Show policial

Operações da PF são mais show que combate ao crime

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25 de junho de 2005, 11h28

As recentes operações Polícia Federal são mais eficazes como um show que atende a setores da mídia sensacionalista do que no combate ao crime. “Numa operação que acontece num escritório, onde a polícia sabe que não tem ninguém armado e chega com um aparato bélico gigantesco, só podemos achar que isso se presta ao show e não à operação em si”.

Essa é a opinião de Luiz Flávio Borges D´Urso, presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, em entrevista à equipe da Consultor Jurídico, na redação da revista.

Para D´Urso, as operações podem ter um sentido político. “Existe uma mensagem que é passada nessas operações: o governo não admite corrupção, o governo reage de forma eficaz. Todavia, estamos verificando que não precisaria desta megaoperação, bastaria o governo olhar dentro dos seus quadros”, afirma.

O presidente da OAB de São Paulo reconhece que há casos em que advogados são usados para acobertar crimes de seus clientes, se tornam cúmplices, mas afirma que essa é uma fatia ínfima da classe. Segundo ele, um levantamento feito no começo de sua gestão à frente da Ordem, mostrou que havia 17 mil processos disciplinares contra advogados no estado.

“Nesses 17 mil processos, havia apenas 3 mil advogados envolvidos. Temos em São Paulo cerca de 250 mil advogados. Então estamos falando de 1% do total que se envolveu em problemas disciplinares”. Ele ressalta que o número inclui aqueles que atrasaram a devolução de um processo, fato considerado infração disciplinar.

Por isso, D´Urso defende a reforma do Código de Ética da OAB: “Eu não concebo que um advogado que atrasou uma semana na entrega de um processo seja punido pelo Tribunal de Ética, quando o juiz e o promotor ficam com um processo pelo tempo que quiserem, às vezes sem dar satisfação nenhuma”.

Na entrevista – da qual também participaram o diretor de redação da ConJur Márcio Chaer e o editor executivo Maurício Cardoso – o presidente da OAB paulista discorreu sobre a qualidade de ensino nas faculdades de Direito, o alto índice de reprovação no Exame de Ordem e defendeu a presença obrigatória de advogados nos Juizados Especiais.

Leia a entrevista

Conjur — A invasão de escritórios é a principal preocupação da advocacia atualmente. Quantos escritórios foram invadidos nos últimos tempos em São Paulo?

D’Urso — Pelos nossos cálculos foram 15. Primeiro foi aquela tentativa de violação no escritório Demarest e Almeida. O objetivo era o presidente do Banco Central, não tinha nada contra o escritório. Mas o Ministério Público pediu que entregássemos o cadastro de todos os advogados do escritório. O caso foi encerrado porque o ministro Marco Aurélio indeferiu o pedido. E, agora, no escritório do Luiz Olavo Baptista, professor titular da USP, profissional renomado, de repente, por causa de um cliente, a Schincariol, ele é envolvido nessa operação, e tem também o escritório violado, os arquivos levados.

Conjur — Quais são os limites e os critérios que devem ser adotados nessas circunstâncias?

D’Urso — Precisa haver um equilíbrio. Para oferecer uma resistência ao poder do Estado, o legislador dota o cidadão de alguma proteção. Isto está no artigo 5º da Constituição, que estabelece as garantias individuais. A Constituição estabelece também a situação do advogado como um ente indispensável à administração da Justiça e traz sua inviolabilidade. O Estatuto da Advocacia estabelece a inviolabilidade dos escritórios, arquivos, dados, e comunicação do advogado.

Conjur — Mas a inviolabilidade não é absoluta.

D’Urso — Não, a inviolabilidade não é absoluta, mas deve ser vista como a regra que comporta a exceção. A exceção ocorre quando o advogado é alvo de investigação. Nesse caso, e havendo um mínimo necessário de motivação para o pedido, que se vá ao escritório buscar algo numa medida de exceção, que é a busca e a apreensão. Esse pedido é judicial. Se faz a um juiz que deve apreciar algo indispensável no sistema, a justa causa. Se não houver um embasamento legal para a exceção, o juiz deve indeferir. Medidas de exceção devem ser circunstanciadas, não podem ser genéricas. Então a ordem, quando é contra um advogado, é para que se vá ao escritório dele, buscar e apreender algo definido, aquele documento, aquele objeto.

Conjur — Os recentes mandados não estão bem fundamentados?

