É ministro

Supremo vai investigar o presidente do Banco Central

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5 de maio de 2005, 19h09

As acusações que pesam sobre o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, de crime fiscal, eleitoral e evasão de divisas vão ser apuradas pelo Supremo Tribunal Federal. Por sete votos a quatro, a Corte decidiu, nesta quinta-feira (5/5), conceder foro judicial privilegiado para Meirelles que, por meio de Medida Provisória convertida em Lei, no ano passado, ganhou status ministerial.

Os autores das ações — o PSDB e o PFL — pediam ao Supremo que declarasse a completa inconstitucionalidade do dispositivo que blindou o presidente do Banco Central: a MP 207/04 convertida na Lei 11.036/04. As ações apontavam diversas ofensas à Carta, como a injustificada urgência e relevância da MP e ilegalidade do seu uso para modificar matéria processual, dada pela mudança de foro para julgar o presidente do Banco Central.

Além disso, as ações indicavam a inconstitucionalidade do ato que teria alcançado matéria própria da regulamentação do Sistema Financeiro Nacional. Tal regulamentação só pode ocorrer por meio de lei complementar, que exige quorum qualificado para a sua aprovação — a maioria absoluta dos integrantes do Congresso Nacional. Na hierarquia das leis, as MPs se equiparam às leis ordinárias que são aprovadas por maioria simples dos parlamentares presentes à sessão.

Todas essas alegações foram rejeitadas pelo relator da matéria, ministro Gilmar Mendes, que considerou o ato do presidente da República absolutamente constitucional. Nesse entendimento ele foi acompanhado pelos ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim. Votaram contra a blindagem os ministros Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence.

Gilmar Mendes foi desmontando uma a uma as alegações de inconstitucionalidade. Sobre a urgência e relevância que devem caracterizar as MPs, o ministro considerou que a concessão da blindagem foi um ato de organização administrativa do governo, cuja oportunidade é de livre escolha do presidente da República. Conseqüentemente, por entender que a mudança foi administrativa, Gilmar Mendes concluiu que não se mexeu nas regras que regulam o Sistema Financeiro Nacional. Pelo mesmo motivo, segundo ele, não se tratou de matéria processual penal.

“Não acredito no argumento de que uma MP teria sido editada para resolver um problema pessoal”, afirmou Mendes que, no início desta década, ganhou status de ministro quando comandava a Advocacia-Geral da União. Para ele, a blindagem (ou prerrogativa de foro) é um instituto importante para a liberdade, independência e imparcialidade do funcionamento das próprias instituições. “As prerrogativas funcionais não são um privilégio pessoal”, afirmou.

Para ressaltar a importância da blindagem, Mendes lembrou que a procuradoria do Banco Central registra a existência de cerca de 40 ações ativas contra ex-presidentes da autarquia. Uma delas cita o economista Paulo Lira, que presidiu o Banco Central 30 anos atrás. Recordou ainda que, no apagar das luzes do governo passado, o ex-presidente do BC, Armínio Fraga, foi denunciado pelo Ministério Público Federal porque teria baixado normas que lesaram cotistas de fundos de investimento. Segundo o ministro, os dirigentes do BC devem ter tranqüilidade para decidir, não podendo ficar à mercê de paixões locais ou de processos judiciais com clara motivação política.

Uma coisa é ou não é

O ministro Eros Grau, o segundo a votar, acompanhou o relator entendendo também que não houve ofensa à regulamentação do sistema financeiro nacional. No mesmo sentido, o ministro Joaquim Barbosa acrescentou que a blindagem “criou uma incongruência” no organograma do governo que não configura inconstitucionalidade. Para ele, o presidente do BC, tecnicamente, não é subordinado, mas sim vinculado ao ministro da Fazenda.

A divergência foi aberta pelo ministro Carlos Ayres Britto, que questionou a blindagem argumentando que a Constituição estabeleceu o vínculo funcional entre ministro e ministério. “Quem é plenamente ministro é quem dirige ministério”, afirmou. Além disso, lembrou que os ministros são nomeados e exonerados pelo presidente da República, a quem devem inclusive apresentar relatórios de gestão anuais. “Trata-se de respeitarmos a Carta”, disse.

O argumento da proeminência e relevância do cargo de presidente do BC, apresentado pelo ministro Cezar Peluso, que justificaria a blindagem, não convenceu o ministro Marco Aurélio. Ele afirmou que a “ficção jurídica” atribuiu o título de ministro ao presidente de uma autarquia que poderia ser tida como especial.

“Uma coisa é ou não é”, argumentou, lembrando que as atividades são distintas porque ministro de estado é auxiliar do presidente da República. “Atravessamos uma época de perda de parâmetros. A segurança jurídica implica o respeito ao direito posto. Para se governar, paga-se o preço módico que é o respeito ao arcabouço legislativo”, concluiu o ministro.


Com essa decisão, o Supremo agora dará curso ao Inquérito 2.206, impetrado contra Meirelles pelo procurador-geral da República Cláudio Fontelles, e que está sendo relatado pelo ministro Marco Aurélio. O procurador solicitou uma série de investigações e o ministro Marco Aurélio já adiantou que autorizará a sua realização. Caso não ganhasse o status de ministro, Meirelles seria investigado pela Justiça Federal de primeira instância.

Leia a íntegra do voto de Gilmar Mendes

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.289-5 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

REQUERENTE(S): PARTIDO DA FRENTE LIBERAL – PFL

ADVOGADO(A/S): ADMAR GONZAGA NETO

REQUERIDO(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): Registro, inicialmente, que o presente relatório é comum às ações diretas de inconstitucionalidade 3289 e 3290, ajuizadas, respectivamente, pelo Partido da Frente Liberal e pelo Partido da Social Democracia Brasileira. Referidas ações impugnam a Medida Provisória nº 207, de 13 de agosto de 2004, que “Altera disposições das Leis nº 10.683, de 28 de maio de 2003, e Lei nº 9.650, de 27 de maio de 1998”.

Os dispositivos impugnados possuem o seguinte teor:

Art. 1o Os arts. 8o e 25 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 8o ………………………………..

§ 1o ……………………………… III – pelos Ministros de Estado da Fazenda; do Planejamento, Orçamento e Gestão; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Assistência Social; do Trabalho e Emprego; do Meio Ambiente; das Relações Exteriores; e Presidente do Banco Central do Brasil;

………………………………………………………………” (NR)

“Art. 25……………………………………………………………

Parágrafo único. São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União, o Ministro de Estado do Controle e da Transparência e o Presidente do Banco Central do Brasil.” (NR)

Art. 2o O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado.

Art. 3o O art 5o da Lei no 9.650, de 27 de maio de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 5º …………………………. VIII – execução e supervisão das atividades de segurança institucional do Banco Central do Brasil, relacionadas com a guarda e a movimentação de valores, especialmente no que se refere aos serviços do meio circulante, e a proteção de autoridades.

Parágrafo único. No exercício das atribuições de que trata o inciso VIII deste artigo, os servidores ficam autorizados a conduzir veículos e a portar armas de fogo, em todo o território nacional, observadas a necessária habilitação técnica e, no que couber, a disciplina estabelecida na Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003.” (NR)

Art. 4o O exercício das atividades referidas no art. 5o, inciso VIII, da Lei no 9.650, de 1998, com a redação dada por esta Medida Provisória, não obsta a execução indireta das tarefas, mediante contrato, na forma da legislação específica de regência.

Art. 5º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.”

