Parecer da PGR

Para Fonteles, nova Lei de Falências é constitucional.

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12 de maio de 2005, 20h19

Para o procurador-geral da República, Claudio Fonteles, a Nova Lei de Falências é constitucional. Ele deu parecer contra a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela CNPL — Confederação Nacional das Profissões Liberais questionando a Lei 11.101/05. As informações são do Ministério Público Federal.

A lei estabelece que os trabalhadores que devem receber até 150 salários mínimos terão prioridade no pagamento durante o processo de falência (artigo 83). Acima desse limite, as dívidas trabalhistas tornam-se créditos quirografários (sem preferência).

A confederação alega que o dispositivo, entre outras coisas, vai contra o valor social do trabalho, o trabalho como direito social, o direito dos trabalhadores referente à proteção do salário, todos garantidos pela Constituição e previstos nos artigos 1º, 6º e 7º, respectivamente. Para Fonteles, a lei estabelece o limite de 150 salários mínimos para evitar abusos no processo falimentar.

Fonteles cita o parecer de Ramez Tebet, relator no Senado do projeto que resultou na Nova Lei de Falências. Segundo o senador, o limite impede que os administradores das empresas (que em geral são os responsáveis pela falência) tentem receber na Justiça altos valores, com preferência sobre todos os outros credores e em prejuízo dos ex-empregados que deveriam ser efetivamente protegidos.

Segundo o procurador-geral, os princípios de proteção ao trabalho foram “na verdade, reafirmados pelo novo inciso que estabeleceu o valor limite de 150 salários mínimos, bem como pelo dispositivo que considera como quirografário o crédito excedente”.

Além do artigo 83, a confederação sustenta que os artigos 84 e 86 da Nova Lei de Falência são inconstitucionais. Fonteles rebate todos os argumentos da Confederação contra a lei e opina pela improcedência total do pedido de declaração de inconstitucionalidade. O parecer será analisado pelo ministro Carlos Velloso, relator do caso no Supremo Tribunal Federal.

ADI 3.424

Leia a íntegra do parecer de Fonteles

Parecer nº 5028/CF

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 3424-3/600 – DISTRITO FEDERAL

RELATOR: EXMO. SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO

REQUERENTE:CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS PROFISSÕES LIBERAIS – CNPL

REQUERIDOS: PRESIDENTE DA REPÚBLICA E CONGRESSO NACIONAL

Ação direta em face do inciso I, inciso VI, alínea c, e § 4º, do art. 83, do inciso V do art. 84 e do inciso II do art. 86, todos da Lei 11.101/2005, que “Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária”. Parecer pela improcedência total do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO-RELATOR:

Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) em face do inciso I – mais especificamente da expressão “limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor” -, do inciso VI, alínea c, e do § 4º, todos do art. 83, do inciso V do art. 84 e do inciso II do art. 86, constantes da Lei federal nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, conhecida como a “nova lei de falências”, embora também regule a recuperação judicial e extrajudicial de devedores.

2. Os dispositivos impugnados assim dispõem:

“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;

(…)

VI – créditos quirografários, a saber:

(…)

c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

(…)

§ 4º Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários.

(…)

Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, os relativos a:

(…)

V – obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei.

(…)

Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:

(…)

II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;”

3. Insurge-se a Confederação autora, inicialmente, contra os incisos I e VI, alínea c, do art. 83 da Lei 11.101/2005. No que respeita ao inciso I, a autora é contra o valor de 150 salários-mínimos por credor, estabelecido como limite até o qual os créditos derivados da legislação do trabalho terão preferência em relação aos demais créditos devidos na falência. Em decorrência, questiona o inciso VI, alínea c, que considera como quirografários os créditos excedentes ao referido limite.

4. Assevera a autora que “A limitação em exame é ofensiva a vários princípios constitucionais valorativos do trabalho e, por conseguinte, do salário e demais direitos trabalhistas” (fls. 06).

5. Nesse passo, sustenta que ambos os dispositivos contrariam o valor social do trabalho como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, CF), o trabalho como direito social (art. 6º, CF), o direito dos trabalhadores referente à proteção do salário, além de outros direitos que visem à melhoria de sua condição social (art. 7º, caput e inciso X, CF), a valorização do trabalho humano como um dos fundamentos da ordem econômica (art. 170, CF) e o primado do trabalho como base da ordem social (art. 193, CF).

6. Alega, também, que os aludidos dispositivos ofendem a inteligência do art. 100, caput, da Constituição da República, que excetua da ordem cronológica de apresentação dos precatórios os pagamentos dos créditos de natureza alimentícia devidos pela Fazenda Pública.