D’Urso —O que estamos assistindo hoje é uma situação completamente diversa disto, porque os requerimentos que vem da Policia Federal ou do Ministério Publico pedem a busca e a apreensão num escritório de advocacia, cujo titular ou cujos advogados não são alvos de investigação. São mandatos de busca e apreensão deferidos genericamente, para se apreender tudo o que se possa interessar na investigação. Na hora de cumprir levam tudo, levam todos os computadores, todos os arquivos. Isso traz conseqüência. A primeira delas é que o escritório pára, não tem como trabalhar. Segundo, traz dano à imagem do escritório para seus clientes e eventuais futuros clientes. Terceiro é a quebra do sigilo, não apenas daquele cliente, mas também de todos os demais, porque na hora que levam tudo, está tudo devassado. E quarto ponto, que é o eixo de tudo, é que esta busca, ao levar documento de cliente do arquivo do escritório, viola toda a estrutura de equilíbrio que o sistema traz. Não é por que temos ordem judicial para uma operação como essa que ela passa a ser legal, muito menos legítima. Um exemplo clássico disto é que houve um tempo em que, por ordem judicial, se prendiam e queimavam judeus. Nem por isso aquela ordem judicial era legítima.


Conjur — Não é perigoso levar isso ao Conselho Nacional de Justiça? E se o CNJ legitimar ou validar as invasões?

D’Urso — O Conselho Nacional de Justiça representa um órgão novo que tem não apenas a finalidade de traçar políticas públicas para a Justiça. É também um organismo máximo disciplinar. Temos de apelar a esse aspecto para limitar a conduta de alguns juízes que, ao conceder ordens desta forma, sem justa causa, ao arrepio da lei, precisam de alguma forma responder por isso. Eu vejo um caminho mais à frente, que é exatamente a lei que criminaliza a violação das prerrogativas. Flagrantemente, essas operações violam prerrogativas profissionais. Se nós tivermos aprovado esta lei, passamos então a responsabilizar pessoalmente a autoridade que determina e a que cumpre uma diligência como essa.

Conjur — A Polícia Federal consultou a OAB em cada um desses casos?

D’Urso — Quando as operações começaram a Polícia Federal me pediu para destacar alguém da Ordem para acompanhar as diligências. Eu perguntei em qual escritório seria feita a diligência. Não podiam revelar. Contra qual advogado? Não podiam revelar. Qual era a investigação? Não podiam revelar. Se o alvo da investigação era um advogado ou seu cliente? Não podiam revelar. Isso cria uma dificuldade e corremos o risco de o representante da Ordem estar ali legitimando uma operação, que pode ser totalmente ilegal. Então levei o assunto ao Conselho, que determinou que não mandaríamos representantes da Ordem para acompanhar diligências que visavam invadir escritórios de advocacia.

Conjur — Nem todas as ordens de invasão vêm do estado onde ela está acontecendo, não é?

D’Urso — As ordens judiciais para invadir escritórios em São Paulo, na grande maioria, não são do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. São de tribunais de outros estados que, ao determinar estas diligências, violam o principio de jurisdição e de competência, já que não são expedidas cartas precatórias para serem cumpridas aqui. Então, emitem a ordem e organizam a operação policial em outro estado, viajam para cá, invadem o escritório, recolhem tudo e voltam para o estado de origem. Aí estipulam uma data para um advogado comparecer na abertura das caixas. Ou seja, tudo irregular.

Conjur — Existe um movimento no sentido de responsabilizar o ministro da Justiça pelas invasões dos escritórios?

D’Urso — Reunimos todas as lideranças em São Paulo com o ministro da Justiça. Ele se mostrou sensível, afinal, é um ex-presidente da Ordem, advogado criminal, sente como nós, ou pelo menos sentia. A reação dele foi de sensibilidade e solidariedade, afirmando que iria regrar a forma das diligências para que não se cometessem excessos.

Conjur — Quem se nega a cumprir uma diligência não está cometendo um ato ilícito?

D’Urso —Existe dispositivo na lei que isenta o agente público de responsabilidade para não cumprir ordem manifestamente ilegal. Então, se o coronel mandar o sargento matar alguém, é uma ordem manifestamente ilegal, o sargento pode se recusar a cumprir.

Conjur — O que mais o preocupa nessas operações?

