Tratamento arcaico

Advogado lança livro em que defende liberação das drogas

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26 de junho de 2005, 13h10

O criminalista Wanderley Rebello Filho, de 48 anos, é casado e tem três filhos. Todos na idade mais temida pelos pais: a adolescência. Formado pela PUC do Rio de Janeiro, o advogado não bebe e não fuma. Mesmo tendo convivido durante anos de sua vida com um grupo barra pesada de Copacabana, bairro da Zona Sul carioca, onde cresceu, garante que nunca experimentou sequer um cigarro de maconha.

Apesar do perfil ortodoxo, Rebello lança nesta segunda-feira, 27, na sede da OAB-RJ, o livro Drogas: por quem nunca usou! – um arrazoado à liberação do uso de entorpecentes. Um paradoxo? Não, responde o advogado. Apenas um apelo ao fim da hipocrisia de quem enfrenta no dia-a-dia dos tribunais o rigor da lei condenando à cadeia jovens usuários, dependentes ou não.

Wanderley Rebello Filho é vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e idealizou, no ano de 2000, a criação da Comissão de Combate às Drogas e à Dependência Química da entidade que começou a funcionar em 2001. Atualmente é membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.

No livro de 238 páginas, o autor defende que o uso de qualquer substância entorpecente deve ser liberado, por uma questão de se tratar de auto-lesão, e de isonomia de tratamento, haja vista que outras drogas que causam dependência e são entorpecentes têm seu uso permitido e incentivado, caso do álcool e do cigarro. Além de versar sobre os efeitos das drogas no organismo e de dar dicas de como os pais podem perceber que seu filho é usuário, o advogado conta 11 histórias reais envolvendo o consumo de maconha ou cocaína.

Nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, ele defende que o uso de entorpecentes saia da lei, critica o Judiciário por suas posições retrógradas e afirma: “estou pouco me lixando para o traficante. Eu estou preocupado é com o usuário”.

Leia a entrevista

Conjur – Por que o senhor decidiu escrever um livro defendendo a liberação do uso de drogas?

Rebello Filho – Uma das razões são meus filhos adolescentes. Tenho três filhos nessa faixa etária. É sempre um incentivo a gente mostrar um outro lado dessa história. No entanto, o principal motivo é que eu milito na área criminal e já vi muita injustiça acontecer por causa dessa diferença entre crime de tráfico e crime de uso de entorpecentes. Além disso, perdi mais de dez amigos que morreram por causa do uso de drogas. Eu sempre pensei que um dia iria escrever um livro com a visão de alguém que nunca usou. Queria contar como consegui escapar, falar do que pode ter contribuído para que eu escapasse, apesar de ter convivido de perto, a vida inteira e principalmente na adolescência, com o uso de substâncias entorpecentes.

Conjur – O senhor nunca usou?

Rebello Filho – Nunca usei nem experimentei. Eu andei numa turma muito barra pesada em Copacabana e mesmo assim sempre escapei. Nunca sequer provei maconha, cocaína. Não bebo, não fumo. Não consumo drogas lícitas nem drogas ilícitas. E nunca entendi essa diferença.

Conjur – O senhor é favor da liberação do uso de drogas?

Rebello Filho – Eu sou a favor da liberação de qualquer droga. Independentemente de eu ser ou não favorável, de ser ou não crime, as pessoas vão consumir do mesmo jeito. Isto está na história do ser humano. Isso vem de milhares de anos. Não é de agora. A única diferença de centenas de anos atrás para agora é que alguém resolveu que determinados tipos de drogas não podem ser usados, é crime, e outras, podem. Eu não consigo entender isso. Já procurei pessoas que pudessem me explicar – médicos, juristas, psiquiatras, ministros –, mas ninguém me dá uma explicação lógica. Por exemplo: por que o álcool que está enquadrado na lei de crimes não é proibido. Porque a lei diz o seguinte: usar ou traficar substância entorpecente que possa causar dependência física ou química é crime. O álcool é substância entorpecente que pode causar dependência, e causa. Então por que ele não é proibido e a maconha é? E a maconha tem muito mais dificuldade em causar dependência do que o álcool. E ela é muito menos entorpecente do que o álcool.

