Números da Justiça

Falhas de gestão e de tecnologia atrasam o Judiciário

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3 de maio de 2005, 14h18

A segunda instância da Justiça paulista, que é responsável por cerca de 40% de toda a movimentação judicial do Brasil, é também uma das mais lentas do país. Atolado em 600 mil recursos à espera de julgamento, o TJ recebe, anualmente, mais 170 mil casos, mas só consegue dar conta de 110 mil. Isso o coloca no 19º lugar no ranking de produtividade elaborado pela revista Consultor Jurídico com base no Banco Nacional de Dados do Supremo Tribunal Federal.

Os dados do levantamento são de 2003. Em 1999, o TJ conseguiu resolver 82% dos processos recebidos no ano. Em 2003, solucionou 65%. Nesse mesmo ano os tribunais de Minas Gerais e Rio de Janeiro computaram, respectivamente, 111% e 110% de produtividade.

Na prática, um recurso demora cerca de cinco anos apenas para ser distribuído em São Paulo, média que, se comparada a Minas e ao Rio de Janeiro, ganha contornos ainda mais alarmantes: nos tribunais com a produtividade mais alta da segunda instância, o tempo gasto para executar o mesmo procedimento não leva uma semana.

O índice reflete também o que acontece na maioria dos tribunais estaduais do Brasil. Assim como em São Paulo, eles são regidos pela má administração, por sistemas de informatização precários e pela ausência de estrutura, de metas bem traçadas e de criatividade – aspectos responsáveis pelo alto nível de deficiência no Judiciário brasileiro.

Ainda hoje, o tribunal que responde por cerca de 70% das ações que sobem aos tribunais superiores do Brasil conta com um modelo de gestão em desacordo com os parâmetros hoje adotados no mundo todo. Nele ainda não se vê o uso de medidas como a racionalização do orçamento, padronização dos procedimentos e implementação de ações planejadas a longo prazo – as inovações trazidas por uma gestão não costumam ser levadas adiante pela outra. Regra geral perde-se tudo no meio do caminho.

O tribunal paulista também carece, ainda, do principal motor para dar celeridade ao trâmite dos processos: enquanto Minas e Rio de Janeiro já contam com todo o seu sistema informatizado e integrado, São Paulo parece começar apenas agora a caminhar para essa direção. Dotado ainda de um sistema arcaico de procedimento, é natural que apesar de ser um dos tribunais com mais processos julgados por desembargador (848 para cada um, terceiro maior índice do país) ele figure em posição tão desconfortável na lista.

O mesmo acontece com o Distrito Federal, sede de um dos tribunais de segunda instância com o pior grau de eficiência do Brasil. Lá, apesar de cada desembargador ter julgado 623 casos em 2003, o que equivale ao 6º lugar no ranking de processos por desembargador, o grau de produtividade é de 55%, mesmo percentual registrado pelo Pará. Dos 34.141 processos entrados na segunda instância do TJ-DF, apenas 18.701 foram julgados. No TJ-PA, apenas 3.776 das 6.826 ações que subiram da primeira instância em 2003 tiveram qualquer decisão proferida. Em ambas as cortes conseguiu-se dar vazão a pouco mais da metade de todos os recursos.

Para a presidente do INQJ — Instituto Nacional de Qualidade do Judiciário Maria Elizabeth Leão, o problema é claro: “mesmo que se trabalhe muito, nesses tribunais o número de processos é sempre maior do que o que se consegue julgar”. Essa deficiência na capacidade de suprir a demanda seria solucionada apenas com o melhor aparelhamento estrutural das cortes. De 1999 para 2003, apesar de na maioria dos tribunais o número de ações ter dobrado, eles continuaram com a mesma quantia de desembargadores.

Das seis cortes que ficaram com o grau de produtividade abaixo dos 70% e acima de 50%, apenas o Pará foi contemplado com um crescimento razoável no número de desembargadores: em 2003, o TJ-PA contou com cinco desembargadores a mais que em 1999 e apesar do índice de produtividade ser de apenas 55%, o percentual foi 12% mais alto que em 1999. Pernambuco (66% de eficiência em 2003) registrou três desembargadores a mais; Tocantins (65%) um; São Paulo continuou com os mesmo 130 desembargadores de 1999; Distrito Federal (55%) um; e Piauí (51%) dois.