D’Urso — Me preocupa, como advogado criminal, a forma como essas operações têm sido feitas e divulgadas. Me assusta que uma operação do Estado, que tem como alvo um crime de sonegação fiscal, mobilize uma máquina tão gigantesca, quando na verdade esta questão é exclusivamente de tributo. Essa operação (Operação Cevada) em si não é para prender as pessoas, para puní-las, já que não temos uma sentença definitiva. Quando a prisão vem depois de uma sentença definitiva, é para punir. Toda prisão que antecipa a sentença definitiva é uma prisão processual, para interesse da investigação. A questão é: precisa-se prender neste tipo de investigação? A prisão é indispensável para o processo? Esse é o problema.

Conjur — O senhor diria que as operações têm fins políticos?

D’ Urso — Como professor de Direito Penal e advogado criminalista eu rejeito o campo criminal na esfera tributária. Questiono que o Estado reaja diante de alguém que não lhe pagou o tributo usando o campo penal para tentar coibir aquele indivíduo a pagar o que deve. Este é um instrumento muito poderoso, quando o Estado tem outros. Deve ser sempre lembrada a idéia de que o Direito Penal é o último esteio que o Estado tem pra reagir a algo que ele quer impedir. Nesta linha, o Estado tem mecanismos para reagir e para alcançar o eventual tributo que não lhe foi pago. Você tem a penhora, tem o arresto, tem mecanismos que podem até fechar uma empresa. Eu reajo a isso como advogado criminal. Nem todos que devem tributos são criminosos. No Brasil você tem que fazer uma distinção entre o inadimplente e o sonegador. O inadimplente é aquele que quer pagar e não pode. O sonegador é aquele que pode e não quer pagar. A lei não os distingue. Devendo o tributo, todos serão tratados como sonegadores, portanto, como criminosos.


Conjur — No ápice do escândalo do mensalão, você diria que a intenção da Operação Cevada é política, para abafar outros escândalos?

D’Urso — Olha, a Polícia Federal cresceu em ação, em equipamento. O que me preocupa são as ações que estão fora dos limites. A megaoperação pode existir, mas não pode ter uma roupagem de show. Quando você vai prender uma criatura, que concorda em ser preso, não há porque algemá-la. A algema é um instrumento de contenção, quando existe resistência. A algema é um símbolo e o seu uso indiscriminado faz parte do show. Numa operação que acontece num escritório, onde a polícia sabe que não tem ninguém armado e chega com um aparato bélico gigantesco, só podemos achar que isso se presta ao show e não à operação em si.

ConJur — O show tem um sentido político?

D’Urso — Eu acho que o show atende a vários segmentos. Atende a uma ânsia da população. Tem uma finalidade também de mostrar uma grande organização policial, um aparelhamento policial. Atende também setores da mídia sensacionalista. Tem uma finalidade política? Pode ter. Existe uma mensagem que é passada nessas operações: o governo não admite corrupção, o governo reage de forma eficaz. Todavia, estamos verificando que não precisaria desta megaoperação, bastaria o governo olhar dentro dos seus quadros.

Conjur — Mas há casos em que existem advogados envolvidos também, acobertando clientes. O que o senhor diz disso?

D’Urso — Quando eu assumi a presidência da Ordem, estavam correndo 17 mil processos disciplinares contra advogados, em São Paulo. Nesses 17 mil processos, havia apenas 3 mil advogados envolvidos. Temos em São Paulo cerca de 250 mil advogados. Então estamos falando de 1% do total que se envolveu em problemas disciplinares. Esse dado inclui tanto os que se atrasaram na devolução de um processo como aqueles que deixaram de ser advogados e se transformaram em comparsas, esses que compram sentenças, que traficam droga, que formam com o crime organizado. Esse grupo é 1% e nós temos, conseqüentemente, aproximadamente 99% de gente séria, trabalhadora, honesta, que observa a ética.

Conjur — O Código de Ética precisa ser reformado?

D’ Urso — Precisamos reabrir a discussão do Código de Ética. Eu não concebo que um advogado que atrasou uma semana na entrega de um processo seja punido pelo Tribunal de Ética, quando o juiz e o promotor ficam com um processo pelo tempo que quiserem, às vezes sem dar satisfação nenhuma. Que infração ética tem em atrasar na devolução de um processo, diante dessa realidade que nós temos aí? Não vejo.

Conjur — O Código, de certa forma, proíbe o advogado de dar entrevistas. Ele não pode falar sobre o caso que está patrocinando. Isso não vai contra o artigo 5º da Constituição, que prevê o direito a informação da sociedade e a liberdade de expressão?