7. Sustenta, além disso, que os mesmos dispositivos desrespeitam o princípio constitucional da isonomia, tanto em sua previsão geral constante do caput do art. 5º, quanto em sua específica previsão no art. 7º, inciso XXXII. Isso porque os trabalhadores com rendimentos mais modestos teriam a possibilidade de auferir a integralidade de seus créditos trabalhistas, que não ultrapassaria o limite de 150 salários-mínimos, ao passo que os empregados com melhores rendimentos não os receberiam na totalidade, uma vez que o valor excedente ao limite, considerado como crédito quirografário, via de regra não lhes seria pago, ante a constatação do que rotineiramente acontece nos processos falimentares.

8. A autora postula, outrossim, pela declaração de inconstitucionalidade do § 4º do art. 83 da lei de recuperação e falência de devedores, afirmando que, ao considerar como quirografários os créditos trabalhistas cedidos a terceiros, o parágrafo em questão afrontou o princípio constitucional da razoabilidade e o direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, CF).

9. Argumenta que a ofensa à razoabilidade reside no fato de ter o mencionado parágrafo desfigurado os elementos caracterizadores da cessão de crédito, instituto jurídico tradicionalmente conhecido pela inalterabilidade da natureza do crédito cedido, e pela mudança, somente, do sujeito ativo da obrigação, mediante a substituição do antigo credor por outro.

10. O comentado § 4º, segundo a requerente, também ofende o direito de propriedade, “visto restringir a disponibilidade da coisa, um de seus atributos básicos, posto criar um entrave intransponível à cessão do crédito alimentar” (fls. 14), na medida em que “Nenhum cessionário adquirirá um crédito que, automaticamente, celebrado o negócio jurídico, sofre uma metamorfose involutiva e de borboleta passa a ser lagarta” (fls. 13).


11. A Confederação ainda questiona o inciso II do art. 86 da lei federal em testilha, que permite a restituição em dinheiro da importância entregue ao devedor-falido, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3º e 4º, da Lei nº 4.728/65.

12. O art. 75 da Lei nº 4.728/65 tem a seguinte redação:

“Art. 75. O contrato de câmbio, desde que protestado por oficial competente para o protesto de títulos, constitui instrumento bastante para requerer a ação executiva.

§ 1º Por esta via, o credor haverá a diferença entre a taxa de câmbio do contrato e a data em que se efetuar o pagamento, conforme cotação fornecida pelo Banco Central, acrescida dos juros de mora.

§ 2º Pelo mesmo rito, serão processadas as ações de cobrança dos adiantamentos feitos pelas instituições financeiras aos exportadores, por conta do valor do contrato de câmbio, desde que as importâncias correspondentes estejam averbadas no contrato, com anuência do vendedor.

§ 3º No caso de falência ou concordata, o credor poderá pedir a restituição das importâncias adiantadas, a que se refere o parágrafo anterior.

§ 4º As importâncias adiantadas na forma do § 2º deste artigo serão destinadas, na hipótese de falência, liquidação extrajudicial ou intervenção em instituição financeira, ao pagamento das linhas de crédito comercial que lhes deram origem, nos termos e condições estabelecidas pelo Banco Central do Brasil”.

13. Sustenta a requerente que tal pedido de restituição “é medida portadora de potencialidade esvaziadora dos recursos da massa falida” (fls. 15) e que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, após reiterados julgamentos, editou a súmula 20, preceituando que “Em processo de falência o pagamento dos créditos trabalhistas tem prioridade sobre a devolução do valor adiantado ao falido à conta de contrato de câmbio”, por entender que, do contrário, os princípios constitucionais tutelares do trabalho restariam maculados.

14. Explica a Confederação que, em seu prejuízo, há o posicionamento contrário do Superior Tribunal de Justiça, que entende ser o valor adiantado dinheiro da instituição financeira em poder do falido, e não deste, não restando ao devedor outra alternativa senão restituir a financeira. Alega que isso não se coaduna, por exemplo, com a lição do professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, em grande parte trazida aos autos.

15. Por derradeiro, a requerente combate o inciso V do art. 84 da lei, na parte em que este considera as obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, na forma do art. 67 da mesma lei, ou após a decretação da falência, como créditos extraconcursais, a serem pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 da lei.

