Prisão cautelar

Leia o voto de Celso de Mello sobre excesso de prazo na prisão

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27 de junho de 2005, 9h47

O excesso de prazo na prisão cautelar não pode ser tolerado, mesmo se tratando de crime hediondo. Essa é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, citada pelo ministro Celso de Mello, que mandou libertar dois acusados de participar de um confronto com “pistoleiros” de uma fazenda em Anapu, no Pará. O episódio culminou com a morte de uma pessoa. A terceira pessoa acusada era a freira Dorothy Stang que, mais tarde, seria assassinada na mesma região de conflito.

Em seu despacho, Celso de Mello relata que os acusados foram presos em 27 e 28 de fevereiro de 2004. O Ministério Público somente ofereceu denúncia em 18 de junho do ano passado e a Justiça só a recebeu em 16 de setembro. O interrogatório judicial dos acusados foi feito apenas em 14 de outubro e, até agora, “a fase de instrução penal sequer se iniciou”.

“Vê-se, portanto, que o quadro registrado no caso ora em análise traduz situação que não pode ser tolerada, ainda mais por representar, independentemente da natureza da infração delituosa objeto da imputação penal, a consumação de clara lesão ao ‘status libertatis’ dos réus, ora pacientes”, registrou o ministro.

Leia a íntegra do voto de Celso de Mello

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 85.988-7 PARÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): JOSÉ DOS PASSOS RODRIGUES DOS SANTOS

PACIENTE(S): JUNIOR ALVES DE CARVALHO

IMPETRANTE(S): PATRICK MARIANO GOMES E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: A prisão em flagrante dos ora pacientes – cuja legalidade é por eles contestada, pois sustentam a inocorrência, no caso, da situação de quase-flagrância ou de flagrância imprópria (CPP, art. 302, III) – ocorreu em 27 e em 28 de fevereiro de 2004. Não obstante a norma inscrita no art. 10, “caput”, do CPP, o Ministério Público somente ofereceu denúncia em 18/06/2004, consubstanciada em peça acusatória que veio a ser recebida apenas em 16/09/2004.

O interrogatório judicial dos ora pacientes, por sua vez, só se efetivou em 14/10/2004, sendo que a fase de instrução penal sequer se iniciou.

Vê-se, portanto, que o quadro registrado no caso ora em análise traduz situação que não pode ser tolerada, ainda mais por representar, independentemente da natureza da infração delituosa objeto da imputação penal, a consumação de clara lesão ao “status libertatis” dos réus, ora pacientes.

O exame dos elementos constantes destes autos, considerada a seqüência cronológica dos dados juridicamente relevantes, permite reconhecer, desse modo, a efetiva ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos legais.

Em conseqüência de tal situação, os ora pacientes permanecem, na prisão, por período superior àquele que a lei permite, dando ensejo à situação de injusto constrangimento a que alude o ordenamento positivo (CPP, art. 648, II).

É sempre importante relembrar, neste ponto, que ninguém pode permanecer preso, especialmente quando sequer proferida sentença penal condenatória, por lapso temporal que excede ao que a legislação autoriza, consoante adverte a própria jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame:

O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.

– Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.

– O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.

– A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

– O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.” (HC 85.237/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

O argumento de que a existência de litisconsórcio penal passivo poderia justificar um razoável prolongamento da permanência na prisão não se justifica, quando o excesso verificado – porque irrazoável – revela-se inaceitável (RTJ 187/933-934), ainda mais quando tal situação anômala – a que deu causa, exclusivamente, o aparelho de Estado – não foi provocada por aqueles, como os ora pacientes, que sofrem a privação cautelar de sua liberdade.

Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando, ainda, os esclarecimentos que o impetrante prestou a fls. 23/31, após o despacho que exarei a fls. 21, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a determinar a imediata soltura dos ora pacientes, se por al não estiverem presos, relativamente ao Processo-crime nº 060/2004-AP (Vara Agrária de Altamira/PA), cujos autos – porque remetidos ao Juízo de Direito da comarca de Pacajá/PA – possuem, agora, a seguinte numeração identificadora: Processo-crime nº 006/2004 (certidão a fls. 25).

A presente medida liminar não impede o normal prosseguimento do Processo-crime nº 006/2004, ora em tramitação perante o Juízo de Direito da comarca de Pacajá/PA.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao Juízo de Direito da comarca de Pacajá/PA (Processo-crime nº 006/2004), ao Juízo de Direito da Vara Agrária de Altamira/PA (Processo-crime nº 060/2004-AP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado do Pará (HC nº 2004.302660 – Acórdão nº 53.758) e ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 38.783/PA).

Publique-se.

Brasília, 07 de junho de 2005.

Ministro CELSO DE MELLO

RELATOR

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