Na ação direta ajuizada pelo Partido da Frente Liberal (ADI 3289) os argumentos são, em síntese, os seguintes:

1) Inconstitucionalidade do afastamento da subordinação do Banco Central à orientação, coordenação e supervisão do Ministério da Fazenda;

2) Ofensa ao art. 192 da Constituição, por ter a medida provisória invadido campo reservado à lei complementar;

3) Ofensa à vedação constante da alínea “b” do inciso I do § 1º do art. 62 da Constituição. Nas palavras do requerente, “se é vedada a edição de medida provisória sobre direito processual civil e penal, não há como julgar conforme a Lei Maior medida que tem o claro objetivo de alterar o regime de competência para processar e julgar o Presidente do Banco Central”. Nesse ponto, diz o requerente, dever-se-ia adotar interpretação conforme à Constituição para afastar eventual conotação processual à Medida Provisória.

4) Ausência de relevância e urgência da medida provisória.

Na inicial da ADI ajuizada pelo PSDB (ADI 3290) alega-se:

1) Ofensa ao art. 62 da Constituição, tendo em vista a ausência dos pressupostos de relevância e urgência para a edição do ato impugnado;


2) Ofensa ao disposto no art. 52, III, “d”, e do art. 84, I e XIV, todos da Constituição. Nesse ponto, impugna-se especialmente a equiparação entre o Presidente do Banco Central e os Ministros de Estado, contida no art. 2º. O requerente enfatiza potencial ofensa ao princípio da separação dos poderes. Isto porque a Medida Provisória estaria permitindo a nomeação do Presidente do Banco Central sem a prévia aprovação do Senado, o que anularia a competência do Senado Federal, prevista no art. 52, III, “d”, da Constituição. Aponta, ainda, o caráter esdrúxulo da situação gerada pela Medida Provisória, tendo em vista que o Presidente do Banco Central, autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, passaria a possuir as mesmas prerrogativas constitucionais de seu superior hierárquico, o Ministro de Estado da Fazenda;

3) Ofensa ao art. 192 da Constituição pois, segundo o requerente, “por integrar o Sistema Financeiro Nacional, toda e qualquer modificação na estrutura, organização, funcionamento e atribuições do Banco Central do Brasil deve ser feita por meio de Lei Complementar, vedado, pela própria Constituição Federal, o manejo de Medida Provisória com tal finalidade”.

Foi postulada a concessão de cautelar.

Em despacho de 18/08/2004, adotei o rito do art. 12, da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999.

Foram prestadas as informações presidenciais (fls. 37-47, da ADI nº 3.289; e fls. 86-97, da ADI nº 3.290), as quais sustentam que a Medida Provisória n° 207/2004 não padeceria de quaisquer dos vícios de inconstitucionalidade alegados pelo requerente.

Após, manifestou-se o Advogado-Geral da União, que sustenta a constitucionalidade das normas impugnadas e a improcedência da ação direta. (fls. 68-80, da ADI nº 3.289; e fls. 118-127, da ADI nº 3.290).

O parecer do Procurador-Geral da República assevera a inconstitucionalidade das normas impugnadas e a procedência da ação direta.

Posteriormente, o PFL procedeu ao aditamento da inicial, tendo em vista a conversão da Medida Provisória na Lei nº 11.036, de 2004 (fls. 113/114) (1).

Registro que a Lei de conversão inseriu parágrafo único no art. 2º da Medida Provisória, para determinar que “a competência especial por prerrogativa de função estende-se também aos atos administrativos praticados pelos ex-ocupantes do cargo de Presidente do Banco Central do Brasil no exercício da função pública”.

Por fim, o PFL veio aos autos para suscitar vício formal na tramitação da Medida Provisória, qual seja o desrespeito à regra do art. 69, § 9º, da Constituição, tendo em vista a ausência de discussão no âmbito da Comissão Mista. (fls. 121/125).

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

Âmbito de conhecimento

Não conheço, desde logo, das ações no que toca aos arts. 3º, 4º e 5º, uma vez que, embora a ADI 3290 postule a declaração integral de inconstitucionalidade do ato impugnado, não há qualquer fundamentação em relação aos referidos dispositivos.

Preliminar sobre perda de objeto tendo em vista da conversão da MP em Lei

Analiso, preliminarmente, a alegada perda de objeto em razão da conversão da Medida Provisória na Lei 11.036, de 2004.

A continuidade normativa entre o ato legislativo provisório e a Lei de conversão é evidente. O texto da MP foi reproduzido na Lei de conversão, com uma breve alteração que comentarei a seguir. Mas, de plano, não vislumbro mudança substancial.

Aspecto a ser considerado refere-se ao parágrafo único do art. 2º, dispositivo introduzido na conversão da MP em Lei. Consta nesse preceito que “a competência especial por prerrogativa de função estende-se também aos atos administrativos praticados pelos ex-ocupantes do cargo de Presidente do Banco Central do Brasil no exercício da função pública”.

O PFL aditou a inicial para que a impugnação alcance essa inovação.

Não vejo qualquer obstáculo em conhecer da ação direta nesse ponto. A nova regra constitui mero desdobramento da norma do caput e com ela forma um complexo normativo único, não sendo aceitável, no caso, um conhecimento parcial. As incongruências do eventual conhecimento parcial, cabe dizer, são evidentes. Com a eventual declaração de inconstitucionalidade da regra do art. 1º e do caput do art. 2º, restaria vigente a regra do parágrafo único introduzido pela Lei de Conversão. O novo dispositivo, substancialmente, no que toca à prerrogativa de foro, contém norma idêntica à do caput, com uma mera distinção no que se refere aos seus destinatários, ex-dirigentes do Banco Central.

Enfim, penso que não se verifica alteração substancial entre a Medida Provisória e a correspondente Lei de conversão, razão pela qual considero que não há perda de objeto.


Relevância e urgência

Passo agora a apreciar as impugnações relacionadas ao requisito constitucional da relevância e da urgência.

Certamente há situações em que o Presidente da República tem a necessidade imediata de promover ajustes no plano institucional e, especialmente, na organização dos órgãos superiores da Administração Pública. Estão justamente na chamada administração superior as peças básicas para o exercício do poder conferido ao Presidente.

Tais ajustes, que atendem especialmente a critérios de índole política, por óbvio podem demandar a edição de medidas urgentes.

No caso, é difícil considerar ilegítimas as razões explicitadas na Exposição de Motivos correspondente à MP 207, no sentido do papel absolutamente diferenciado do Presidente do Banco Central, tanto no plano interno quanto internacional.

Indaga-se, nos autos, porque semelhante medida não teria sido editada em outro momento, haja vista que o Presidente do Banco Central já teria a referida preeminência há muito tempo. Esse argumento é colocado na inicial da ADI 3289 e é incorporado no parecer do Ministério Público.

Fosse correta tal impugnação, em muitas ocasiões se poderia impugnar uma Medida Provisória indagando porque ela não teria sido editada no primeiro dia de Governo.

Esse não me parece um argumento consistente, pois desconsidera um aspecto básico, qual seja a dimensão política e historicamente condicionada da atuação do Poder Executivo.

A incompreensão desta dimensão política é que tem gerado, tanto na opinião pública quanto na jurisprudência e na doutrina, uma série de equívocos na avaliação dos requisitos de relevância e urgência das medidas provisórias. Por vezes há manifestações que parecem partir do pressuposto de que certas medidas provisórias foram editadas em razão de uma atitude pessoal, isolada e voluntarista do Presidente da República. Essa perspectiva desconsidera os inúmeros fatores que condicionam a prática dos atos de governo e o exercício do poder político. Há limitações de toda ordem. Por vezes o fator é interno à Administração. Exemplo disso seria a ineficiência do Governo em identificar problemas e propor soluções. E também há condições que são externas à estrutura do Executivo, como, por exemplo, a composição parlamentar que dá sustentação ao Presidente em determinado momento. Há inúmeros outros fatores, e alguns desbordam as fronteiras nacionais. Não há, diante de tais condicionamentos, um “momento ideal” para a edição de atos de governo.