16. O art. 67, por sua vez, dispõe:

“Art. 67. Os créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, inclusive aqueles reativos a despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo, serão considerados extraconcursais, em caso de decretação de falência, respeitada, no que couber, a ordem estabelecida no art. 83 desta lei”.

17. A autora expende que “manifestamente arranha, a norma [art. 84, inciso V], a ‘pars conditio creditorum’ e, por conseguinte, o princípio constitucional da isonomia” (fls. 23), relegando o paradoxo existente entre esse dispositivo e o art. 67, no que atina à ordem de preferência entre créditos extraconcursais e os previstos no art. 83.

19. Vossa Excelência acionou o art. 12 da lei da ação direta. Prestadas as devidas informações pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional, e ouvido o Advogado-Geral da União, vieram os autos a esta Procuradoria-Geral da República para manifestação.

20. É o relatório.

21. Primeiramente, para fins de análise a respeito da constitucionalidade do inciso I e do inciso VI, alínea c, do art. 83 da Lei 11.101/2005, é necessário conhecer os motivos que levaram o legislador ordinário a estabelecer a discutida limitação de 150 salários-mínimos por credor trabalhista.

22. Assim, reputa-se fundamental transcrever um trecho do parecer do Senador Ramez Tebet pela aprovação do projeto de lei que resultou no novel diploma recuperatório e falimentar:

“O objetivo da limitação à preferência do crédito trabalhista é evitar abuso freqüente no processo falimentar, pelo qual os administradores das sociedades falidas, grandes responsáveis pela derrocada do empreendimento, pleiteiam – por meio de ações judiciais milionárias e muitas vezes frívolas, em que a massa falida sucumbe em razão da falta de interesse em uma defesa eficiente – o recebimento de altos valores, com preferência sobre todos os outros credores e prejuízo aos ex-empregados que efetivamente deveriam ser protegidos, submetendo-os a rateios com os ex-ocupantes de altos cargos. Tal modificação, longe de piorar a situação dos trabalhadores, garante a eles maior chance de recebimento, pois reduz-se a possibilidade de verem parte significativa do valor que deveriam receber destinada ao pagamento dos altos valores dos quais os ex-administradores afirmam ser credores trabalhistas.

No Senado Federal, porém, a questão foi finalmente esclarecida e, na audiência pública realizada nesta Comissão de Assuntos Econômicos em 5 de fevereiro de 2004, as duas maiores centrais sindicais brasileiras pronunciaram seu apoio à limitação da preferência do crédito trabalhista. Propomos, portanto, a criação de um limite à preferência do crédito trabalhista de 150 salários mínimos por trabalhador. O valor que superar o limite deverá ser inscrito no quadro geral como crédito quirografário. Ressalte-se, para que não restem dúvidas, que não haverá limite para a preferência do crédito decorrente de acidente de trabalho, haja vista a baixa probabilidade de que sirva como instrumento de fraude pelos ex-administradores.

Segundo os dados mais recentes do Tribunal Superior do Trabalho, o número de julgados e conciliações na Justiça do Trabalho no ano de 2002 foi de aproximadamente 1,6 milhão. O mesmo tribunal estima que o valor nominal dos valores pagos naquele ano nos feitos trabalhistas foi de aproximadamente 4 bilhões de reais

Desse modo, a média dos valores pagos na Justiça do Trabalho foi próxima de R$ 2.400,00. Levando-se em conta o salário mínimo de R$ 200,00 vigente à época, as indenizações, em média, foram de 12 salários mínimos. Considerando-se a estrutura extremamente concentrada da renda no Brasil, o limite superior de 150 salários mínimos (hoje equivalente a R$ 36 mil) afetará número reduzidíssimo de assalariados, entre os quais estarão, exclusiva ou primordialmente, os ocupantes de cargos elevados na hierarquia administrativa das sociedades.

Por fim, saliente-se que a preferência dos trabalhadores tem como fundamento, além da hipossuficiência do proletário, a natureza alimentar de seu crédito. Em outras palavras, garante-se ao trabalhador o recebimento prioritário na falência porque, se não receber, não terá condições de prover o sustento próprio e de sua família. Parece claro que esse fundamento não subsiste em situações em que os valores superem cifra tão elevada” (fls. 323, verso, e 324).

23. Diante desses convincentes argumentos, tem-se que os princípios constitucionais concernentes à proteção ao trabalho e aos direitos dele decorrentes, reputados ofendidos pela autora, foram, na verdade, reafirmados pelo novo inciso que estabeleceu o valor limite de 150 salários-mínimos, bem como pelo dispositivo legal que considera como quirografário o crédito excedente.