Conjur – Como o senhor analisa a legislação brasileira que trata desse assunto?

Rebello Filho – Na minha opinião, a legislação, assim como o nosso comportamento, e eu me incluo aí, é hipócrita. Eu sou advogado de dezenas de rapazes, de adultos, que compraram droga para consumir com a namorada, com os amigos, e foram acusados de tráfico de entorpecente. Isso porque a lei diz que você dar, fornecer gratuitamente, trazer consigo, emprestar, isso é tráfico. No ano passado, eu defendi um garoto de 18 anos que viajou de carro para Cabo Frio (RJ), fumou maconha, chegou lá e como sobrou um pedacinho de cigarro, ele deu para um amigo. A polícia deu uma batida na casa, encontrou aquele cigarro de maconha, perguntou de quem era e o amigo disse que tinha sido o meu cliente que tinha dado. A pessoa que ficou com o cigarro para usar não foi nem processada. O meu cliente foi preso por tráfico de entorpecente por causa de um cigarro de maconha que ele deu para o amigo.

Conjur – Ele ficou preso?

Rebello Filho – Ficou. Ele foi acusado de tráfico e ficou quase três meses preso. Até o juiz se tocar que ele não era traficante e desclassificar para o uso.

Conjur – No seu livro, o senhor fala sobre a questão da corrupção policial e as conseqüências disso na aplicação da lei.

Rebello Filho – Esse é o lado mais perigoso dessa história. Porque fica a critério da autoridade policial dar a primeira definição jurídica ao fato. O que acontece muitas vezes é que se numa situação como a vivida pelo meu cliente o policial fosse corrupto, ele diria: “olha aqui, eu vou te enquadrar no uso e você me dá uma vantagem qualquer”. E se o rapaz não tiver para dar, o que acontece? E isso ocorre várias vezes. O policial vai enquadrá-lo como tráfico de entorpecentes. Porque além da hipocrisia, além da corrupção, existe a maldade. Muita gente continua sendo presa ou extorquida por causa dessas falhas gritantes na lei.

Conjur – O que o senhor propõe?

Rebello Filho – O uso de substância entorpecente tem que ser tratado pela área de saúde. Seja pelo ministério da Saúde, pelas secretarias de saúde. Quem tem que ver isso não é juiz nem promotor. Eles não têm preparo para avaliar isso. Tem preparo para julgar, para avaliar leis. A lei não pode tratar de usuário. Ela tem que tratar do traficante. Uma figura que vai continuar existindo de qualquer forma.

Conjur – Qual seria, então, a definição de traficante?

Rebello Filho – O traficante vive do comércio da droga. Não é o garoto que pegou no morro para fumar com os amigos. Isso não é tráfico. Ele não está obtendo vantagem pecuniária. O traficante vive da mercancia, do mercado do tráfico, da compra e venda. É totalmente diferente. A polícia sabe quem é traficante e quem não é. Só que em razão dessa lei absurda que está aí, eles continuam prendendo garotos que não são traficantes. São usuários que compraram e dividiram com os amigos. E o que eu ouço de juízes e promotores até hoje? Lei é lei. Dura Lex Sed Lex. Outro dia mesmo, no Conselho Penitenciário, eu ouvi de um promotor de Justiça que para o usuário essa lei era muito branda. Que o usuário tinha que estar na cadeia juntamente com o traficante. Essa mentalidade ainda existe. Mas nada impede que aquele mesmo promotor que teve aquela opinião saia dali e tome um porre. Eu não entendo isso. A única explicação que me dão é que álcool paga imposto. Eu quero que me digam qual é a diferença. A hora que acabarem com a maconha e a cocaína, inventa-se outro tipo de droga. Vão produzir drogas sintéticas. Hoje em dia tem o ecstasy, tem uma nova que é feita de fita cassete. A criatividade do ser humano para se dopar existe desde que o mundo é mundo.