Em contrapartida, Minas Gerais viu seu quadro de desembargadores aumentar de 44 para 59; o Rio de Janeiro de 145 para 159; Goiás (102% de produtividade) de 22 para 32; Rondônia (97%, 14% a mais que 1999) de 11 para 13; e Santa Catarina (96%, 25% a mais que 1999) de 27 para 40. Assim, os dois estados que ocupam o topo da produtividade do país e que registraram os maiores crescimentos em eficiência são também os que mais viram seu quadro aumentar no período em que se baseia o estudo. A exceção fica para Goiás, cuja produtividade ao longo dos quatro anos aumentou apenas 3%.

O tribunal de Justiça de Roraima – o mais ineficiente dos que forneceram dados ao levantamento, com apenas 31% de produtividade, 44% a menos que em 1999 – continuou, em 2003, com os mesmos sete desembargadores que já tinha quatro anos antes. O mesmo caso pode ser observado no Espírito Santo, que registrou a segunda pior queda de produtividade: o índice no estado caiu em 38%, percentual que só deixa atrás o Distrito Federal, com declínio de 35% em relação a 1999 e o Piauí, com queda de 31%.

Apesar de indicadores concretos da atividade jurisdicional de cada estado, vale lembrar, no entanto, que os números não são suficientes para traduzir a realidade dos tribunais. Além dos índices, há de se levar em conta dados como a estrutura orçamentária com a qual cada um deles conta. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma lei baixada ainda no governo Anthony Garotinho garantiu que todo o dinheiro proveniente das custas judiciais seja repassado diretamente para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sem passar pelo executivo fluminense.

Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo tentou aumentar o percentual do montante das custas Judiciais que deveriam ser encaminhados à corte sem passar antes pelo executivo paulista. A ação foi contestada pelo governador Geraldo Alckmin no Supremo Tribunal Federal, que concedeu liminar em favor do estado. Assim, se a administração da segunda instância fluminense é notadamente melhor que a observada no TJ-SP ela também conta com muito mais verba para colocar em prática suas ações.

Informatização

Em todos os tribunais que registram baixa eficiência, um traço é comum: a carência de um sistema de informática bem implementado. Um erro das administrações da segunda instância da Justiça brasileira – onde já se observa o movimento pela modernização dos procedimentos, ação que ainda é muito incipiente no primeiro grau de jurisdição – é pensar que a informatização sozinha solucionará o problema da morosidade do Judiciário.

Para que funcionem e atinjam os objetivos esperados, os sistemas devem ser, além de integrados, “aprendidos pelas pessoas que trabalham nos tribunais e têm de falar uma só linguagem”, afirma Elizabeth Leão. “Do contrário, os computadores viram mero objeto de decoração e são usados como máquinas de escrever. Não se chega a um nível de excelência se não houver capacitação dos servidores”, diz.

O fato é que ao juiz não compete mais apenas proferir sentenças e administrar conflitos jurídicos. Não há aumento no cargo de desembargadores que dê conta do crescente número de ações que inundam as cortes à medida que o Direito se alarga e abre precedentes para reclamações impensáveis há alguns anos. Um bom juiz ou desembargador é também, atualmente, um bom empreendedor. ‘Hoje ele deve ser um bom administrador de seu gabinete e do tribunal”, diz o presidente da Comissão pela Efetividade da Justiça da Associação dos Magistrados Brasileiros Roberto Siegmann.

Um exemplo disso é também uma exceção. Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — 12º colocado no ranking de produtividade em 2003 e que no mesmo ano registrou 1.274 processos julgados por desembargador — Breno Pereira da Costa Vasconcellos atingiu, em 2004, a marca de 4.608 decisões proferidas, recorde no Judiciário brasileiro.

