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Conheça o voto de Carlos Velloso no caso anencefalia

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4 de maio de 2005, 13h00

“Admitir uma exclusão do crime de aborto, sem as cautelas de uma regulamentação séria (…) seria temerário, mesmo porque não se pode descartar a possibilidade de clínicas de abortos criminosos se utilizarem da medida. (…) Ora, essa regulamentação, absolutamente necessária, somente poderia ser feita mediante lei. O Supremo Tribunal Federal não poderia, evidentemente, fazê-la, sob pena de substituir-se ao Congresso Nacional.”

Isso foi o que defendeu o ministro Carlos Velloso em seu voto vencido contra a admissão da ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos (ausência total ou parcial do cérebro).

Carlos Velloso completou que “no caso, pretende-se, mediante interpretação da lei penal conforme a Constituição, instituir uma terceira excludente de criminalidade relativamente ao crime de aborto. O que se pretende, portanto, é que o Supremo Tribunal Federal inove no mundo jurídico. E inove mediante interpretação. Vale invocar, novamente, a lição do saudoso Ministro Luiz Gallotti: “podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto” (RTJ 66/165).”

Também votaram contra a admissibilidade ADPF como instrumento processual para o caso os ministros Eros Grau, Ellen Gracie e Cezar Peluso. A favor da ADPF votaram os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Nelson Jobim.

A ADPF foi ajuizada, em junho do ano passado, pela CNTS — Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O ministro Marco Aurélio concedeu pedido de liminar que dava às gestantes de fetos anencefálicos o direito a interromper a gravidez sem a necessidade de autorização judicial.

Os ministros derrubaram a hipótese levantada pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, de que a competência para discutir o assunto seria do Congresso, já que a interrupção de gestação de anencéfalos não está prevista em lei.

Leia a íntegra do voto do ministro Carlos Velloso

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54-8

DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

ARGUENTE(S) : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS

TRABALHADORES NA SAÚDE – CNTS

ADVOGADO(A/S) : LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(A/S)

V O T O

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO: A Confederação

Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, invocando o art.

1º, caput, da Lei 9.882, de 1999, propõe argüição de descumprimento de preceito fundamental, indicando como preceitos constitucionais fundamentais ofendidos o art. 1º, IV (dignidade da pessoa humana), art. 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade) e arts. 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da C.F., e, como ato do Poder Público causador da lesão, os arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal.

Sustenta-se que se tem entendido que os dispositivos do Código Penal indicados proíbem efetuar-se a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencéfalos, certo que a anencefalia constitui patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina.

II

O pedido principal formulado pela autora é este: que o Supremo Tribunal Federal, procedendo interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos legais como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

Como pedido alternativo, requer a autora que, se for entendido não caber a ADPF, no caso, “seja a presente recebida como ação direta de

inconstitucionalidade, uma vez que o que se pretende é a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, sem redução de texto, hipótese, portanto, em que não incidiria a jurisprudência do STF relativamente à inadmissibilidade de ADIn em relação a direito pré-constitucional”.

O que se pretende, portanto, nesta ADPF, é que o Supremo Tribunal Federal proceda à interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, declarando inconstitucional a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo.

III

Dispõem referidos artigos 124, 126 e 128, I e II,

do Código Penal:

1) Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento: “Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena: detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.”


2) Aborto provocado por terceiro: “Art. 126. Provocar aborto com o

consentimento da gestante: Pena: reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.” Nota: a pena do artigo anterior, art. 125, é de reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

3) Aborto necessário: “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;”

4) Aborto no caso de gravidez resultante de

estupro: “Art. 128………………………………. II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” O pedido, conforme acima exposto, é para que o Supremo Tribunal, procedendo interpretação conforme a Constituição dos citados dispositivos penais, declare a inconstitucionalidade da interpretação desses dispositivos

como impeditivos do aborto do feto anencéfalo.