D’ Urso — Para informar sobre o caso em si, ele está liberado, não há problema ético. O que ele não pode fazer é usar como propaganda, objetivando captação de clientela. O Código proíbe que o advogado dê entrevistas avaliando casos concretos. Em primeiro lugar por proteção de mercado. Além disso, se tem o cuidado, para preservar a classe, de impedir que um advogado se manifeste numa causa onde outro advogado já esteja atuando.

Conjur — Neste caso não se coloca o interesse individual do advogado acima do interesse público? Afinal, todo mundo se interessa por uma segunda opinião?

D’Urso — É diferente, porque quando você escolhe um profissional, deve existir uma premissa de confiança. A escolha do caminho jurídico da causa é do advogado, não é do cliente. O advogado tem de ter a liberdade de escolher por onde vai. No momento que você proíbe que outro advogado se manifeste sobre aquela causa é exatamente para preservar esta confiança que o cliente deposita no seu advogado, sob pena de conturbar esta relação. Portanto, isso não é apenas para preservar o advogado, é para preservar o cliente e sua defesa.

Conjur — Para o senhor, essa regra atende mais a conveniência do cliente do que a do advogado?

D’Urso — Eu acho que é uma regra que harmoniza esta relação. Mesmo tendo uma vedação, na prática acontece de o cliente ir a outro profissional, sem revelar que já tem um advogado. Ele extrai uma orientação e depois começa a questionar a orientação do advogado que está conduzindo o caso.

Conjur — O senhor defende que se preserve a independência do advogado, mas falou que o Estado deveria interferir na independência jurisdicional do juiz, estabelecendo limites ou restringindo a ordem de busca e apreensão.

D’Urso — O juiz tem total liberdade e independência para decidir, dentro da lei. Ele pode dizer: concedo ou não concedo. Não há nenhuma possibilidade de se restringir a independência do juiz, ele tem a liberdade dentro da lei, como o advogado também.


Conjur — Um recurso em outra instância não resolveria o problema do juiz que age em desacordo com a lei?

D’Urso — Se nós tivéssemos rapidez no sistema, talvez. Mas o sistema é lento e aí o recurso se apresenta ineficaz. As ordens de busca e apreensão num escritório de advocacia, geralmente, são de processos que estão sob segredo de Justiça, inclusive de forma ilegal, impedindo que os próprios advogados, com procuração nos autos, que têm direito por lei a ter acesso, não consigam ver os processos. O advogado só tem ciência daquela operação na hora em que ela está acontecendo. Não há tempo para buscar uma liminar para impedir esta violência.

Conjur — Os policiais da Operação Cevada chegaram junto com a imprensa nos escritórios e na casa dos dirigentes da Schincariol. Isso é normal?

D’Urso — Isso, como regra, tem acontecido.

Conjur — A Schinchariol chegou a emitir nota reclamando que a imprensa teve acesso aos autos da operação, mas os próprios advogados da empresa não tiveram.

D’Urso — Um advogado foi ao Rio de Janeiro tentar um Habeas Corpus para os dois advogados que foram presos em Sorocaba (interior de São Paulo). Ele me ligou de lá dizendo que não conseguia instruir o Habeas Corpus porque não lhe davam acesso aos autos. O HC foi indeferido, pois carecia dos documentos indispensáveis. É um absurdo porque essa regra lastimável, esse segredo de Justiça, é ilegal. O que existe é o artigo do Código do Processo Penal, que fala do sigilo das diligências. É necessário que a operação seja sigilosa, senão perde o efeito. No caso de processo, está previsto em lei o sigilo de Justiça que pode ser decretado pelo juiz para impedir que terceiros tenham acesso. Nesse caso, quem pode ter acesso é o Ministério Publico, o juiz e o advogado legalmente constituído, aquele que tem procuração. E como é que está funcionando hoje? Tem inquérito com segredo de Justiça também para o advogado constituído. Qual é o fundamento legal de tudo isso? Não existe.

Conjur — E qual é a posição da OAB paulista diante dessas situações?

D’Urso — A OAB e os advogados, em hipótese alguma, pretendem impedir investigação. A idéia é que todos os crimes sejam investigados e que as pessoas que tenham responsabilidades sejam punidas. Mesmo que um suposto autor seja advogado, a classe tem interesse nessa apuração. E se ele for o culpado, vai ser responsabilizado dentro da Ordem, pelo Tribunal de Ética, e fora dela, pela Justiça. Nós nos insurgimos justamente contra violações.

Qualidade do ensino

Conjur — Falando agora da qualidade do ensino nas faculdades de Direito. Um caso que chama atenção é o resultado deste último Exame de Ordem, com o pior índice de aprovação da história da prova.