Não estou aqui, obviamente, estabelecendo uma justificativa para qualquer ato de governo, o que acabaria indevidamente por endossar as hipóteses de abuso do poder de legislar.

O que pretendo enfatizar é essa dimensão política e histórica, ínsita ao próprio Direito Constitucional, que explica uma permanente mudança de cenário ao longo de um mandato presidencial. É nesse contexto dinâmico que são tomadas decisões pelo Presidente da República. As condições políticas existentes no primeiro dia de mandato não são as mesmas de hoje ou do dia em que foi editada a MP 207.

Lembro aqui, ademais, um registro de Canotilho, que evidencia um aspecto essencial na realização da Constituição. Não se pode ver, na concretização do Texto Constitucional, um espaço vazio ou, em outras palavras, a ausência de um locus para o que poderíamos denominar de “jogo do direito”. Isso por evidente importaria em um nefasto estragulamento da política e da democracia. Penso, de modo diverso, que a partir do plano constitucional, há um amplo espaço para as mais diversas estratégias constitucionais. E como sabemos no âmbito do jogo da política e do direito, não obstante a existência daquilo que Canotilho designa como um “espaço de indeterminação que permite a inventividade”, não há escolhas absolutamente livres. Registro, por oportuno, a lição de Canotilho:

“Alguns autores assinalam às normas e princípios constitucionais um ‘sentido de colocação’, um ‘sentido de estratégia’, para vincar a idéia de que, para além das regras constitucionais, não há um espaço vazio, mas um espaço de jogo aberto à criatividade prática e estratégica dos jogadores. Para se compreender este ‘jogo do direito’ deveremos reter dois elementos essenciais do conceito de jogo:

(1) – as regras convencionais, reguladoras e institucionalizadoras, que devem ser observadas pelos ‘actores’ ou ‘jogadores’ políticos (as ‘regras do jogo’);

(2) – espaço de indeterminação que permite a inventividade, a criatividade das ‘personae’ que actuam na cena jurídico-política.

No plano constitucional, dir-se-ia que o corpus constitucional estabeleceria um conjunto de regras convencionais (=regras do jogo) sobre as quais podem assentar as mais diversas estratégias constitucionais.” (Direito Constitucional, 5a. ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 51).


Obviamente, nessa perspectiva de Canotilho, os “jogadores do direito” estão vinculados às referidas regras convencionais, ou regras do jogo, que aqui são as normas constitucionais. O que pretendo enfatizar é que não é promissora uma perspectiva que quer, de plano, inviabilizar sumariamente a própria ação política e o próprio jogo do direito.

Também não considero válidas as alegações no sentido de que haveria um casuísmo na edição da Medida Provisória 207. Nesse ponto, compartilho do pensamento de Garcia Amado, no sentido de que a atividade jurídica, enquanto realização do Direito histórico, remete-se ao pensamento tópico, e não ao pensamento sistemático. Isto porque a produção legislativa não está comprometida com uma perspectiva essencialista do Direito, ou seja, não se parte de uma pauta prévia de soluções jurídicas para os problemas do mundo. Ao contrário, o Direito, produto histórico que é, traduz-se mais como um conjunto de respostas contingentes às questões que se colocam para a sociedade em cada momento. Vale aqui o registro do pensamento de Garcia Amado, verbis:

“A la tópica jurídica se podem ligar tres tipos diferenciables de desarrollo de la idea de Derecho, que han sido llevados a cabo por la doctrina.

(…)

El primer tipo de teorías parten de rechazar toda concepción esencialista del Derecho, conforme a la cual éste sea «imperativo puro» o «deber incondicionado» y la ley simple «depósito de soluciones acabadas para casos meramente subsumibles». Como dice BÄUMLIN, el Derecho es un producto eminentemente histórico, sólo comprensible a partir de su propia realización. La actividad jurídica, en cuanto realización del Derecho histórico, remitiría a la tópica, no al pensamiento sistemático. El Derecho histórico es, para BÄUMLIN, el conjunto de respuestas contingentes, parciales y susceptibles de ser desarrolladas. Carece de sentido, en opinión de este autor, contraponer una regulación general y abstracta, por un lado, y las decisiones, por otro, pues el proceso de concreción es un elemento conformador de importancia fundamental en el Derecho. Este se ha de comprender a partir de su nota esencial de «estar orientado a constante realización». Esta realización del Derecho (Rechtsverwirklichung) no puede significar ejecución de la ley (Gesetzesvollziehung), sino un nunca acabado tratamiento y una constante conformación del Derecho histórico en todos los niveles de la actividad jurídica.” (Juan Antonio Garcia Amado, Teorias de La Topica Juridica, Madri, Editorial Civitas, Primeira edição, pp. 264/265)

Conforme registra Garcia Amado, também é reconhecida na doutrina clássica de Vieweg a natureza tópica da lei (cit., p. 255 e ss.) .

Por tais razões, com a devida vênia, não aceito as afirmações peremptórias no sentido da ausência dos requisitos de relevância e urgência, ou ainda, as eventuais alegações de que o ato impugnado seria fruto de um casuísmo.

Em verdade, no caso em exame, considerada essa dimensão política e a situação singular do Banco Central, não me pareceria absurda uma justificativa explícita, pelo Presidente da República, no sentido de que a Medida ora impugnada teria sido editada tão-somente para conferir prerrogativa de foro ao Presidente do Banco Central. Também não seria disparatado se a exposição de motivos da MP 207 dissesse claramente que estaria sendo editada para o fim de afastar o Presidente do Banco Central de uma avalanche de ações ajuizadas na primeira instância do Poder Judiciário.

Tal justificativa não traria, em si, um indício de abuso no poder de legislar.

Ora, estamos falando do Presidente do Banco Central! Todos sabemos o papel e a importância dessa autoridade na vida nacional. Todos sabemos que a escolha ou a destituição de um Presidente do Banco Central possui, via de regra, uma repercussão maior que uma mudança na chefia de vários ministérios. Obviamente estou aqui apenas a tratar de um aspecto que demonstra a relevância e urgência da MP. A observância dos outros requisitos constitucionais eu terei oportunidade para analisar.

Mas nesse ponto  restringindo-me a uma análise que, penso, é necessária nessa aferição quanto à relevância e urgência  não posso me furtar a umas breves considerações acerca do significado da prerrogativa de foro em nosso sistema constitucional. Cuida-se de uma garantia voltada não para os titulares de cargos relevantes, mas para as próprias instituições.

Lembro, aqui, da lição de Hely Lopes, no sentido de que tais prerrogativas têm por escopo garantir o livre exercício da função política. Percebeu o ilustre administrativista, sobretudo, a peculiaridade da situação dos que governam e decidem, em comparação àqueles que apenas administram e executam encargos técnicos e profissionais. Nas palavras de Hely:


“Realmente, a situação dos que governam e decidem é bem diversa da dos que simplesmente administram e executam encargos técnicos e profissionais, sem responsabilidade de decisão e opções políticas. Daí por que os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções. As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Sem essas prerrogativas funcionais os agentes políticos ficariam tolhidos na sua liberdade de opção e decisão, ante o temor de responsabilização pelos padrões comuns da culpa civil e do erro técnico a que ficam sujeitos os funcionários profissionalizados” (Direito administrativo, cit., p. 77) .

Não é outro o ethos da prerrogativa de foro entre nós, conforme se extrai da lição de Victor Nunes:

“A jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse da pessoa do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia bilateral, garantia contra e a favor do acusado” . (g.n.)