IV

A orientação do Supremo Tribunal Federal, no caso de interpretação conforme a Constituição está exposta na ADI 581/DF, tendo eu concorrido com o meu voto para a tomada dessa orientação. É dizer, admitida como constitucional uma das interpretações possíveis da lei objeto da ação direta, está o Tribunal declarando a inconstitucionalidade das demais interpretações. Tem-se, pois, em tal caso, declaração parcial de inconstitucionalidade da lei, sem redução do texto (RTJ 144/154). Dá-se, então, que a Corte, reconhecendo a

constitucionalidade de uma interpretação da norma infraconstitucional, terá como inconstitucional as demais interpretações possíveis. No RE 121.336/CE, o Ministro Moreira Alves anotou que a interpretação conforme “só se admite quando não altera a mens legis, certo como é que o Poder Judiciário, no exercício do controle da constitucionalidade da lei, só atua como legislador negativo, e não como legislador positivo, o que ocorreria se sua interpretação alterasse o sentido da lei.”

Acrescentou o eminente Ministro Moreira Alves:

“Como observa Schlach (“Das Bunddesveriassungsgericht”, pág.

188, München, 1985), com base nas decisões da Corte

Constitucional alemã, não se pode, a título de se interpretar uma lei conforme a Constituição, dar-lhe sentido que falseie ou viole o objetivo legislativo em ponto essencial” (RTJ 139/624, 635).

Posta assim a questão, vejamos se seria possível,

no caso, a interpretação conforme a Constituição dos

dispositivos legais tidos, pela autora, como ofensivos aos

preceitos fundamentais invocados.

V

O Código Penal, nos artigos 124 e 126 „Ÿ„Ÿ estamos mencionando apenas os dispositivos penais invocados, não estamos mencionando o art. 125 do Código Penal . punem o crime de aborto, ou tipificam como crime o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (Código Penal, art. 124) e o aborto provocado por terceiro (Código Penal, art. 126). No artigo 128, I e II, a lei penal estabelece, expressamente, as exclusões do crime de aborto:

a) o aborto necessário, a fim de salvar a vida da gestante (Código Penal, art. 128, I); e b) o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (Código Penal, art. 128, II).

O que se pretende, então, é que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, mediante interpretação conforme a Constituição, a inconstitucionalidade da interpretação dos dispositivos penais indicados como impeditivos do aborto do feto anencéfalo. Noutras palavras, que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, mais uma causa de exclusão do crime de aborto. A interpretação conforme, no caso, não se limitaria a conferir, simplesmente, num caso de “normas polissêmicas ou plurissignificativas”, como registrou o Ministro Celso de Mello, forte no magistério de Gomes Canotilho (“Direito Constitucional”, 5ª ed., p. 235, RTJ 144/153), uma das interpretações possíveis, frente à Constituição. No caso, o Supremo Tribunal Federal estaria inovando no mundo jurídico, vale dizer, estaria criando mais uma forma de exclusão do crime de aborto, o que não seria possível em sede de interpretação conforme a Constituição.

VI

Sem dúvida, Sr. Presidente, que a interpretação da lei é o que a vivifica. A interpretação da lei, noutras palavras, é a lei viva. Se “é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade”, não é menos certo, entretanto, que assim poderemos proceder “interpretando e, não, mudando-lhe o texto”, lecionou, nesta Corte, o saudoso Ministro Luiz Gallotti, no RE 71.758/GB (RTJ 66/165).

No caso, como ficou esclarecido, linhas atrás, pretende-se, mediante interpretação da lei penal conforme a Constituição, instituir uma terceira excludente de criminalidade relativamente ao crime de aborto.


O que se pretende, portanto, é que o Supremo Tribunal Federal inove no mundo jurídico. E inove mediante interpretação. Vale invocar, novamente, a lição do saudoso Ministro Luiz Gallotti: “podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto” (RTJ 66/165).

VII

Mas há um outro dado, Sr. Presidente, altamente significativo, a tolher a pretensão da autora. É isto: a interpretação inovadora, ao criar nova causa de exclusão do crime de aborto, não prescindiria de regulamentação legal, tal como ocorre em direito comparado, como, por exemplo, na legislação francesa. O “Code de La Santé Publique” disciplina e regulamenta a “interruption volontaire de grossesse” no

Livro 2. O Capítulo I cuida dos princípios gerais (artigos 2.211 a 2.211-2), o Capítulo II, da interrupção praticada antes do fim da 12ª semana de gravidez (artigos 2.212-1 a 2.212-11) e o Capítulo III, da interrupção da gravidez praticada por indicação médica (artigos 2.213 a 2.213-3) e o Capítulo IV cuida das disposições comuns (artigos 2.214-1 a 2.214-5). Interessa-nos, no caso, o capítulo III . interrupção da gravidez praticada por indicação médica, arts. 2.213-1 a 2.213-3.