D’Urso — O quadro é visto pela Ordem com tristeza e preocupação. O Exame de Ordem nasceu em 1974 porque àquela época já se verificavam problemas na qualidade do ensino jurídico. Foi um mecanismo que a Ordem criou para proteger a classe e, conseqüentemente, proteger o cliente, o cidadão. Por esse exame se verifica se determinado bacharel tem as condições mínimas para ingressar no mercado de trabalho. No dia seguinte da conquista de sua carteira da Ordem, ele já pode defender desde uma causa na primeira instância até fazer uma sustentação no Supremo Tribunal Federal. Está habilitado a advogar plenamente e terá em suas mãos o patrimônio, a honra, a liberdade, a vida do seu cliente.

Conjur — Ouvimos algumas pessoas reclamarem da dificuldade da prova. Ela é realmente muito difícil?

D’Urso —O Exame de Ordem não tem vagas determinadas. Ele pode aprovar 100% dos candidatos. Não é um exame que tem pegadinha. É um exame criterioso, que exige, na primeira fase, em perguntas tipo teste, que o candidato acerte pelo menos 46 das 100 questões. A segunda fase é mais difícil. Diante de um problema real, um caso concreto, o candidato, como se estivesse em seu escritório, mediante consulta, tem de direcionar qual a ação, qual a medida que ele vai adotar e redigir a peça inicial desta medida. Este é um pedaço do exame. O outro pedaço são quatro questões objetivas.

Conjur — Então, não há problemas.

D’Urso — O exame tem alguns problemas. O primeiro deles é que é feito por pessoas, por criaturas humanas que podem errar, podem trazer uma pergunta que tenha dupla interpretação, mal formulada. Quando a Ordem detecta estes erros, ela anula a questão, para que ninguém saia prejudicado. A idéia não é prejudicar ninguém, é avaliar.

Conjur —Pode haver muita variação de correção de professor para professor? Qual é a parte mais importante desta prova?

D’Urso — A segunda etapa tem um caráter mais subjetivo. Para se verificar a propriedade de uma peça, a redação, a argumentação, a fundamentação, entra um critério de subjetividade. Por mais que você tenha uma diretriz, há pequenas variações de avaliação dependendo do professor que corrige a prova. Se queremos ter uma peça prática, vamos ter que aprender a trabalhar com esta subjetividade.


Conjur — A OAB pretende reduzir essa subjetividade?

D’Urso — Para restringir este leque de subjetividade na correção da segunda fase fizemos uma pequena alteração. Antes, a peça prática valia oito pontos e as quatro perguntas teóricas meio ponto cada uma. Se o indivíduo acertasse as quatro perguntas ele tinha dois pontos e precisava de mais quatro na peça prática, porque a nota para aprovação é seis. Portanto, o grau de subjetividade era gigantesco. As perguntas, no âmbito da avaliação, são muito importantes, pois por meio das respostas verifica-se se aquele candidato sabe consultar e responder adequadamente. A nossa gestão fez uma alteração para valorizar as perguntas e diminuir o grau de subjetividade na correção da peça, atribuindo um ponto para cada pergunta e seis pontos para a peça.

Conjur — Então o senhor diria que a prova não é difícil. Os alunos é que estão despreparados?

D’Urso — Os índices de reprovação revelam um problema na qualidade de ensino. Agora, não são todos os reprovados que não estão preparados para ingressar no mercado de trabalho. Há uma parcela que teve que enfrentar um tema na prova que não dominava. Não é que ele não esteja preparado, não é que a qualidade do ensino foi ruim, é que naquele caso específico ele não teve sorte, não foi bem naquela prova. E há uma parcela dos alunos que fica prejudicada pelo nervosismo. Isso faz parte de um processo, do mito de que o Exame de Ordem é para reprovar, para fazer pegadinha, coisa que interessa ao mercado que explora a preparação ao exame. Por conta disso, nós colocamos a idéia do treineiro, para enfrentar essa dificuldade das pessoas que ficavam nervosas. Essa iniciativa foi apoiada pelo Brasil inteiro, pelos estudantes e pelos diretores acadêmicos. Mas o Conselho Federal interpretou que estaríamos autorizando estudantes de Direito a prestar Exame de Ordem e cassou a figura do treineiro.

Conjur — O que ranking das escolas significa para o mercado? As escolas públicas estão desaparecendo e as chamadas fábricas de diplomas tendem a dominar o mercado. Qual é a sua avaliação?