No mesmo sentido, forte na lição de Frederico Marques, é o entendimento do eminente Márcio Bonilha, Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em artigo de 2002, verbis:

“No mundo jurídico, a precisão conceitual constitui exigência essencial indeclinável, para evitar distorções e equívocos na interpretação e valoração de fatos e normas. Esse requisito hermenêutico é lembrado a propósito da controvérsia instaurada sobre a jurisdição competente, em relação ao julgamento de infrações relativas à improbidade administrativa, no tocante a certos agentes públicos.

Desde logo se assinala que prerrogativa de foro não se confunde com foro privilegiado, pois a prerrogativa de função é distinta de privilégio de pessoa. A imprecisão terminológica pode gerar na opinião pública uma falsa idéia de favorecimento pessoal, no tratamento da matéria, em relação a certas autoridades, na aferição da responsabilidade funcional, pondo em dúvida a igualdade na distribuição da justiça.

Compete ao Supremo Tribunal Federal (STF) processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o presidente da República e os demais integrantes dos órgãos de cúpula dos Poderes e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, outras altas autoridades nacionais.

A instituição da prerrogativa de foro, relativamente a esses agentes, não traduz favorecimento pessoal, pois contempla as exigências de garantia constitucional pertinentes aos respectivos cargos e funções, pela relevância que representam nos Poderes correspondentes e nos escalões hierárquicos, cuja dignidade funcional cumpre resguardar.

Assim é, no interesse nacional, pouco importando as inferências no plano político e o subjetivismo de opiniões contrárias.

Bem por isso, a discussão sobre o tema deve ser travada à luz objetiva dos princípios e normas constitucionais, sem especulações ideológicas, muito menos as infundadas suspeitas de solução personalista.

O foro especial, que decorre da prerrogativa da função, é instituído para melhor permitir o livre desempenho de certas atividades públicas. É garantia da função, que não pode ficar à mercê de paixões locais. Não é honraria pessoal nem representa privilégio. É proteção que nasce com o exercício do cargo ou função, pelo reconhecimento da elevada hierarquia funcional e dos poderes que emanam de seu exercício, visando à segurança e à isenção na distribuição da justiça. Resguarda-se dessa forma o prestígio das instituições.

No Direito brasileiro, vigoram os princípios do juiz natural e da igualdade de todos perante a lei, sendo proibido o juízo ou tribunal de exceção, mas são legítimos os foros por prerrogativa de função.

Segundo Frederico Marques, ‘é errôneo o entendimento’ de que ‘os casos de competência originária dos tribunais superiores para o processo e julgamento de determinadas pessoas constituem exceções de direito estrito, porque a competência ratione personae dos tribunais superiores não constitui ‘foro privilegiado’, nem se regula pelos preceitos pertinentes aos juízos especiais. Não mais existe o foro privilegiado, como o disse o desembargador Márcio Munhoz, e sim competência destinada a melhor amparar o exercício de certas funções públicas. Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece por amor dos indivíduos, e sim em razão do caráter, cargo ou funções que eles exercem’.

Quanto à competência relativa às infrações penais comuns e aos crimes de responsabilidade, a regra constitucional não comporta tergiversação, mas, no que se refere às infrações descritas na Lei 8.429/92, ante o silêncio normativo, pela mesma razão de direito e pela mesma motivação lógico-racional, vige o mesmo critério, para permitir tratamento uniforme da matéria de competência ratione personae, de peculiaridade especial.

Há que se concluir que, ‘se a competência originária dos tribunais superiores é antes garantia que privilégio, nada impede que as lacunas ou omissões sobre o assunto sejam cobertas pela analogia ou pelos princípios gerais de direito’ (JFM).

Daí aplicar-se aos infratores da lei de improbidade o regime da prerrogativa de foro.” (Prerrogativa de foro, O Estado de São Paulo, 10 de dezembro de 2002)


Não me parece difícil justificar a relevância e urgência de uma medida provisória que resulta na garantia de prerrogativa de foro para o Presidente do Banco Central quando a mesma prerrogativa é conferida para qualquer Ministro de Estado.

E sabemos que há ministérios com um papel político que, a despeito de sua importância, não se equiparam ao Banco Central.

Talvez por isso a nossa história registre tantos episódios de perseguição política ao Presidente do Banco Central e até aos diretores daquela instituição, por meio de ações judiciais ajuizadas em primeira instância(2).

E por vezes a motivação para tais perseguições chega a ter uma conotação pessoal.

Isso é o que parece ter ocorrido em um conhecido episódio em que o Ministério Público Federal ajuizou ações contra o Presidente do BACEN, tendo em vista perdas que certos Procuradores teriam sofrido em aplicações em fundos de investimento.

Tais abusos, que, como visto, chegaram a uma utilização espúria da própria instituição do Ministério Público, por certo não são admissíveis.

É o que aparentemente se viu nas ações movidas pela Procuradora Walquíria Quixadá contra o Presidente do Banco Central e instituições a propósito dos reajustes dos fundos de investimento. Segundo notícias da imprensa, a aludida Procuradora teria usado os procedimentos investigatórios e a as próprias ações de improbidade como ação de cobrança de caráter particular. É elucidativa leitura de e-mail que a nobre Procuradora, que ostentava também a destacada posição de Vice-Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, passou a seus colegas, conforme publicado no Consultor Jurídico de 4 de novembro de 2002:

“Comunicando-lhes a instauração da ICP para apuração de responsabilidade dos gerentes de fundos de investimentos pelos prejuízos causados aos investidores de fundos de investimento DI, convido os Colegas Procuradores para realizarmos reunião amanhã. Ás 16 hs, em meu gabinete, sala 601 (fone 317-4677 e 4676), eventualmente lesado nessas aplicações, pelo Banespa e Brasil, para formarmos um grupo definindo estratégias para recuperação desse prejuízo indevido sem a necessidade de ajuizamento de ação. Já estão confirmados para a reunião os Colegas Aurélio, Maria Soares e Andréa Lyrio”

Segundo a mesma publicação “em resposta ao chamamento, os procuradores Rodrigo Janot Monteiro de Barros e Aldenor Moreira de Sousa responderam prontamente. Barros disse que viajaria, mas manifestou ‘todo interesse no assunto’ e era voluntário para qualquer trabalho sobre a questão. ‘Também perdi uma graninha nesta estória’, explicou-se. Aldenor de Souza, o procurador que mandou prender o Secretário da Receita Federal, foi direto: ‘Conte comigo’”.

É algo de peculiar, como se pode ver. Um Presidente do Banco Central passa a responder a quatro ações de improbidade, pela simples razão de ter supostamente afetado, com alguma decisão administrativa de sua competência, a rica poupança da Dra. Walquíria e seus ilustres colegas.

E é justamente por isso que está consagrada, em nosso sistema constitucional, a instituição da prerrogativa de foro. Além de evitar o que poderia ser definido como um tática de guerrilha – nada republicana, diga-se – perante os vários juízos de primeiro grau, a prerrogativa de foro serve para que os chefes das principais instituições públicas sejam julgados perante um órgão colegiado dotado de maior independência e de inequívoca seriedade.

Não tenho dúvida, portanto, que aquelas razões que justificam o instituto da prerrogativa de foro para os Ministros de Estado em geral parecem-me, em princípio, também compatíveis e aplicáveis ao Presidente do Banco Central.

Lembro, ainda, que no âmbito de outros sistemas, a garantia de foro específico para o Presidente das instituições similares ao Banco Central não é algo esdrúxulo, muito ao contrário.

Conforme já foi lembrado quando da tramitação do projeto de conversão, a necessidade de um sistema legal de proteção às autoridades que possuem o dever de fiscalizar o sistema bancário encontra previsão no direito internacional. Isto está previsto nos chamados “Princípios Essenciais da Basiléia” ou “Princípios Essenciais para uma Supervisão Bancária Eficaz”. Trata-se de documento elaborado pelo Comitê de Supervisão Bancária da Basiléia, comitê composto por representantes da Bélgica, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Luxemburgo, Holanda, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos. Os Princípios Essenciais da Basiléia constituem a base normativa do Banco de Compensações Internacionais.

