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Operações e acusações injustas podem custar caro à União

29 de junho de 2005, 21h26

Por Redação ConJur

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Enquanto indeniza, por danos materiais, vítimas da ditadura, de planos econômicos mal feitos e de credores de precatórios, o poder público pode entrar em uma fase delicada caso todas as pessoas que se julgam vítimas da Polícia Federal, do Ministério Público e mesmo do Judiciário — nas dezenas de “operações” empinadas pelo governo — resolvam cobrar danos morais pelas agruras que enfrentaram.

Na seção de terça-feira (28/6), a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal começou a votar matéria que pode abrir as comportas do Erário para casos similares: decide-se a presença de dano moral praticado pela União no caso de candidata aprovada em vestibular e que não teve o ingresso em curso universitário garantido por uma formalidade qualquer.

Em votação nesta quarta-feira (29/6), ao dar razão a um contribuinte prejudicado pelo fisco, o ministro Gilmar Mendes alerta a União “para os riscos que as ações ilícitas ou abusivas por parte de órgãos ou agentes do Estado podem trazer para os cofres públicos, na medida em que podem dar ensejo a pedidos de indenização fundados no princípio da responsabilidade civil do Estado (CF, art. 37, § 6º)”.

No caso concreto (leia a íntegra do voto abaixo), Gilmar Mendes decidiu que a ação penal não pode ser instaurada antes de esgotado todo o procedimento administrativo relativo à questão. Assim, o ministro determinou o imediato trancamento de inquérito policial contra o deputado João Hermann Neto (PDT-SP) por suposta prática de crime contra a ordem tributária.

“Não cabe dar prosseguimento a inquérito policial, quando não há justa causa para ação penal, visto que a ausência de conclusão do procedimento administrativo tributário legitima o trancamento da ação penal”, afirmou Gilmar Mendes em seu voto.

Para ele, “não é difícil perceber os danos que a mera existência de um inquérito criminal impõe ao indivíduo”. “Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso”, afirmou o ministro.

Leia a íntegra do voto

INQUÉRITO 2.092-3 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

AUTOR (A/S) (ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

DECISÃO: Cuida-se de inquérito policial contra o Deputado Federal João Hermann Neto pela suposta prática de crime contra a ordem tributária.

O Procurador-Geral da República requereu o sobrestamento do feito, afirmando, no ponto, o seguinte:

“Às fls. 134 a Secretaria de Estado da Fazenda em São Paulo informou que ‘o Processo GDOC nº 76117-66658/2003, originado pelo AIIM nº 2.103.752-8, em nome de DESTILARIA GUARICANGA S/A, já julgado em primeira instância administrativa, pela manutenção da acusação fiscal, conta com recurso ordinário interposto pelo contribuinte, em processamento, estando na Representação Fiscal para contra-razões.’

“Em consulta ao site daquela Secretaria de Estado verifica-se que a Representação Fiscal encontra-se na mesma situação, ou seja, aguardando as contra-razões, sem julgamento definitivo.

Diante do exposto, requeiro o sobrestamento dos autos até o julgamento definitivo da Representação Fiscal, solicitando seja novamente oficiada a Secretaria dos Negócios da Fazenda de São Paulo, para que informe quando da situação final do processo administrativo-tributário.” (fl. 143)

A jurisprudência desta Corte já se firmou no sentido de que, quando se trata de crime contra a ordem tributária, não há causa que justifique a ação penal antes do exaurimento da esfera administrativa. Assim decidiu o Plenário no julgamento do HC 81.611:

“I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.” (HC 81.611, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13.05.05)


Naquela ocasião, o eminente Relator, Ministro Sepúlveda Pertence, destacou em seu voto:

“nos crimes do art. 1º da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, configurando-se como elemento essencial à exigibilidade da obrigação tributária, cuja existência ou montante não se pode afirmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final em sede administrativa”