D’Urso — Nós estamos com, mais ou menos, 800 faculdades de Direito. É muito? Se comparado com os Estados Unidos, que tem 170, é muito. Agora, é ruim ter 800 faculdades de Direito no país? Considero que não, desde que as 800 preparassem bem os profissionais e tivessem compromisso com o ensino. Isso significa uma elevação do conceito geral da população, que têm acesso ao nível superior numa área importante. Trata-se de uma área que não despeja só advogados no mercado, só carreiras jurídicas, mas é uma área complementar de muitas outras. Se essas faculdades todas preparassem bem, a quantidade não seria problema. Mas isso não retrata a verdade, muitas delas não preparam bem.

Conjur — O que a Ordem pode fazer em relação a isso?

D’Urso — O mínimo que a faculdade precisa ter é uma sede, uma biblioteca e um corpo docente qualificado. Então, nós dividimos em as faculdades três blocos. As que não oferecem condições mínimas, conseqüentemente não têm compromisso com o ensino, precisam ser fechadas. Mesmo sendo autorizadas pelo MEC, a nossa luta é para fechá-las. Aí você tem outro bloco, que são as faculdades que têm compromisso com o ensino, têm uma boa instalação, têm biblioteca, professores titulares que dão aula e têm uma grade curricular adequada, mas chega o Exame de Ordem e o estudante não passa. Estas nós queremos ajudar. Vamos chamá-las para dialogar, para ver o que esta acontecendo, se é a carga horária, se é a exigência, enfim, vamos diagnosticar qual é o problema e vamos ajudar a solucionar. E tem o terceiro bloco que são as faculdades que, tradicionalmente, sempre aprovam bem, e que podem, inclusive, servir de modelo para as outras.

Conjur — A enxurrada de formados que entra no mercado todos os anos não é preocupante?

D’Urso — Não. Dos últimos 50 anos, este é o momento mais promissor para a carreira, pela abertura de novos mercados. Tem lugar para todo mundo. Aliás, esta faltando profissional no mercado. Quanto mais a sociedade fica complexa, a população aumenta, as relações entre as pessoas geram relações jurídicas, os negócios aumentam. Em tudo há uma relação jurídica, que para ser dirimida precisa do advogado. Hoje, por exemplo, nós temos um Direito da informática, que meu pai, há 50 anos, nem sonhava com isso. Assim é com as telecomunicações, Direito esportivo, franchising, terceiro setor, meio ambiente. São campos de atuação absolutamente novos, que estão em expansão e precisam de profissionais especializados. O mercado não está saturado para os especialistas. A OAB não tem nenhuma preocupação em reserva de mercado, pelo contrário, quer estimular que esse pessoal se prepare melhor, se especialize para vir para o mercado. Quanto melhor preparada estiver essa turma que está chegando, a reação natural é elevar o conceito geral da profissão.


Conjur — Existe uma oferta de ensino nesta área de especialização?

D’Urso —Não, e esse é outro problema. Toda faculdade em que eu vou dar palestra, cobro da direção da faculdade. Meu pai se formou há 50 anos, eu há 23 e meus filhos, que estão cursando Direito hoje, têm as mesmas matérias que eu tive e as que meu pai teve. O mundo mudou em 50 anos, mas a formação do bacharel não. As faculdades precisam enfrentar isso, alterando a grade curricular, ampliando se for o caso. Precisam habilitar estes profissionais, não para ter um diploma, mas para serem inseridos no mercado de trabalho.

Conjur — É mais fácil para as particulares mudar a grade curricular?

D’Urso —Sim, porque estas faculdades além de ter uma mobilidade de administração maior, elas também tem um aspecto comercial de interesse, o que não é ruim totalmente ruim, eu não sou alguém que acha o lucro pecado. Acho que quem trabalha tem que ganhar dinheiro. O que nós esperamos dos empresários da educação é que eles tenham compromisso com o ensino, condições adequadas de ensino e que sejam fieis a esse compromisso. Ah, mas tem tantos mil alunos em determinada faculdade, isso é ruim? Se prepara bem, não é. O problema não está na quantidade de alunos e sim na qualidade da faculdade. Eu acho que a Ordem tem que entrar nisso.

Conjur — E a idéia de federalizar o Exame de Ordem?