No Prefácio que acompanha os referidos Princípios após afirmar-se textualmente que “a fragilidade do sistema bancário de um país, seja ele desenvolvido, seja em desenvolvimento, pode ameaçar a estabilidade financeira tanto internamente quanto internacionalmente”, o Comitê passa a discorrer sobre a necessidade de fortalecer a solidez dos sistemas financeiros. Em seguida são enunciados os princípios. Consta do texto do primeiro princípio a seguinte recomendação:


“Princípio 1: Um sistema eficaz de supervisão bancária terá claramente definidas as responsabilidades e os objetivos de cada agência envolvida na supervisão de organizações bancárias. Cada uma dessas agências deve ter independência operacional e recursos adequados. Um ordenamento legal apropriado à supervisão bancária também é necessário, incluindo dispositivos relacionados com as autorizações às organizações bancárias e sua supervisão contínua; poderes voltados para a verificação de conformidade legal, bem como para interesses de segurança e solidez; e proteção legal para os supervisores.

Esse princípio requer os seguintes componentes sejam implantados:

(omissis)

– proteção (normalmente definida em lei) contra imputabilidade pessoal e institucional nas ações de supervisão realizadas de boa fé, no cumprimento das responsabilidades inerentes à função.

(omissis)”.

O Brasil, cabe lembrar, é membro associado ao Convênio Constitutivo do Banco de Compensações Internacionais (Decreto-Legislativo nº 15, de 19 de março de 1997; Decreto nº 3.941, de 27 de setembro de 2001). Em conseqüência, é evidente que há um compromisso internacional do Brasil em relação aos princípios fundamentais que regem o Banco de Compensações Internacionais. Outro aspecto que pode se inferir dos Princípios da Basiléia é que a chamada prerrogativa de foro pode ser considerada, em verdade, como um minus em relação ao regime de proteção recomendado por aquele ato internacional, que fala em regime de não imputabilidade pessoal e institucional.

Também foi lembrado nos debates parlamentares que diversos países adotam um regime de maior proteção legal às autoridades responsáveis pela condução da política monetária. Como exemplo, são citados países como Chile, Nova Zelândia, Alemanha, Canadá, Índia e Cingapura. Em alguns desses países chega-se a proibir o ajuizamento de ações contra os dirigentes dos respectivos bancos centrais, em decorrência dos atos praticados de boa-fé e no exercício de atribuições típicas do cargo, na linha dos referidos Princípios Essenciais da Basiléia. Na Alemanha, a diretoria do banco central goza de status de suprema autoridade federal (“Oberste Bundesbehörde”), o que implica posição hierárquica equivalente à do Presidente da Federação alemã, a do Gabinete do Primeiro-Ministro, e a dos Ministros. No Chile, o julgamento dos atos funcionais de integrantes do banco central cabe à Corte de Apelações de Santiago.

Tais exemplos evidenciam que a inovação trazida pelo ato impugnado também não constituiria uma idiossincrasia brasileira.

Estou aqui, repito, fazendo uma análise no que toca à relevância e urgência. Considerei necessário fazer tais considerações para evidenciar que não é difícil encontrar razões para a edição do ato impugnado. Isso por certo não elimina a necessidade de análise das outras impugnações de ordem constitucional. Os outros argumentos em desfavor da prerrogativa de foro do Presidente do BACEN, nos termos da MP 207, serão considerados a seguir.

Assim, concluo esta parte do meu voto no sentido de afastar a alegação de ausência de relevância e urgência.

Ofensa ao art. 62, § 9º

Outra impugnação de caráter formal refere-se à suposta violação ao art. 62, § 9º, da Constituição. Tal preceito dispõe que “caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional”.

Conforme já tive oportunidade de assinalar  e a impugnação formulada pelo PFL cita expressamente manifestação de minha autoria , a disciplina trazida pela Emenda Constitucional 32, de 2001, embora tenha sido eficaz na fixação de prazo determinado para a apreciação da medida provisória, não foi capaz de eliminar potencial impasse decisório no que diz respeito à discussão da medida provisória no âmbito da comissão mista.

Todavia, considerando que ainda estamos em uma fase de consolidação do novo modelo trazido pela Emenda 32 para as medidas provisórias, não vejo como adotar interpretação com os rigores pretendidos pelo requerente na ADI 3289.

No caso, resta evidenciado que por duas vezes foi convocada a reunião para instalação da Comissão, não se chegando, todavia, ao quorum necessário.

Essa falha procedimental, considerado o atual estágio de implementação da Emenda 32, assim como as circunstâncias do caso, em que resta demonstrada a tentativa, por duas vezes, de instalação da comissão mista, no meu entendimento, ainda não permite a formulação de um juízo de inconstitucionalidade por ofensa ao referido § 9º.

Ofensa à vedação constante da alínea “b” do inciso I do § 1º do art. 62 da Constituição


Ainda no campo dos pressupostos específicos para a edição de medida provisória, cabe analisar a alegada violação à alínea “b” do inciso I do § 1º do art. 62 da Constituição. Alega-se que a Medida Provisória cuida de matéria processual civil. O Procurador-Geral da República diz que a MP trataria de matéria processual penal.

Esse argumento, com a devida vênia, não impressiona.

A norma impugnada incide, de modo imediato, sobre a organização administrativa. O reflexo no campo processual é apenas ancilar.

Fosse correto o argumento, jamais uma Medida Provisória poderia dispor sobre a alteração do quadro de Ministérios, pois isto estaria sempre a implicar mudança no rol das autoridades a que a Constituição confere foro diferenciado. Esse, aliás, – refiro-me aqui às normas constitucionais relativas à prerrogativa de foro – é um campo que não poderia ser tratado estritamente como processual civil ou processual penal. São temas constitucionais e administrativos, a despeito de seu influxo na conformação de nosso sistema processual civil e penal.

Rejeito, portanto, a alegação no sentido de que a MP 207 teria tratado de matéria processual civil ou penal.

Após a análise das impugnações relativas aos requisitos específicos para a edição de medida provisória, passo à análise das demais alegações.

Afastamento da subordinação do Banco Central à orientação, coordenação e supervisão do Ministério da Fazenda

Um dos questionamentos refere-se a um suposto afastamento da subordinação do Banco Central ao Ministério da Fazenda.

O argumento constitucional é frágil. Está dito na inicial da ADI 3289, formulada pelo PFL, verbis:

“Infere-se do regime constitucional que cada Ministro fica responsável por uma área de atuação da administração, não guardando compatibilidade lógica com os termos da Lei Maior qualquer interpretação que submeta o mesmo setor à supervisão cumulada de dois Ministros de Estado diferentes. Ainda menos coerente seria admitir que um desses Ministros restaria sujeito à coordenação de outro Ministro, de modo que as orientações de um, no seu âmbito próprio de competência, possa ser licitamente contrariado por outro”.

A partir do art. 87, I, da Constituição, também afirma-se o seguinte na ADI 3289: “Se aos Ministros de Estado é ínsito exercer tais atribuições em relação aos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência, descabe falar de supervisor de supervisor”.

Não vejo correção em tal argumento.

O requerente pressupõe uma competência constitucional do Ministério da Fazenda que simplesmente não existe.

A MP 207 não elimina ou altera a relação entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda. E também não altera a competência desses órgãos. A autoridade conferida pelo nosso sistema jurídico tanto ao Presidente do BACEN quanto ao Ministro da Fazenda corresponde a comandos constitucionais e legais que conformam a competência desses órgãos.

