Comissões Parlamentares de Inquérito – Poder de Investigação”, p. 41/42, item n. 5, 2001, Juarez de Oliveira), que discorre, de modo consistente, com igual abordagem, sobre a criação das comissões parlamentares de inquérito e o correlato “direito das minorias congressuais à fiscalização”:

“É importante mencionar que, podendo ser criadas mediante requerimento de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, as Comissões Parlamentares de Inquérito se inserem no jogo parlamentar como um instrumento de controle à disposição das minorias ou blocos parlamentares minoritários (…). É certo que esta característica é mais acentuada em países nos quais o quorum exigido, por ser menor, é facilitador desta atividade de controle. É o caso de Portugal, no qual um quinto dos deputados à Assembléia da República pode determinar a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (Constituição da República Portuguesa, art. 178, 4). Na Alemanha, basta o requerimento de um quarto dos membros do Bundestag para que sejam instituídas as comissões de inquérito (Lei Fundamental de Bonn, art. 44, 1).

Sem embargo, a possibilidade de instauração das Comissões Parlamentares de Inquérito, em nosso direito, sem necessidade de deliberação plenária, faz delas instrumentos úteis para o exercício do controle dos atos do Poder Executivo.

Temos que a ‘fiscalização pela minoria’ é nota essencial da atividade das Comissões Parlamentares de Inquérito, de observância obrigatória também no âmbito estadual, distrital e municipal. É norma da Constituição Federal que deve ser repetida nas Cartas estaduais e distritais e nas leis orgânicas municipais quando dispõem sobre a função fiscalizadora dos parlamentos, sob pena de inconstitucionalidade.

……………………………………………

O papel assinado às Mesas das Casas Congressuais (…) cinge-se à verificação do cumprimento das exigências formais. Elas não possuem poderes para obstar a instauração da comissão se o requerimento desta apresentou o número exigido de assinaturas e indicou o fato sobre o qual procederá a investigações. Não se trata de temas que, a nosso ver, se sujeitem a deliberações plenárias, pois aí justamente estaria coarctada a proteção do direito das minorias assinado na Carta Política.” (grifei)

Constatado, pois, que o ordenamento constitucional brasileiro reconhece às minorias legislativas, com apoio no direito de oposição – que se qualifica como legítimo consectário do princípio democrático – o poder de ver instaurado o inquérito parlamentar, uma vez atendidos os requisitos delineados no art. 58, § 3º, da Lei Fundamental, cabe verificar se a omissão atribuída ao Senhor Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente dessa Alta Casa legislativa, é passível de colmatação por esta Suprema Corte.

A ocorrência de lacuna normativa no texto do Regimento Interno do Senado Federal, invocada pelo Senhor Presidente dessa Casa legislativa para não adotar providências destinadas a fazer instaurar o inquérito parlamentar, não constitui obstáculo a que esta Suprema Corte, valendo-se dos meios de integração viabilizados pelo Direito, supra a omissão regimental, mediante aplicação analógica de prescrições existentes no âmbito do próprio Poder Legislativo da União.

Refiro-me ao fato de que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 28, § 1º) e o Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 9º, § 1º) prevêem solução normativa para situações em que, qualquer que seja a razão, os líderes partidários deixem de indicar representantes de suas próprias agremiações para compor comissões, inclusive CPIs, constituídas no âmbito, seja da Câmara dos Deputados, seja do Congresso Nacional.

A solução ora preconizada, além de plenamente harmônica com as diretrizes jurídicas que indicam a analogia como meio legítimo de integração das lacunas normativas, mostra-se compatível com a própria prática parlamentar, na medida em que a omissão referida é suprida, por esta Corte, mediante aplicação analógica de normas que o próprio Parlamento reputou cabíveis quando se tratar, como no caso, de falta de indicação, pelos líderes partidários, de representantes das respectivas agremiações, para efeito de composição das comissões legislativas que devam funcionar no âmbito da Câmara dos Deputados ou do próprio Congresso Nacional.

Ou, em outras palavras, o critério ora aplicado para suprir a omissão regimental não se revela estranho à pratica parlamentar, eis que se apóia em elementos propiciados pela própria experiência da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional, cabendo destacar, ainda, por relevante, que o próprio Regimento Interno do Senado Federal, nas hipóteses de lacuna existente em seu texto, autoriza, ainda que se cuide de processo legislativo, a utilização da analogia (RISF, art. 412, VI).

Daí a correta afirmação – feita pelos ora impetrantes – de que se revela possível, a esta Suprema Corte, suprir a omissão constatada, mediante recurso à analogia, com aplicação integrativa de preceitos inscritos tanto no Regimento Comum do Congresso Nacional (art. 9º, § 1º) quanto no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 28, § 1º), como se evidencia da seguinte passagem da impetração mandamental por eles deduzida perante este Tribunal:

“Conquanto o Regimento Interno do Senado Federal seja omisso nesse aspecto, a questão pode ser equacionada pelo significado da regra que prevê a instalação de CPI mediante requerimento de um terço dos membros da respectiva Casa Legislativa. Ou seja, CPI é instrumento que visa a assegurar os direitos da minoria. (…).

……………………………………………

Tanto o Regimento Comum do Congresso Nacional como o Regimento Interno da Câmara dos Deputados tratam, explicitamente, da possibilidade em análise.

Determinam o art. 9º e seu § 1º do Regimento Comum:

Art. 9º Os membros das Comissões Mistas do Congresso Nacional serão designados pelo Presidente do Senado mediante indicação das lideranças.

§ 1º Se os Líderes não fizerem a indicação, a escolha caberá ao Presidente.