D’Urso — São Paulo tem problemas com relação a isso. O Conselho Federal quer um exame só para o país inteiro, no mesmo dia. Isto é muito simples para o Acre, onde vão prestar apenas 200 candidatos. Agora, quando você tem um contingente de 30 mil candidatos, para mobilizar o estado inteiro, precisa de espaços no estado inteiro, articulados, reservados, com toda uma infra-estrutura. É uma estrutura de guerra, você tem que ter pessoas para preparar, para reservar os locais, para transporte, lanche. O exame unificado seria positivo? Talvez, aí nós temos outra preocupação. Hoje eu posso garantir que o sistema da feitura do exame é cercado de absoluto sigilo. Uma série de professores que fazem as perguntas e elas são selecionadas por uma só professora. Só ela tem acesso às perguntas da Ordem, ela leva para gráfica, acompanha a produção, e só ela sabe o que vai cair nessa prova. Na medida em que as provas circulem no território nacional, eu já não sei se teremos tanta garantia deste sigilo.

Mercado e ética

Conjur — Gostaríamos que falasse um pouco sobre a criação da Defensoria Pública em São Paulo.

D’Urso —A Ordem é amplamente favorável, é uma discussão constitucional que precisa ser cumprida por São Paulo. Houve uma falsa crença de que a Defensoria Pública poderia tocar no convênio de assistência judiciária, trazendo preocupação para alguns advogados. Isso não procede, nós temos no convênio de assistência, hoje, em torno de 45 mil advogados envolvidos. O número de defensores públicos que o estado contrataria seria algo em torno de 300, portanto, nenhuma conseqüência traria ao nosso convênio.

Conjur — Como em qualquer outra profissão, os advogados trabalham para ganhar dinheiro. Por que são proibidos de fazer propaganda?

D’Urso — Não há proibição. Agora, se você colocar ali “consultas grátis” ou “ganhei todas as causas”, fere a ética. A limitação existe para não trazer a idéia de que essa prestação de serviço é uma mera mercadoria, a idéia de não mercantilizar a profissão é a preocupação que o Código de Ética tem. Portanto, a propaganda é autorizada, mas com limites.

Conjur — Mas o Código de Ética impõe limitações excessivas, não?

D’Urso — Acho que o código precisa ser revisto. O advogado que manda um cartão para seus clientes desejando boas festas, por exemplo, e no cartão tem embutida a propaganda, pode ser punido. Isso é um exagero. Tivemos um caso concreto assim. Um escritório de advocacia trabalhista fez um cartão com uma mensagem de natal e o endereço do escritório. Na metade do cartão havia a figura de duas mãos se cumprimentando: uma do trabalhador e a outra do advogado. Houve uma denúncia no Tribunal de Ética, pois aquela propaganda poderia ser uma captação de clientela por mostrar aquela imagem e uma imagem colorida. Veja uma coisa, o Código proíbe cor na propaganda do advogado. Essa vedação é tão absurda que se eu colocar no meu cartão uma linha vermelha separando o nome do endereço, em tese, eu estaria cometendo uma infração ética.

Conjur — Existem projetos de lei no Congresso Nacional que determinam a presença obrigatória do advogado nos Juizados Especiais. Não restringiria o acesso daqueles que não podem pagar um profissional?

D’Urso — A nossa bandeira de gestão é: presença obrigatória de advogado em todos os processos. Todos e em todas as formas de composição de litígio fora do processo.


Conjur — Inclusive arbitragem?

D’Urso — Sim. Arbitragem, mediação, conciliação, tem de ser obrigatória a presença de um advogado. Em todos os processos, Justiça do Trabalho, Juizados Especiais. Quem pode contratar advogado sempre o faz. Quem não tem, tem o direito de ter assistência judiciária que o Estado fornece. Sem a presença do advogado, você cria um cidadão de segunda categoria. Porque quem pode sempre vai contratar advogado e aquele que não pode tem de descobrir sozinho os caminhos que precisa adotar. Isso é um desamparo total, um desequilíbrio. A assistência judiciária é um dever do Estado, principalmente para aquele que não pode pagar. Deixá-lo ao abandono é tirar a condição de proteção do seu direito, que ele sequer sabe qual é.

Conjur — Mas o Estado não está preparado para oferecer a assistência necessária.

D’Urso — Está. No caso de São Paulo existem 45 mil profissionais. Basta remeter o caso e ele tem a defesa técnica. Então o discurso é corporativo? Também, é um mercado de trabalho que a OAB quer recuperar para os advogados. Mas é mais do que isso, é exatamente a reação diante desse desamparo. A presença do advogado impede um mau acordo, impede que o indivíduo seja ludibriado. Impede que a outra parte se perca na hora de falar com o juiz. Geralmente, trata-se de gente simples, que não sabe se expressar em relação a um pequeno contrato que fez, por exemplo.