24. A nova lei não excluiu nenhum direito trabalhista, mas tão-somente estabeleceu uma ordem diferenciada de preferência entre os créditos de até 150 salários-mínimos e aqueles cujo valor sobejar a essa quantia. Nesse sentido, são as informações do Congresso Nacional, prestadas por meio da Advocacia do Senado Federal:

“Sobre o limite de 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos constante da norma supra-indicada, equivoca-se a Requerente ao confundir limite de preferência com reconhecimento de crédito.


Como todos os demais credores, o trabalhador de empresa que vem a falir terá o direito de receber seu crédito, que continua reconhecido e respeitado pela legislação. Não ocorrerá perecimento automático desse sagrado direito.

O limite estabelecido, vale frisar, refere-se à preferência de pagamento e não ao direito trabalhista em si. O que sobejar ao limite poderá ser cobrado, todavia sem a preferência legal – ou seja, em regime de igualdade com os demais credores quirografários” (fls.417).

25. De igual modo, a alegação de ofensa ao que se infere do art. 100, caput, da Constituição, não deve prosperar, visto ser inadmissível considerar o valor excedente a 150 salários-mínimos como crédito de caráter alimentar.

26. O princípio constitucional da isonomia, cuja ofensa se argúi, também permanece incólume. A autora sustenta que os trabalhadores com rendas mais modestas perceberiam os seus créditos integralmente, visto que o valor destes não ultrapassaria o limite de 150 salários, enquanto os empregados com melhor renda não os receberiam na totalidade, dada a natureza quirografária do crédito remanescente. Considerando isso, é certo dizer que o legislador nada mais fez do que tratar desigualmente os desiguais.

27. É lição de Alexandre de Moraes:

“… o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito…” (Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003, p.64).

28. No que se refere à alegação de inconstitucionalidade do art. 83, § 4º, que considera como quirografários os créditos trabalhistas cedidos a terceiros, a pretensão da requerente também não merece acolhida.

29. É bem verdade que, do modo como disciplinado no novel diploma, o instituto da cessão de crédito desvirtuou-se se comparado ao seu tradicional regramento. Com efeito, a natureza do crédito muda, fazendo com que este desça na classificação da ordem de preferência dos créditos na falência. Mas dizer que isso ofende o princípio da razoabilidade, data maxima venia, não parece argumento hábil. Qualquer lei federal pode inovar em matéria de direito obrigacional (art. 22, I, CF).

30. O mencionado § 4º não fere, também, o direito de propriedade, pois o trabalhador titular do crédito poderá cedê-lo quando e como bem entender. O fato de a transformação do crédito não despertar o interesse de cessionários em potencial não significa que há violação do direito de propriedade. Se assim fosse, muitos dos institutos jurídicos em vigor seriam inconstitucionais.

31. Quanto à alegação de vício de inconstitucionalidade veiculado pelo inciso II do art. 86 da lei federal em comento, o qual permite a restituição em dinheiro da importância entregue ao devedor-falido, decorrente de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, impende registrar que, apesar das decisões e da súmula do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul favoráveis à autora, o entendimento dessa Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça não o são.

32. Esse Supremo Tribunal negou seguimento ao agravo de instrumento nº 435.032, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de que a relação entre a restituição relativa a contrato de câmbio e os créditos trabalhistas é de ordem infraconstitucional. A seguir, o teor de parte da decisão monocrática proferida pelo Ministro Cezar Peluso:

“1. Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que indeferiu processamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assim ementado: ‘Pedido de restituição – Adiantamento de câmbio – O privilégio legal se constitui em ficção gerado uma iniqüidade. Os créditos trabalhistas possuem tutela constitucional não podendo ser preteridos pelo legislador ordinário. As ficções legais não podem se prestar a gerar casos de iniqüidade’ (fl. 170). Opostos embargos de declaração, foram rejeitados. 2. Inadmissível o recurso. O acórdão impugnado decidiu a causa com base na legislação infraconstitucional, de modo que eventual ofensa à Constituição Federal seria, aqui, apenas indireta. Ora, é pacífica a jurisprudência desta Corte, no sentido de não tolerar, em recurso extraordinário, alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, de inobservância de normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República”.

32. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça é pacífico o entendimento de que a restituição referente a contrato de câmbio, na falência, deve ser paga com primazia em relação aos demais créditos.

33. De tão iterativas as suas decisões, aquela Corte editou a súmula 307, com o seguinte teor: “A restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito”.