A marca foi atingida por meio de ações teoricamente simples, mas raramente vistas em outros gabinetes dos tribunais espalhados pelo país. A síntese do sucesso de Vasconcellos é o controle absoluto do processo, a ciência do que ele pede e do que pode ser sobre ele decidido. Feito a seis mãos, o procedimento copia os moldes de uma linha de produção. “Funcionamos como o setor privado. Damos soluções rápidas para a demanda como se fossemos uma empresa”, afirma. “Temos de racionalizar o pouco tempo e o pouco recurso de que dispomos para conseguir dar a solução adequada e segura o mais rápido possível”.

Tribunais S/A

Desde que começou a ser redesenhado por um projeto em parceria com a Fundação João Pinheiro (espécie de Fundação Getúlio Vargas mineira), o TJ-MG, não só trocou a montanha de papéis por uma rede interligada de comunicação, mas caminhou também para a descentralização de sua administração.

Seguindo os moldes de gestão de empresas privadas, funções concentradas em apenas um funcionário foram extintas. O cargo de diretor-geral, por exemplo, não existe mais: foi dividido. Todos os assuntos que eram submetidos ao critério de apenas uma pessoa passam agora por oito diretores. A lógica está na crença de que oito cabeças pensam oito vezes melhor e erram oito vezes menos que uma.

A implementação do modelo de administração privada está presente, ainda, na valorização e incentivo de funcionários. Lá, todos os bacharéis em direito são convidados a assessorar os desembargadores, o que resultou em um auxílio de quatro funcionários em média por julgador – o chamariz é, além do salário, a possibilidade de crescer na profissão. “Funcionamos como uma fábrica de montagem de carros”, afirma o 1º vice-presidente do TJ-MG Orlando Carvalho. Por meio da iniciativa e do envolvimento de todos no processo, consegue-se dar vazão às cerca de 300 ações que chegam por dia ao tribunal.

Caminho inverso

O desafio agora é, segundo Carvalho, conseguir implantar o mesmo sistema na primeira instância. Espera-se que até julho deste ano o estado interligue todas as 291 comarcas da Justiça mineira. “Estamos tentando passar para o primeiro grau o que já foi padronizado na segunda instância”, afirma. Isso porque, se o tribunal de Justiça de Minas registra o melhor índice de produtividade do país, a celeridade das Varas da Justiça Comum ficam em 16º lugar no ranking, com percentual de efetividade de apenas 55%.

Fazer o caminho inverso, de cima para baixo, também foi a estratégia usada pelo Rio de Janeiro. Assim como Minas, a primeira instância do estado fica bem aquém do grau de produtividade do segundo grau: nela, o índice de aproveitamento é de meros 46% enquanto na instância superior ele chega a 110%. “A segunda instância é o nosso laboratório: a escala é bem menor que no primeiro grau tanto na quantidade de serventias como no número de processos”, diz o diretor da Diretoria Geral de Apoio aos Órgãos Jurisdicionais do Tribunal de Justiça do Rio, Anízio Camacho.

A estrada que levou aos bons resultados apresentados hoje não é curta: começou a ser trilhada em 1998, quando foi iniciada a execução da informatização do tribunal. Também como em Minas, a Justiça fluminense é hoje uma das únicas no país que conseguiu fazer do computador mais do que uma máquina de escrever – talvez o único meio pelo qual seria possível o estado conseguir responder ao aumento de cerca de 60% nos recursos entrados em relação a 1999, ou em números absolutos o correspondente a 38.912 ações.

Auxiliado pelo sistema de informática, o TJ-RJ criou um método para estudar o desempenho e mensurar a atividade jurisdicional de seus membros, a partir do qual são traçadas soluções para os problemas apontados. A importância da ação ganhou força há sete meses, quando o que era um núcleo de acompanhamento de qualidade foi transformado em departamento.

Com os dados em mãos, foram identificadas necessidades como a que levou à criação de 25 cargos de desembargadores itinerantes que cobrem férias e licenças. Nenhuma Câmara do tribunal atua hoje com menos de cinco julgadores cada uma.

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