O que nos resta?

A democracia nos dá espaço para reagir à corrupçao

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24 de junho de 2005, 10h33

O interrogatório do deputado Roberto Jefferson na comissão de ética da Câmara, ocorrido no último dia 14, foi um espetáculo de horror. Não pela performance dos atores, que esteve perfeita, pois o interrogado tem o dom da oratória e da argumentação segura, mas pelo conteúdo daquilo que foi dramaticamente revelado.

Jefferson se apresentou como se tivesse ensaiado meticulosamente todas as palavras. Lançou dúvidas, fez acusações, defendeu-se como pode e, mesmo se auto-incriminando em determinados momentos, deixou no público a impressão de ser o menos pior dentre os piores, apesar da concorrência ser muito grande nesse aspecto. No dia seguinte, os jornais estamparam as declarações do deputado em matéria de capa e o colunista Marcelo Coelho definiu o evento de forma magistral: “um dos dias mais deprimentes da história política”.

A troca de agressões verbais entre os representantes do povo evidenciou ódio profundo entre eles e conduziu as discussões, por vezes, a aspectos pessoais irrelevantes para os fatos apurados, mas que atiram no lixo princípios elementares de decoro parlamentar.

As acusações proferidas por Jefferson são de extrema gravidade. Segundo ele, deputados receberam gordas mesadas para votar a favor do governo; o PTB recebeu quatro milhões do PT para a campanha de 2004 e o resumo de tudo seria o seguinte: um bom número de políticos somente funciona na base da chantagem e da corrupção. Se, ao final das apurações, restarem comprovados tais fatos, além daquilo que envolve as suspeitas de irregularidades nos Correios, haverá conseqüências imprevisíveis para a nação. A rigor, seria preciso, inclusive, anular tudo o que foi votado pela Câmara mediante propina, pois, como bem definiu Jefferson, “deputado comprado não pensa”.

Embora o mercado tenha reagido bem aos fatos do dia 14, pois o dólar chegou a subir, mas em seguida caiu e a bolsa de São Paulo operou em alta, não há motivo para otimismo. A análise de que Jefferson não conseguiu provar suas acusações, além de prematura, pode estar equivocada. As declarações prestadas oficialmente têm validade jurídica. A lei de combate ao crime organizado, só para citar um exemplo, beneficia o membro da quadrilha que delata os demais propiciando a identificação e a incriminação dos outros envolvidos e o desmantelamento da organização.

As razões pelas quais Jefferson resolveu trazer a público certos fatos escabrosos ainda não se encontram detalhadamente esclarecidas, mas suas alegações no sentido de que seria transformado em bode expiatório de um escândalo que envolve muito mais gente são plausíveis. De toda a forma, os desentendimentos no âmago do poder acabam se prestando a algo positivo, ou seja, expõem à nação a imensa degradação em que mergulharam muitos de nossos mandatários e possibilita a realização de reformas, bem como a punição de culpados. Resta, agora, à sociedade em geral pressionar para que as autoridades encarregadas investiguem com rigor todas as acusações proferidas.

Sob o impacto dos fatos, a primeira reação da população é o descrédito nas Instituições e o fortalecimento da idéia de que o Brasil não teria conserto. Justamente o governo do PT, que se elegeu com promessas de moralização da administração pública e de justiça social, surge como suspeito de protagonizar um episódio nada exemplar. Alega-se que o “mensalão” dos deputados era de 30 mil reais e eles ainda queriam aumentar para 60 mil, sendo que o salário mínimo é de 330 reais e o funcionalismo público não tem reajuste há tempos. Tendo de pagar tanta propina, evidentemente não sobra dinheiro para remunerar quem trabalha na saúde, na educação, na segurança pública, nas Forças Armadas, na aplicação da justiça, etc.

Não é possível admitir fatos escabrosos com naturalidade ou conformismo. Embora a tarefa de reagir eficazmente ao descalabro pareça grande demais para as limitadas forças da parcela idônea de nossa sociedade, sempre há algo que se pode fazer. No momento certo, os que quiserem se mobilizar verão que há espaço para isso, dentro dos parâmetros democráticos que lutamos tanto para ver implantados e que irão fornecer os suportes para as reivindicações populares.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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