Ademais, firmou-se o entendimento de que, enquanto durar o processo administrativo, não há cogitar do início do curso do lapso prescricional, visto que ainda não se consumou o delito. Nesse sentido, destacam-se as seguintes decisões:

“HABEAS CORPUS. PENAL. TRIBUTÁRIO. CRIME DE SUPRESSÃO DE TRIBUTO (ART. 1º DA LEI 8.137/1990). NATUREZA JURÍDICA. ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Na linha do julgamento do HC 81.611 (rel. min. Sepúlveda Pertence, Plenário), os crimes definidos no art. 1º da Lei 8.137/1990 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo. 2. Se está pendente recurso administrativo que discute o débito tributário perante as autoridades fazendárias, ainda não há crime, porquanto ‘tributo’ é elemento normativo do tipo. 3. Em conseqüência, não há falar-se em início do lapso prescricional, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do art. 111, I, do Código Penal. (HC 83.414, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 23.04.04)

“1. Agravo de instrumento: deficiência do traslado: falta da cópia das contra-razões do RE ou certidão de sua inexistência(L. 8.038/90, art. 28). 2. Recurso extraordinário: descabimento: questão decidida com base em legislação infraconstitucional, não prequestionada a matéria constitucional suscitada no RE. 3.Recurso extraordinário, prequestionamento e habeas-corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a discussão em torno de requisitos específicos, qual o do prequestionamento, sempre que – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de habeas-corpus de ofício. 4. Crime material contra a ordem tributária (L. 8.137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo: precedente (HC 81.611, Pleno, 10.12.2003, Pertence, Inf. STF 333).” (AI 419.578, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27.08.04)

“HABEAS CORPUS – DELITO CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – SONEGAÇÃO FISCAL – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIO AINDA EM CURSO – AJUIZAMENTO PREMATURO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DA AÇÃO PENAL – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A VÁLIDA INSTAURAÇÃO DA ‘PERSECUTIO CRIMINIS’ – INVALIDAÇÃO DO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO DESDE O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA, INCLUSIVE – PEDIDO DEFERIDO. – Tratando-se dos delitos contra a ordem tributária, tipificados no art. 1º da Lei nº 8.137/90, a instauração da concernente persecução penal depende da existência de decisão definitiva, proferida em sede de procedimento administrativo, na qual se haja reconhecido a exigibilidade do crédito tributário (‘an debeatur’), além de definido o respectivo valor (‘quantum debeatur’), sob pena de, em inocorrendo essa condição objetiva de punibilidade, não se legitimar, por ausência de tipicidade penal, a válida formulação de denúncia pelo Ministério Público. Precedentes. – Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I). Precedentes.” (HC 84.092, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.12.04)

Dessa última decisão, destaco o seguinte excerto do voto do Ministro Celso de Mello, verbis:

“Assentadas as premissas que se revelam necessárias à análise da presente impetração, cabe esclarecer que, no caso ora em exame, a paciente foi denunciada por suposta prática do crime tipificado no art. 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90, sendo certo que a formulação da acusação penal, pelo Ministério Público, antecipou-se à conclusão do procedimento administrativo-fiscal, sem que se houvesse registrado, no entanto, na esfera administrativa, a definitiva constituição do crédito tributário (fls. 110, item n. 6 da denúncia), inexistindo, portanto, para efeito de legitimar-se a instauração da concernente ‘persecutio criminis’, o necessário ‘accertamento’ em torno do ‘an debeatur’ e/ou do ‘quantum debeatur’ referentes ao tributo alegadamente devido.


A prematura instauração da persecução penal, portanto, no caso ora em exame, traduz hipótese de ausência de justa causa, apta a ensejar – consideradas as premissas em que se assentou, nesta Corte, o julgamento plenário do ‘leading case’ – a imediata extinção do processo penal condenatório instaurado contra Terezinha de Jesus Bezerra, eis que, com o não-encerramento do procedimento fiscal, na esfera da Administração Tributária, ainda não se registrou a configuração típica da conduta imputada à ora paciente.