Conjur — Outro ponto polêmico é o quinto constitucional. Se tornar juiz sem fauer concurso nâo é um privilégio?

D’Urso — Não. Quando eu recebi aquele observador da ONU aqui, que estava fazendo um levantamento sobre o Judiciário, eu falei sobre o quinto constitucional e a reação dele foi altamente positiva. Nós temos os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O acesso do cidadão a essas esferas de poder se dá de forma cíclica. No Executivo e no Legislativo os candidatos são eleitos e ficam por um tempo. Passado esse tempo, um outro ciclo é estabelecido, ele pode ser reconduzido ou outro ocupa essa posição. Há uma dinâmica, uma oxigenação presente no Executivo e no Legislativo. No Judiciário o sujeito precisa ter garantias como vitaliciedade, inamovibilidade, etc. Essas garantias são para bem julgar, para lhe dar independência, mas falta o ciclo, falta a oxigenação. O sistema brasileiro criou um caminho para tentar oxigenar os tribunais, fazendo com que o tribunal não fosse só composto por aquelas pessoas que começam na carreira da magistratura e que vão morrer na carreira, mas que tivesse uma porta de acesso para outros, que também tivessem formação jurídica, que também tivessem a base para julgar, mas que não fossem exclusivamente dessa carreira. Na tentativa de se estabelecer um ciclo, criou-se, portanto, a figura do quinto constitucional. Um quinto de promotores e um quinto de advogados que são indicados para os tribunais. Esses promotores e advogados oxigenam o julgamento. A vivência deles, a experiência deles, contribui para o julgamento.

Conjur — Como é feita a escolha?

D’Urso — Abre-se um edital, qualquer pessoa habilitada se inscreve. Hoje é proibida a inscrição de conselheiros da OAB, mesmo que renuncie ao cargo. Passada a fase de inscrição, habilitação, impugnação e audiência publica, o conselho que tem a obrigação de escolher e votar. O voto é secreto e os seis mais votados integram uma lista. Desses seis, o tribunal que vai acolher o profissional escolhe três e, depois o governador do estado nomeia um. Então, não é a OAB que escolhe. Ela apenas faz parte do processo.

Conjur — Nós começamos a entrevista falando de prerrogativas. Hoje, há uma certa tensão entre juízes e advogados?

D’Urso — Não acho que existe tensão, com sinceridade. Eu me formei há 23 anos, eu nunca tive problema com um juiz, promotor ou delegado. Mas, da mesma forma que 1% da nossa categoria tem problemas, há um percentual de juízes e promotores que criam problemas, mas isso é a exceção. O que acontece é que essa pequena fatia cria muitos problemas. Juiz mal preparado, que passou no concurso da magistratura, existe? Sim.

Conjur — Assim como há faculdades que são fábricas de diplomas, há os cursos preparatórios para a magistratura, que ensinam como passar em concurso, mas não preparam o juiz.

D’Urso — Muitas vezes, é essa parcela de profissionais que tem problemas. Eles serão antagônicos, até pelo seu despreparo, pela sua fragilidade, eles têm uma conduta de prepotência por proteção, não dialogam. Agora, vá verificar, a maioria dos juízes tem uma relação de parceria com o advogado. Com o promotor acontece a mesma coisa. Eu fiz muito júri, tratava uma guerra com o promotor durante o julgamento e, depois, saíamos de lá bem, amigos, colegas. Essa relação não pode extrapolar os limites do processo. Então, eu não vejo tensão e a maioria da classe não vê. O que se detecta é a violação às prerrogativas, é o desrespeito, mas apenas por parte de alguns, que acaba atingindo muitos. Por isso há essa repercussão.

Conjur — Mas não há tensão nem quando associações de juízes saem em defesa dos que expediram os mandados que os advogados tanto criticam?

D’Urso — Não. Essa é uma posição corporativa, a associação sai em defesa daqueles que estão concedendo as ordens. Mas não há uma guerra institucional. Até porque eu tenho conversado com muitos juízes que censuram este tipo de mandato de busca genérico. Respeito a posição das entidades, mas gostaria de dialogar com seus dirigentes e verificar qual interpretação eles têm, por exemplo, da lei federal que determina a inviolabilidade dos arquivos, escritórios, correspondências. Como fica isso? Ah, mas a inviolabilidade não é absoluta. Não é. E nós não queremos que seja. Agora, a regra é a inviolabilidade e a quebra é exceção.

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