Xenofobia judicial

Unilateralismo da era Bush pode vir a ser judicial também

Autor

  • Joaquim Falcão

    é professor de Direito Constitucional e Diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro vice-presidente do Instituto Itaú-cultural e ex-membro do Conselho Nacional de Justiça.

5 de maio de 2005, 17h49

Em recente julgamento, a Suprema Corte norte-americana determinou que menor de idade não pode ser condenado à morte. Consideraram que, dada a imaturidade do réu, pena de morte seria punição “cruel” e “não usual” -o que é vedado pela Constituição americana.

Esse seria mais um julgamento entre outros se, ao redigir o voto em nome dos ministros vencedores, o “justice” Kennedy não tivesse citado a experiência internacional como argumento importante. Ressaltou que os Estados Unidos eram o único país do mundo que ainda adotava pena de morte para jovens, prática já abandonada até mesmo por China e Irã. Disse textualmente: “É apropriado que reconheçamos o peso esmagador do juízo internacional contrário à pena de morte juvenil, embasado em grande parte na compreensão de que a instabilidade e falta de equilíbrio emocional dos jovens pode freqüentemente ser uma circunstância que contribui para o crime”.

Foi a gota d’água. A polêmica foi imediata. Nem chegou a ganhar as ruas. O “justice” Antonin Scalia, escrevendo em nome dos ministros vencidos, rebateu na hora e de público. Contestou explicitamente o uso do “juízo internacional” nas decisões da Suprema Corte. Considerações alienígenas estariam invadindo território exclusivamente norte-americano: o da interpretação de suas leis. O Judiciário deveria interpretar apenas de “si para sigo mesmo”, diria Guimarães Rosa. Rejeitando a tese de que o direito americano deve se conformar ao resto do mundo, afirmou Scalia: “Em vários aspectos relevantes, o direito da maioria dos países difere do nosso (…) Não creio que a aprovação de outras nações e povos possa reforçar o nosso compromisso com princípios americanos (…)”.

A polêmica tem desdobramentos radicais. Trinta e oito deputados propuseram na Câmara uma resolução estabelecendo que as decisões judiciais sobre o significado da Constituição americana não podem se basear em “decisões, leis ou pronunciamentos de instituições estrangeiras (…)”. Ou seja, a Câmara dos Deputados quer limitar a discricionariedade da Suprema Corte. Ao julgarem, os “justices” estariam proibidos de fundamentar seus raciocínios em análises comparativas com leis e situações de outros países!

Os argumentos dos deputados dão bem a medida de como setores da sociedade nos EUA percebem a globalização de hoje: como via única. Eis, textualmente, os argumentos: (a) os americanos não devem buscar orientação sobre como viver as suas vidas nas decisões quase sempre contraditórias de centenas de organizações internacionais; (b) a confiança inapropriada do Judiciário em julgamentos, leis e pronunciamentos estrangeiros coloca em risco a soberania dos EUA, a separação de Poderes e a autoridade do presidente e do Senado para celebrar e ratificar tratados; (c) a capacidade de os americanos viverem dentro de claros limites legais (separados dos estrangeiros) é um fundamento do Estado de Direito; (d) a própria Suprema Corte teria dito, no caso Printz x EUA (1997), que “a análise comparativa é inadequada para a tarefa de interpretação da Constituição”. E por aí vamos.

Esses argumentos consubstanciam o que se convencionou chamar de “excepcionismo”, isto é, a doutrina de que os EUA são excepcionais e, como tais, isolam-se das soluções globais.

Como tudo o mais em um país que, com razão, orgulha-se de seu pluralismo e respeito à liberdade, essa xenofobia judicial radical não é unânime. Mas expressa bem os novos tempos. Afinal, passou-se do discurso para a ação: votos de ministros da Suprema Corte e projeto de resolução de legisladores eleitos. O caso é serio. Em outras palavras, o unilateralismo da era Bush não tende a ser apenas militar ou econômico. Pode vir a ser judicial também.

Essa posição fica moralmente insustentável diante da ação do governo norte-americano, de sua comunidade financeira e do FMI e do Banco Mundial, instituições onde os EUA têm primazia. Há anos buscam exportar leis, doutrinas, jurisprudências e experiências judiciais americanas. Dois pesos e duas medidas. Os exemplos são inúmeros. A recente e necessária nova Lei de Falências, que o Banco Mundial tanto desejou, foi moldada pelo “chapter 11”, dos EUA. Setores do banco questionam aqui e ali nosso Estado de Direito pelo fato de alguns contratos não serem interpretados como lhes conviria. Sem falar na pressão diária do governo americano para que a nossa legislação de direito de propriedade intelectual esteja conforme à legislação e à prática deles.

Não se combate xenofobia com xenofobia. Não se justificaria a de cá pela de lá. Mas o fato é que, embutido nessa xenofobia norte-americana, existe um respeitável sentimento de patriotismo e, sobretudo, uma crença muito positiva de que eles são capazes de resolver por si sós seus problemas. O que é um bom conselho para um Brasil ainda tão mimético. É nesse sentido que devemos analisar essa tendência de xenofobia judicial. De alguma forma, ainda que de maneira radical e nos termos equivocados, coloca-se uma questão fundamental para todos os países que inevitavelmente participam da globalização: sem auto-estima, autoconfiança e imaginação nacional não se pode ir muito longe.

(Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 25 de abril)

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    é mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA), doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de Direito Constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, e membro do Conselho Nacional de Justiça.

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