Cabe assinalar, neste ponto, por necessário, tendo em vista a plena liquidez dos fatos – formulação prematura de acusação, por suposta prática de delito contra a ordem tributária, tipificado no art. 1º, n. I, da Lei nº 8.137/90, antes de concluído o procedimento administrativo-fiscal do lançamento tributário (consoante expressamente reconhecido pelo próprio Ministério Público a fls. 110, item n. 6) -, que se revela processualmente viável, ainda que em sede de ‘habeas corpus’, reconhecer-se, para efeito de extinção anômala do processo penal condenatório, a inocorrência de causa legitimadora da instauração da ‘persecutio criminis’, conforme tem admitido o magistério jurisprudencial firmado por esta Suprema Corte.

Impende considerar, nos termos em que formulado este voto, e na linha de reiterados pronunciamentos desta Suprema Corte (RT 594/458 – RT 747/597 – RT 749/565 – RT 753/507), que, ‘Em sede de habeas corpus só é possível trancar ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria, quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese, e em situações similares, onde pode ser dispensada a instrução criminal para a constatação de tais fatos (…)’ (RT 742/533, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei).

E é, precisamente, o que se registra na espécie ora em exame.

Cumpre registrar, finalmente, que essa orientação tem o prestigioso beneplácito de JULIO FABBRINI MIRABETE (‘Código de Processo Penal Interpretado’, p. 1.426/1.427, 7ª ed., 2000, Atlas), cuja autorizada lição, no tema, adverte:

‘Também somente se justifica a concessão de habeas corpus, por falta de justa causa para a ação penal, quando é ela evidente, ou seja, quando a ilegalidade é evidenciada pela simples exposição dos fatos, com o reconhecimento de que há imputação de fato atípico ou da ausência de qualquer elemento indiciário que fundamente a acusação (…).’ (grifei)

Sendo assim, pelas razões expostas, tendo em consideração os precedentes acima referidos e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, defiro o presente pedido de ‘habeas corpus’, para determinar o imediato trancamento do Processo-crime nº 2002.81.00.016615-0, ora em tramitação perante a 11ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Ceará (fls. 114), com a conseqüente invalidação desse procedimento penal, desde a denúncia, inclusive.”

Com efeito, não cabe dar prosseguimento a inquérito policial, quando não há justa causa para a ação penal, visto que a ausência de conclusão do procedimento administrativo tributário legitima o trancamento de ação penal. Dessa forma, não há que se falar em sobrestamento de inquérito, enquanto não finalizado o procedimento administrativo, tal como requerido pela Procuradoria-Geral da República.

Há outro aspecto constitucional relevante.

Como já afirmei em outras oportunidades, o princípio da dignidade da pessoa humana, entre nós, tem base positiva no artigo 1o, III, da Constituição.

Na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18).

Negar proteção judicial nas hipóteses em que é devida e, no presente caso, inexorável (pois não há a condição objetiva de punibilidade ou o elemento normativo do tipo, tal como afirmado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que ofereça fundamento para manter-se um inquérito policial contra alguém), implica ferir a um só tempo o princípio da proteção judicial efetiva (CF, art. 5º, XXV) e o princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III).

Não é difícil perceber os danos que a mera existência de um inquérito criminal impõe ao indivíduo, especialmente quando se cuida de procedimento desproporcional ou indevido. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

É preciso alertar, ainda, para os riscos que as ações ilícitas ou abusivas por parte de órgãos ou agentes do Estado podem trazer para os cofres públicos, na medida em que podem dar ensejo a pedidos de indenização fundados no princípio da responsabilidade civil do Estado (CF, art. 37, § 6º).

Nesses termos, determino o arquivamento do presente inquérito.

Publique-se.

Brasília, 29 de junho de 2005.

Ministro GILMAR MENDES

Relator