34. As decisões do Superior Tribunal que culminaram na referida súmula foram baseadas na acertada conclusão de que o adiantamento efetuado em contrato de câmbio é, em verdade, dinheiro de terceiro (da instituição financeira) em poder da empresa exportadora que vem a falir. Disso é exemplo o seguinte julgado:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. COMERCIAL. CONCORDATA. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO. CONTRATO DE CÂMBIO. CRÉDITOS TRABALHISTAS. PREFERÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Não há falar em violação ao art. 535 do CPC se o acórdão recorrido, ao solucionar a controvérsia, longe de ser omisso, bem delineou as questões fáticas e jurídicas a ele submetidas, exprimindo o sentido geral do julgamento.

2. Os créditos trabalhistas não têm precedência sobre os pedidos de restituições, decorrentes de adiantamento de contrato de câmbio, porquanto representam, na verdade, dinheiro de terceiro em poder da pessoa jurídica concordatária. Precedentes iterativos da Terceira e Quarta Turmas.

3. Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido”

(STJ, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, Resp 533522/RS, DJ de 03/11/2003, p. 323 – grifo nosso)

35. Por fim, resta analisar a inconstitucionalidade argüida pela requerente em relação ao art. 84, inciso V, da Lei 11.101/2005, sob a alegação de que este, a exemplo de outros, também teria afrontado o princípio da isonomia.

36. O dispositivo da vez considera como créditos extraconcursais, a serem pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 da lei, as obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, na forma do art. 67 do mesmo diploma, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem a estabelecida no art. 83. A requerente, contudo, não questiona esta última parte atinente aos tributos.

37. O art. 67 referido dispõe que:

“Art. 67. Os créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, inclusive aqueles reativos a despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo, serão considerados extraconcursais, em caso de decretação de falência, respeitada, no que couber, a ordem estabelecida no art. 83 desta lei”.

38. Muito embora haja contradição entre esses dispositivos (art. 84, inciso V e art. 67), visto não ser possível concluir-se se, de fato, os referidos créditos, ditos extraconcursais, deverão mesmo ser pagos antes daqueles previstos no art. 83, é de se analisar a questão admitindo-se essa primazia, já que foi esse o sentido que ensejou a alegação da eiva pela requerente.

39. Quanto a essa questão, é oportuno valer-se da seguinte explicação do douto Advogado-Geral da União:

“… diante da sistemática de outrora, a atual inova ao outorgar a qualidade de extraconcursais às obrigações implementadas durante a recuperação judicial ou após a decretação da falência – neste caso, indiscriminadamente -, e a tributos relativos a fatos geradores ocorridos nesta segunda oportunidade, tudo sendo pago com primazia sobre os créditos empregatícios.

No entanto, essas novidades não vieram sem propósito. Para atender ao eixo central do novel diploma, consistente na recuperação e na preservação da empresa, é indispensável que as obrigações referidas sejam realizadas com prioridade, inclusive sobre aquelas de natureza trabalhista. Apenas com a preferência dada aos novos credores do empresário insolvente, àqueles nascidos no curso da recuperação judicial ou no da falência, é viável a preservação do negócio.

É que, no mais das vezes, os terceiros, amedrontados pela iminência de declaração da bancarrota, dispersavam-se da convivência com o empresário, agilizando o processo de esgotamento de sua vida econômica.

De tal modo, a recente legislação preferiu conferir privilégio aos créditos formados, não apenas ao longo da recuperação judicial, mas assim também aos nascidos na falência, tudo visando o encorajamento dos terceiros a permanecerem em tratativas com o empresário em dificuldades. Só tal mecanismo constitui meio idôneo à concretização desse objetivo maior – e constitucionalmente desejado – de preservação da empresa.

(…)

O que, com efeito, interessa à presente controvérsia, é a percepção de que sem o privilégio dos créditos já citados, tornam-se totalmente ineficientes os novos mecanismos legais de preservação da empresa” (fls. 449/450).

40. Essa manifestação do Advogado-Geral expõe com clareza o objetivo perseguido pelo legislador, cuja ausência de previsão tornaria a nova lei praticamente inócua, como era a anterior, de pouco adiantando a sua criação. Tendo em vista esse escopo, que se coaduna com o espírito constitucional, evidente que não há ofensa ao princípio da isonomia, devendo ser lembrada a já citada lição de Alexandre de Moraes.

41. Ante o exposto, manifesto-me pela improcedência total do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

Brasília, 3 de maio de 2005.

CLAUDIO FONTELES

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

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