No caso do Banco Central, a competência decorre especialmente da previsão contida no art. 164 da Constituição. Já no caso do Ministério da Fazenda a competência está fixada no plano infraconstitucional. Ainda que houvesse superposição de competências no caso, o fato é que isto não seria algo incomum ou esdrúxulo em relação ao que normalmente ocorre no âmbito dos órgãos superiores da Administração Pública. Isso se verifica entre os próprios Ministérios, especialmente naqueles que atuam na chamada área econômica. Certamente há pontos de grande contato entre Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento, por exemplo. E por isso há as instituições de coordenação, como a Casa Civil da Presidência da República, e os mecanismos legais de solução de controvérsias dentro do Poder Executivo. E as eventuais desinteligências na divisão de tarefas entre tais autoridades certamente são resolvidas pelas vias próprias, especialmente pelas regras de interpretação da legislação infraconstitucional. Não é um tema constitucional.

Por fim, nota-se que a alteração trazida pela MP dirige-se especificamente à natureza do cargo de Presidente do Banco Central. É usual em nossa história recente que outras autoridades titularizem cargo Ministro, ainda que não estejam na chefia de uma estrutura ministerial típica. Exemplo disso são alguns Ministros Extraordinários, alguns Secretários vinculados diretamente ao Presidente da República, e o próprio Advogado-Geral da União.

Não vejo, portanto, sob a perspectiva constitucional, consistência em tal impugnação.

Ofensa ao disposto no art. 52, III, “d”, e do art. 84, I e XIV, todos da Constituição. Equiparação entre o Presidente do Banco Central e os Ministros de Estado. Potencial ofensa ao princípio da separação dos poderes


Outra alegação trazida nestas Ações Diretas refere-se à potencial violação aos arts. 52, III, “d”, e ao art. 84, I e XIV, todos da Constituição. Tais dispositivos cuidam, respectivamente, de competências privativas do Senado e do Presidente da República. Suscita-se que o ato impugnado seria ofensivo ao princípio da separação de poderes. Isto porque a Medida Provisória estaria permitindo a nomeação do Presidente do Banco Central sem a prévia aprovação do Senado, o que anularia a competência do Senado Federal, prevista no art. 52, III, “d”, da Constituição.

Não vejo, nas normas trazidas pela Medida Provisória, a conseqüência pretendida pelos requerentes.

Quando a Constituição diz, no art. 84, inciso I, que compete privativamente ao Presidente da República nomear e exonerar os Ministros de Estado, obviamente está implícito que tal nomeação se dará na forma da Constituição e da lei. Não poderá, por exemplo, o Presidente nomear um menor de 21 anos para chefiar um Ministério. Também não poderá nomear alguém que esteja privado de seus direitos políticos (art. 87 da Constituição).

No caso da nomeação do Presidente do Banco Central, por evidente, haverá um procedimento constitucional específico, que terá como pressuposto a aprovação prévia pelo Senado, nos termos do art. 52, III, “d”. Não vejo, portanto, como interpretar a norma impugnada como autorizadora do afastamento da exigência constitucional de prévia aprovação pelo Senado.

Lembro que também o Advogado-Geral da União, que é Ministro de Estado, está sujeito a requisitos específicos para nomeação, qual seja a idade mínima de 35 anos, além do notório saber jurídico e reputação ilibada. A definição expressa do cargo de Advogado-Geral da União como Ministro de Estado, que ocorreu por meio de medida provisória, obviamente não eliminou aquelas exigências específicas (35 anos, notório saber e reputação ilibada), que obviamente não se aplicam aos demais ministros(3).

Não procedem, ademais, as alegações que buscam caracterizar a existência de uma incongruência decorrente da norma impugnada em face da ordem constitucional. Em verdade, o modelo constitucional contém algumas situações que demonstram um tratamento bastante casuístico no que toca aos cargos mais elevados da República.

O primeiro exemplo é justamente o do Advogado-Geral da União, que é Ministro por determinação legal. No plano constitucional, o Advogado-Geral, nomeado e diretamente subordinado ao Presidente, possui, conforme já assinalei, requisitos para a nomeação que são mais rigorosos em relação aos demais ministros. Exige-se idade mínima de 35 anos, reputação ilibada e notório conhecimento jurídico. No que toca à prerrogativa de foro, também há um tratamento constitucional diferenciado. O Advogado-Geral, em relação ao crime de responsabilidade, é sempre julgado perante o Senado (CF, art. 52, I), tal como o Presidente da República, o Procurador-Geral da República e os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Já os Ministros de Estado, no que toca aos crimes de responsabilidade, com ressalva de atos conexos a atos do Presidente, em regra são julgados perante o STF (CF, art. 102, I, “c”).

Outro exemplo interessante é o dos Comandantes Militares. Não obstante os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica estarem subordinados ao Ministério da Defesa, tais autoridades remanescem com foro especial perante esta Corte. Note-se que tais autoridades sequer possuem status de Ministro.

Por fim, estão abrangidos pela mesma disposição que confere prerrogativa de foro aos Comandantes Militares os chefes de missão diplomática de caráter permanente (CF, art. 102, I, “c”). Também aqui temos um tratamento idêntico entre autoridades de diferente hierarquia, tendo em vista que os chefes de missão diplomática estão subordinados ao Ministro das Relações Exteriores.

Ou seja, ainda que estivesse o Presidente do Banco Central subordinado ao Ministro da Fazenda, o que obviamente não ocorre no caso, não poderíamos extrair da Constituição um argumento normativo no sentido de que é incongruente conferir a autoridades de hierarquia distinta um mesmo foro judicial, pois é a própria Constituição que faz isso.

Lembro, por fim, que o requisito adicional para nomeação para o cargo de Presidente do Banco Central, qual seja a aprovação pelo Senado, é objeto de uma reserva legal aberta. O rol previsto no art. 52, inciso III, da Constituição, que cuida da competência privativa do Senado, termina na alínea “f”, que prevê a aprovação pelo Senado da escolha dos “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Ou seja, potencialmente qualquer cargo público, inclusive o de Ministro de Estado, pode vir a se submeter à regra da sabatina prévia perante o Senado. Não seria de se estranhar, por exemplo, que tal condição fosse estabelecida em relação ao Ministro das Relações Exteriores, uma vez que isto é previsto expressamente em relação aos chefes de missão diplomática de caráter permanente (CF, art. 52, III, IV).


Com esses exemplos fica evidente que não se pode extrair da Constituição um modelo linear ou simétrico no que toca à distribuição da prerrogativa de foro. Há situações singulares e há tratamentos específicos. Não se pode deduzir da Constituição que haveria uma vedação a que um Presidente de autarquia tenha um tratamento semelhante ao de Ministro de Estado. E ainda que fosse vislumbrada uma relação de hierarquia entre um Presidente de autarquia e um Ministro de Estado, não se poderia dizer que a Constituição veda que tais autoridades tenham o mesmo foro.

Não estou, por evidente, admitindo que todo e qualquer presidente de autarquia possa ter tal tratamento. Há, certamente, um dever de consistência do legislador ao estabelecer um tratamento diferenciado. No caso do Presidente do Banco Central tais razões estão postas de um modo claro.

Cabe, ainda, uma breve consideração em relação à suposta ofensa à regra do art. 84, inciso I, da Carta. No que toca ao Presidente do Banco Central, remanesce intacta a competência presidencial para nomear ou exonerar a qualquer tempo. A condição relativa à aprovação pelo Senado constitui um requisito adicional que na verdade fortalece o sistema constitucional de distribuição de poderes e que, obviamente, não elimina a ampla competência do Chefe do Executivo.

Não vejo, portanto, inconstitucionalidade por ofensa às regras constitucionais definidoras da competência do Senado ou do Presidente da República.