(…)

E os arts. 28, § 1º, e 45, § 3º, da Lei Interna da Câmara Baixa:

Art. 28. Estabelecida a representação numérica dos Partidos e dos Blocos Parlamentares nas Comissões, os Líderes comunicarão ao Presidente da Câmara, no prazo de cinco sessões, os nomes dos membros das respectivas bancadas que, como titulares e suplentes, irão integrar cada Comissão.

§ 1º O Presidente fará, de ofício, a designação, se, no prazo fixado, a liderança não comunicar os nomes de sua representação para compor as Comissões, nos termos do § 3º do art. 45.

………………………………………..

Art. 45. A vaga em Comissão verificar-se-á em virtude de término do mandato, renúncia, falecimento ou perda do lugar.

………………………………………..

§ 3º A vaga em Comissão será preenchida por designação do Presidente da Câmara, no interregno de três sessões, de acordo com a indicação feita pelo Líder do Partido ou de Bloco Parlamentar a que pertencer o lugar, ou, independentemente dessa comunicação, se não for feita naquele prazo.

Ou seja, não há, no caso em tela, qualquer dificuldade para que a autoridade indicada como coatora esteja impedida de suprir a omissão com que se pretende fazer, do art. 58, § 3º, letra morta.

……………………………………………

(…) resta que a recusa do Senhor Presidente do Senado Federal, em proceder à designação dos integrantes de Comissão Parlamentar de Inquérito, na omissão dos partidos políticos em fazer a respectiva indicação, lesiona, claramente, direito líquido e certo dos autores.” (grifei)

É certo que, em persistindo a recusa dos líderes das agremiações majoritárias, deixar-se-á de observar, ante uma clara hipótese de impossibilidade material, a cláusula constitucional, que, inscrita no art. 58, § 1º, da Carta Política, consagra a proporcionalidade partidária, nos seguintes termos:

“Art. 58…………………………………….

§ 1º – Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa.” (grifei)

Tal circunstância, contudo, não poderá obstar a que se componha, efetivamente, a denominada “CPI dos Bingos”, pois a voluntária abstenção dos líderes majoritários não tem, nem pode ter, o condão de inviabilizar a criação, a organização e o funcionamento da referida comissão parlamentar de inquérito, eis que a vontade da Constituição – que atribui às minorias legislativas o direito subjetivo à instauração da investigação parlamentar (art. 58, § 3º) – não pode ser neutralizada, não pode ser desrespeitada nem pode ser esvaziada pela omissão, intencional ou não, daqueles representantes dos partidos majoritários no Senado Federal.

Cabe referir, neste ponto, a precisa lição exposta por EDUARDO FORTUNATO BIM, em substancioso estudo sobre a matéria (“A composição partidária proporcional nas comissões parlamentares (CF, art. 58, § 1o) e o pensamento do possível: o direito da minoria à efetivação da CPI”):

“O argumento de que a ausência de proporcionalidade inviabilizaria a comissão parlamentar não procede, porque a locução ‘tanto quanto possível’ não se aplica somente a imperfeições matemáticas da sua composição pela aplicação da fórmula da proporcionalidade, aplica-se, também, para que a existência de outros obstáculos, impossibilitando a composição proporcional (como, por exemplo, a recusa, expressa ou tácita, do partido político – inserida no âmbito de sua autonomia, art. 17, CF – de indicar os integrantes a que tenha direito), não maculem a sua validade, desde que, obviamente, ela tenha sido efetivada da melhor maneira possível.

A cláusula tanto quanto possível de representação proporcional partidária (CF, § 1º do art. 58) é a consagração do pensamento do possível em sede constitucional. O Constituinte, sabendo das dificuldades de se implementar a proporcionalidade e evitando uma crise de efetividade à instauração das comissões ou mesas, imprescindíveis à vida parlamentar e à democracia republicana, estabeleceu que a proporcionalidade ocorresse na medida em que isso fosse possível. Tal solução consagra o pensamento do possível porque cria uma solução acumulativa e compensatória, conduzindo a um desenvolvimento conjunto dos princípios constitucionais da efetivação das comissões e das mesas (e, no caso da CPI, do direito potestativo das minorias de efetivá-la), da fiscalização do Executivo pelo Legislativo, e não ao seu declínio conjunto.

……………………………………………

Sendo a instalação da CPI um direito potestativo da minoria, como sinônimo do terço parlamentar que a requereu, a declinação dos partidos políticos de indicar membros para a sua composição não impede e nem elimina o dever do órgão responsável na casa legislativa respectiva de efetivar a CPI. Dever esse suprível pelo Judiciário para possibilitar aos parlamentares que a requereram sua efetivação, uma vez que a sua constituição ocorre ‘juris et de jure’ com a apresentação do requerimento.” (grifei)

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, reconheço que o Senhor Presidente do Senado Federal, em sua condição de órgão dirigente da Mesa dessa Alta Casa do Congresso Nacional, desrespeitou o direito público subjetivo, constitucionalmente assegurado à parte ora impetrante, enquanto integrante da minoria legislativa, à efetiva instauração do inquérito parlamentar, não obstante integralmente preenchidos, no caso, os requisitos a que alude o art. 58, § 3º, da Carta Política.

Sendo assim, entendo que se impõe a concessão do presente mandado de segurança, em ordem a determinar que o Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal, mediante aplicação analógica do art. 28, § 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, faça, ele próprio, a designação dos nomes faltantes dos Senhores Senadores que irão compor a denominada “CPI dos Bingos”.

Nestes termos, Senhor Presidente, defiro o presente mandado de segurança, garantindo, em conseqüência, à parte ora impetrante, que compõe a minoria legislativa no Senado Federal, o direito à efetiva constituição, organização e funcionamento da já referida “CPI dos Bingos”, de que trata o Requerimento nº 245/2004.

É o meu voto.

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