Conjur – Mas afinal, o que o senhor defende de fato: uma lei que apenas diferencie o traficante do usuário ou a simples liberação? Ou seja, seria possível comprar maconha ou cocaína como se compra álcool?

Rebello Filho – Uso de substâncias entorpecentes sai da lei. Isso é caso de hospital público: federal, estadual e municipal. E quem vai cuidar do traficante é juiz e promotor. Pode trancar na cadeia e jogar a chave fora que eu concordo. Esquece o usuário. O usuário, se ele estiver usando na rua, a polícia não pode prender. A minha sugestão é que no futuro o poder público, através de suas clínicas credenciadas, de seus hospitais credenciados vendam essas substâncias. O que ele apreender na mão dos traficantes, pega aquela mercadoria, se ela for boa, e vai negociar.

Conjur – O senhor está falando do usuário dependente?

Rebello Filho – Não. Estou falando de todos. Do usuário social, do esporádico, do dependente. Se ele quiser comprar a maconha dele, ela vai no lugar certo. Na farmácia, na clínica, no hospital. Isso teria, claro, que ser regulamentado. Qual o ponto positivo nisso tudo? A partir do momento que não é mais crime, esse usuário pode comprar em um lugar credenciado, e pode receber um panfleto educacional como acontece com o cigarro. As pessoas descobriram que o cigarro é uma substância que causa dependência e mata. Fora as doenças decorrentes – todos os tipos de câncer. Hoje em dia não se vê mais anúncio de cigarro na televisão. O álcool mata mais do que todas as outras drogas. Talvez menos do que o cigarro. As crianças estão começando a beber com 10, 12 anos. Está nas estatísticas. Maconha, cocaína, vai tudo pagar imposto também. Só que vai possibilitar a aproximação do usuário. Ele vai ser mais facilmente educado, vai mais facilmente receber a mensagem negativa com relação àquela droga, vai mais facilmente se submeter a um tratamento. Todos os usuários dependentes que eu conheço têm medo de se credenciar numa clínica, de se inscrever em um programa. Por quê? Ele não quer se identificar. Afinal, ele é um criminoso. Então, no momento que deixar de ser crime, o usuário se aproxima. Eu estou pouco me lixando para o traficante. Eu estou preocupado é com o usuário.

Conjur – O senhor acredita que a sociedade aceitaria uma proposta como esta sua?

Rebello Filho – Dificilmente. Nós temos um Poder Judiciário muito retrógrado. A gente vê jovens promotores e juízes com esse pensamento arcaico. Assim como eu canso de ver juiz que eu sei que fumou maconha, cheirou cocaína, que eu conheço, e que hoje condena um usuário na maior tranqüilidade. Qual o argumento que ele dá: “mas eu não fui preso”. Não dá para aceitar esse tipo de coisa. Nós temos dogmas religiosos, religião nenhuma aceita isso. Eu sei que essa minha posição é perdida. Vai ser muito difícil combater esse pensamento já arraigado contrário ao qualquer liberação, mas de uma coisa eu tenho certeza: o sistema atual que combate entorpecente é completamente falido. Ninguém tem dúvida disso. Ninguém se recuperou indo para a cadeia. Isso é indiscutível. O sistema prisional brasileiro é falido e ninguém procura opções. Eu tenho certeza, e talvez eu nem esteja vivo para ver, mas esse pensamento vai mudar em relação ao consumo de drogas. Primeiramente porque é um direito de escolha, é uma opção, é garantia constitucional essa liberdade de escolha, e o uso de entorpecentes é no máximo uma auto-lesão.Você não prejudica ninguém usando entorpecente. Muito pelo contrário. Você prejudica muito mais bebendo álcool e dirigindo do que fumando maconha ou cheirando cocaína.

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