Ofensa ao art. 192 da Constituição, por ter a medida provisória invadido campo reservado à lei complementar

Outra alegação é de que a MP 207 teria ofendido o art. 192 da Constituição, uma vez que teria invadido campo reservado à lei complementar. Esse argumento, com a máxima vênia, é pueril.

O tema tratado pela MP não está abrangido pelo art. 192.

Como já assinalei, o ato impugnado dispõe sobre matéria relativa à organização administrativa. Tanto é assim que a jurisprudência desta Corte, conforme lembra a AGU, tem admitido a criação de cargos de Ministro de Estado por meio de medida provisória.

Cabe também lembrar esta Corte já se pronunciou no sentido de que as questões de pessoal relativas ao Banco Central não estão sujeitas à reserva de lei complementar (ADI 449, Rel. Min. Carlos Velloso).

Parágrafo único do art. 2º (prerrogativa de foro a ex-Presidentes do Banco Central)

Também não vislumbro qualquer norma constitucional contrária a concessão de prerrogativa de foro a ex-dirigentes do Banco Central.

Ao contrário, o ethos da prerrogativa de foro oferece justificativa clara para tal disciplina.

Sobre esse aspecto, considero insuperáveis as considerações do Ministro Pertence no INQ 687:

“(…)

Não contesto que a prerrogativa de foro só se explica como proteção do exercício do cargo e não como privilégio do seu titular e, menos ainda, do seu ex-ocupante.

Mas, data venia, é fugir ao senso das realidades evidentes negar que, para a tranqüilidade no exercício do cargo ou do mandato – se para essa tranqüilidade contribui, como pressupõe a Constituição, a prerrogativa de foro – ao seu titular mais importa tê-lo assegurado para o julgamento futuro dos seus atos funcionais do que no curso da investidura, quando outras salvaguardas o protegem.

Assim é patente que ao titular do Poder Executivo, enquanto no exercício do mandato, antes que o foro especial, o que lhe dá imunidade contra processos temerários é a exigência de ser a acusação previamente admitida por dois terços da Câmara dos Deputados (CF, art. 86).

Do mesmo modo, aos congressistas, a imunidade formal é que verdadeiramente os protege no curso da legislatura.

Por conseguinte, mais que apanágio do poder atual, a prerrogativa de foro serve a libertar o dignitário dos medos do ostracismo futuro.”

E acrescenta Pertence:

“Aí é preciso lembrar haver entre os detentores do foro por prerrogativa de função ocupantes de cargos dos quais são demissíveis ad nutum: é o caso, no plano federal, dos Ministros de Estados.

Parece repugnante aos princípios, especialmente à garantia do juiz natural, que a competência originária do Supremo Tribunal para julgá-los seja precária e fique à mercê da vontade unilateral do Chefe do Poder Executivo, que a possa elidir a qualquer tempo, tanto para prejudicar quanto para favorecer o ministro processado.

(…)

E quando não interessar ao acusado o julgamento pelo tribunal que a Constituição a tanto reservou, mais precária será a competência desse, pois aí, para subtrair-se dela – cancelada a Súm. 394 -, bastaria a vontade exclusiva do próprio réu, já pela exoneração, já pela renúncia, já pela aposentadoria.

Dispensa demonstração, porém, que, segundo os princípios, assim como ao acusado se dá a garantia de não ser subtraído do seu juiz natural, também é certo que a ele não é dado o poder de subtrair-se da sua competência por ato unilateral de vontade.”


Os argumentos do Ministro Pertence são contundentes e evidenciam, no meu entendimento, a via correta para a concretização do instituto constitucional da prerrogativa de foro. Se um dos objetivos básicos da disciplina constitucional da prerrogativa de foro é o de conferir a tranqüilidade necessária ao exercício de determinados cargos públicos, não faz sentido algum admitir um cenário em que um atual Ministro de Estado tome decisões, em razão do exercício do cargo, que possam vir a ser contestadas no foro ordinário. Parece intuitivo, conforme bem expõe Pertence, que “mais que apanágio do poder atual, a prerrogativa de foro serve a libertar o dignitário dos medos do ostracismo futuro”.

Ademais, sendo a prerrogativa de foro uma proteção ao cargo e não do seu titular, parece que esta proteção restaria afastada se se deixasse ao alvedrio do próprio titular do cargo a guarida ou não do cargo público ao sistema diferenciado dessa prerrogativa. Configurando o juiz natural uma garantia constitucional, essa arbitrariedade configuraria, no mínimo, uma fraude a Constituição.

Tais considerações afastam, ao meu ver, qualquer impugnação no sentido da exigência de disciplina constitucional expressa sobre o tema. O legislador ordinário, no caso em exame, tão-somente optou por uma disciplina que melhor concretiza a instituição da prerrogativa de foro constitucionalmente prevista.

Considerações gerais acerca da prerrogativa de foro em nosso sistema

Por derradeiro, tenho como pertinente registrar algumas considerações sobre eventuais objeções no que toca à prerrogativa de foro a partir de um pretenso argumento republicano. Essa equivocada apropriação do princípio republicano não impressiona. Em verdade, nações de prática republicana – veja-se que o conceito hoje tem uma significativa transcendência – adotam o regime de prerrogativa por razões de política constitucional. Há pouco, o notável Professor Jorge Miranda registrou a necessidade de ampliação da prerrogativa de foro em Portugal, tendo em vista o uso dos processos judiciais para fins políticos.

Cuidando especificamente da questão no plano das Constituições estaduais, anotou Pertence na ADI 2553, verbis:

“Além de explicitar, no caput, que aos Estados incumbe organizar sua Justiça, observados os princípios nela estabelecidos, a Constituição da República, no art. 125, § 1º, reservou expressamente às constituições estaduais definir a competência dos respectivos tribunais.

Em princípio, esse poder compreende o de outorgar-lhes competências penais originárias por prerrogativa de função.

Certo, a própria Constituição Federal, nessa área, já impôs, implícita ou explicitamente, determinadas competências ao Tribunal de Justiça dos Estados (cf. arts. 29, X; 96, III, e 27, § 1º, c/c 53, IV).

Dessa inclusão compulsória de determinadas hipóteses na competência penal originária do Tribunal de Justiça não se tem extraído, porém, a contrario sensu, que outras não possam ser aditadas pela Constituição do Estado.

Por isso — na trilha do que incidentemente fora afirmado no HC 76.168, Pl., 18.11.98, Néri da Silveira (Informativo STF 132) — declaramos constitucional, no art. 104, XIII, b, da Constituição da Paraíba, o foro por prerrogativa de função atribuído aos Procuradores do Estado e aos Defensores Públicos, embora, mediante interpretação conforme, tenhamos reduzido o alcance do dispositivo à Justiça ordinária local, ainda aí, com exceção dos casos de competência do Tribunal do Júri (ADIn 469-PB, 5.4.01, Marco Aurélio, Informativo STF 223).

Quanto às categorias funcionais nele compreendidas, o precedente basta a elidir a plausibilidade da presente argüição, de modo a inviabilizar o deferimento da cautelar.

No preceito ora questionado — na linha da tendência de banalização do foro privilegiado, denunciado pelo requerente —, a elas acresceram a dos Procuradores da Assembléia Legislativa e a dos Delegados de Polícia.

A legitimidade da inclusão dos primeiros — os membros da Procuradoria da Assembléia Legislativa —, não gera perplexidade, pois exercem funções de advocacia de Estado, perfeitamente assimiláveis às dos Procuradores do Estado.