A lei francesa exige, nessa hipótese, que dois médicos que integram uma equipe “pluridisciplinaire” atestem “après que cette équipe a rendu son avis consultatif, soit que la poursuite de la grossesse met em péril grave la santé de la femme, soit qu’il existe une forte probalité que l’enfant à naitre soit atteint d’une affection d’une particulière gravité reconnue comme incurable ao moment du diagnostic.”

Seguem-se as recomendações seguintes, no que concerne à segunda hipótese, que nos interessa, no caso: “Lorsque l’interruption de grossesse est envisagée au motif qu’il existe une forte

probabilité que l’enfant à naitre soit atteint d’une affection d’une particulière gravité reconnue comme incurable au moment du diagnostic, l’équipe pluridisciplinaire chargée d’examiner la

demande de la femme est celle d’un centre pluridisciplinaire de diagnostic prénatal. Lorsque l’équipe du centre précité se réunit, un médecin choisi par la femme peut, à la demande de celleci, être associé à la concertation. Dans les deux cas, préalablement à la

réunion de l’équipe pluridisciplinaire compétente, la femme concernée ou le couple peut, à sa demande, être entendu par tout ou partie des

membres de ladite équipe.”

(“Quando a interrupção da gravidez é examinada (pedida) em razão de existir uma forte possibilidade de que a criança que vai nascer seja portadora de uma doença de uma particular gravidade, reconhecida como incurável no momento do diagnóstico, a equipe pluridisciplinar encarregada de examinar o pedido da mulher é aquela de um centro

pluridisciplinar de diagnóstico pré-natal. Quando a equipe do centro citado anteriormente se reúne, um médico escolhido pela mulher pode, a pedido desta, estar associado ao Conselho. Nos dois casos, previamente à reunião da equipe pluridisciplinar competente, a mulher em questão ou o casal pode, a seu pedido, ser ouvida por toda ou parte dos membros da dita equipe.”)

Senhor Presidente, esclareça-se que a equipe “pluridisciplinaire” compõe-se de três pessoas: um médico ginecologista-obstetra, um médico escolhido pela mulher e uma terceira pessoa que pode ser um assistente social ou um psicólogo.

O psicólogo parece-me de grande importância. É que o aborto, no caso, pode causar trauma psicológico na mãe, no futuro. Ela precisa, então, estar bem consciente de seu ato. O cérebro, a afirmativa é acaciana, mas vale lembrar, a tudo controla. Um trauma psicológico pode causar danos irreparáveis à mãe.

VIII

Assim posta a questão, admitir uma exclusão do crime de aborto, sem as cautelas de uma regulamentação séria, como, por exemplo, a que é adotada na França, seria temerário, mesmo porque não se pode descartar a possibilidade de clínicas de abortos criminosos se utilizarem da medida. Um dado importante: a regulamentação deveria exigir a necropsia do feto, a fim de se verificar se foi acertado o diagnóstico. Ora, essa regulamentação, absolutamente necessária, somente poderia ser feita mediante lei. O Supremo Tribunal Federal não poderia, evidentemente, fazê-la, sob pena de substituir-se ao Congresso Nacional.

IX

Se é assim relativamente ao pedido principal, o que significa decidir pelo não-cabimento da argüição, melhor sorte não teria a autora no seu pedido alternativo, o acolhimento da ADPF como ADI. É que os dispositivos da lei penal invocados constituem direito pré-constitucional. A pretensão da autora resultaria, em última análise, na

declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, de normas infraconstitucionais, as normas penais mencionadas, anteriores à Constituição de 1988. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a partir do leading case, ADI nº 2, não admite ação direta de inconstitucionalidade de direito pré-constitucional.

X

Aliás, o inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882, de 03.12.99, que admite a ADPF sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição, deve ser visualizado com a maior cautela, por isso que, conforme acima foi dito, a jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal não admite a inconstitucionalidade superveniente, com base na doutrina de Kelsen da não-recepção de normas anteriores à Constituição, com esta incompatíveis. Tenho dúvida, Sr. Presidente, sobre a legitimidade constitucional do citado dispositivo da Lei 9.882/99.

XI

Do exposto, não conheço da presente Argüição de

Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF.

É como voto, Sr. Presidente.

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