(…)”

Ao pedir vista, nos autos de outra Ação Direta (ADI 2587), em que se discutiu a constitucionalidade de norma do Estado de Goiás que conferia prerrogativa de foro a Procuradores do Estado e a Delegados de Polícia, deixei assente minha preocupação com a falta de um critério mais ou menos seguro. Anotei, então, verbis:

“Sr. Presidente, compartilho, em parte, das preocupações já declaradas por Vossa Excelência e, agora, manifestadas pelo Ministro Cezar Peluso quanto à possibilidade dessa extensão, não pelos fundamentos externados no que diz respeito à eventual lesão ao princípio da isonomia, ou eventual ofensa ao princípio republicano. Sabemos que a República não deixa de existir por causa da prerrogativa de foro. Lembro até de uma passagem, extremamente feliz, do Ministro Sepúlveda Pertence, na discussão do Inquérito nº 656, ao dizer que aqui não se deve esquecer que pode haver arbítrio. E sabemos que existem arbítrios no contexto da instauração abusiva de inquéritos e na condução de processos. Por isso existe a prerrogativa de função. O Ministro, inclusive, dizia que o arbítrio judicial não é menos odioso do que os demais. Portanto, é preciso levar isso em conta.


Fazer também uma ontologia, a partir da perspectiva da Constituição, é muito difícil, porque, de fato, há, aqui, um quadro quase que caótico em termos de opção. Se formos levar em conta as várias considerações possíveis – aí não compartilho da consideração de Vossa Excelência nem do Ministro Cezar Peluso -, uma das atividades arriscadas, hoje, no Brasil é a da advocacia pública.

Há algum tempo, uma eminente colega, Procuradora da República que atuou com grande vigor na defesa da União, dizia que sempre sofreu perseguição e ameaça na condição de Procuradora da República na defesa da União, não atuando como membro do Ministério Público. Isso é um dado curioso!

O que temos, hoje, de episódios na advocacia pública, inclusive de inquéritos policiais abertos contra advogados públicos que evitam os estelionatos pela via judicial – como bem conhecemos -, é um número expressivo. Já dizia isso quando Advogado-Geral da União e reitero agora: comparar a atividade do advogado público com a atividade do advogado privado, data venia, não tem cabimento. Quem acompanha, minimamente, essas questões, sabe-o muito bem. Não é por acaso que todo advogado público que atua com denodo na defesa sofre uma perseguição enorme, por causa da organização do estelionato pela via judicial. Realmente, os exemplos estão aí.

Só gostaria de deixar isso de forma muito clara, porque não se equipara. Agora, obviamente há o risco já colocado de deixar ao Constituinte estadual uma opção livre e que pode levar, de fato, à falta de um parâmetro. Se formos buscar uma racionalização a partir do texto constitucional, diria que temos aí enormes perplexidades, porque, certamente, há atividades de nenhum risco, de importância política relativíssima, que estão contempladas com a prerrogativa de foro; outras, não.

Mas gostaria de fazer uma análise mais cuidadosa e, por isso, peço vista dos autos.”

De fato, mesmo no texto da Constituição Federal pode-se encontrar essa falta de critérios seguros para a definição da prerrogativa de foro.

Penso que uma questão central, no caso em exame, é saber se estão presentes aqueles pressupostos que justificam a diferenciação de tratamento entre agentes públicos.

A justificativa para o foro diferenciado parte, em primeiro lugar, da perspectiva do interesse público.

Nessa linha, gostaria aqui de deixar registrada outra observação. Penso que a garantia constitucional da prerrogativa de foro passa a ser tanto mais importante se se considera que vivemos hoje numa sociedade extremamente complexa e pluralista, em que a possibilidade de contestação às escolhas públicas é amplíssima. Refiro-me ao problema da complexidade de que fala Canotilho em relação à Teoria da Constituição. Vivemos em uma sociedade organizada sob bases plurais assentadas em inevitáveis diferenciações funcionais (sistema político, econômico, científico) (Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Coimbra, 2000, p. 1303). “Isto conduz – diz Canotilho – a crescentes graus de especialização, impessoalidade e abstração no conjunto do sistema” .

Por isso, ensina o mestre português, não se vislumbra a possibilidade de um código unitarizante dos vários sistemas sociais. Não é por acaso também que, em nome dessa hipercomplexidade social, se justifica a oposição a qualquer escolha pública e, sobretudo, as deliberações políticas democráticas. (Canotilho, cit., p. 1303).

Se esse é um dado da nossa sociedade democrática e pluralista, também não deixa de ser um fator de instabilidade. Também é certo que é o próprio sistema democrático que oferece as correções.

De fato, as decisões tecnocráticas ou políticas podem e devem ser contestadas. A sua juridicidade deve ser aferida. É a própria Constituição que cria os mecanismos para aferição da legitimidade dos atos do Poder Público.

Mas é o próprio sistema que exige, em relação a certos agentes, um tratamento diferenciado, no que toca à impugnação judicial de atos praticados no exercício da função, tendo em vista uma perspectiva de estabilidade que interessa às próprias instituições públicas.

Conclusão

Em síntese, não vejo qualquer argumento constitucional consistente a justificar a declaração de inconstitucionalidade dos atos impugnados. A par de não estarem configuradas as alegadas violações constitucionais, penso que, considerada a singularidade do cargo de Presidente do Banco Central, há razões constitucionais que recomendam a disciplina ora impugnada.

Concluo, portanto, o meu voto, no sentido de julgar integralmente improcedentes as ações diretas.

Notas de rodapé

(1) – Art. 1o Os arts. 8o e 25 da Lei no 10.683, de 28 de maio de 2003, passam a vigorar com a seguinte redação:


“Art. 8º………………………………………………….

§ 1o……………………………………………………..

III – pelos Ministros de Estado da Fazenda; do Planejamento, Orçamento e Gestão; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; do Trabalho e Emprego; do Meio Ambiente; das Relações Exteriores; e Presidente do Banco Central do Brasil;

…………………………………………………………” (NR)

“Art. 25. ………………………………………………..

Parágrafo único. São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União, o Ministro de Estado do Controle e da Transparência e o Presidente do Banco Central do Brasil.” (NR)

Art. 2o O cargo de Natureza Especial de Presidente do Banco Central do Brasil fica transformado em cargo de Ministro de Estado.

Parágrafo único. A competência especial por prerrogativa de função estende-se também aos atos administrativos praticados pelos ex-ocupantes do cargo de Presidente do Banco Central do Brasil no exercício da função pública.

Art. 3o O art. 5o da Lei no 9.650, de 27 de maio de 1998, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 5o ………………………………………………….

VIII – execução e supervisão das atividades de segurança institucional do Banco Central do Brasil, relacionadas com a guarda e a movimentação de valores, especialmente no que se refere aos serviços do meio circulante, e a proteção de autoridades.

Parágrafo único. No exercício das atribuições de que trata o inciso VIII deste artigo, os servidores ficam autorizados a conduzir veículos e a portar armas de fogo, em todo o território nacional, observadas a necessária habilitação técnica e, no que couber, a disciplina estabelecida na Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003.” (NR)

Art. 4o O exercício das atividades referidas no art. 5o, inciso VIII, da Lei no 9.650, de 27 de maio de 1998, com a redação dada por esta Lei, não obsta a execução indireta das tarefas, mediante contrato, na forma da legislação específica de regência.

Art. 5o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

(2) – Em memorial, a Procuradoria do Banco Central relata que há, atualmente, 40 ações propostas contra ex-Presidentes do Banco Central, sendo que, desse total, 11 são ações de improbidade, 3 ações civis públicas e 26 ações populares (esses dados, adverte a Procuradoria do BC, se iniciam com o ex-Presidente Paulo Lira, que exerceu o cargo no período de 15 de março de 1974 a 14 de março de 1979).

(3) – Medida Provisória nº 2049-20, de 29.6.2000.

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