Prova do crime

Carta anônima, por si só, não sustenta processo penal

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24 de junho de 2005, 8h37

Carta anônima só pode ser usada como prova quando ela for o próprio corpo de delito, como o pedido de resgate de seqüestro, por exemplo, ou quando a carta tiver sido escrita pelo acusado. O entendimento é do ministro Celso de Mello, em questão de ordem levantada no julgamento do deputado federal André Zacharow (PSB-PR) e de outras dez pessoas, entre elas o ex-prefeito de Curitiba Cassio Taniguchi, acusados de crimes contra a administração pública.

A carta anônima serve, segundo o ministro, como indício de existência do crime, que deve ser apurado “com prudência e discrição” pelo Poder Público. A investigação, segundo ele, deve ter o objetivo de conferir a verdade nos fatos denunciados anonimamente que, se comprovados, podem ser usados para instaurar o processo penal.

Também o Ministério Público pode, de acordo Celso de Mello, usar a carta anônima como parte da denúncia, desde que a acusação seja baseada em outros documentos e não apenas na carta.

Para o ministro Marco Aurélio, que levantou a questão de ordem, o processo deveria ser anulado pelo uso de carta anônima como prova do delito. Apesar de entender que o documento não basta como prova, Celso de Mello divergiu de Marco Aurélio e assim como os outros nove ministros decidiram pelo prosseguimento do processo. No caso concreto, no entanto, todos os acusados foram absolvidos.

Leia a íntegra do voto

11/05/2005

TRIBUNAL PLENO

INQUÉRITO 1.957-7 PARANÁ

VOTO

(s/ delação anônima)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Sabemos, Senhor Presidente, que o veto constitucional ao anonimato, nos termos em que enunciado (CF, art. 5º, IV, “in fine”), busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e na formulação de denúncias apócrifas, pois, ao exigir-se a identificação de seu autor, visa-se, em última análise, com tal medida, a possibilitar que eventuais excessos derivados de tal prática sejam tornados passíveis de responsabilização, “a posteriori”, tanto na esfera civil quanto no âmbito penal, em ordem a submeter aquele que os cometeu às conseqüências jurídicas de seu comportamento.

Essa cláusula de vedação — que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação das liberdades do pensamento — surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, § 12). Com tal proibição, o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo, viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele Estatuto Fundamental (JOÃO BARBALHO, “Constituição Federal Brasileira – Comentários”, p. 423, 2ª ed., 1924, F. Briguiet; CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, p. 713, item n. 440, 1918, Jacinto Ribeiro dos Santos Editor, “inter alia”).

Vê-se, portanto, tal como observa DARCY ARRUDA MIRANDA (“Comentários à Lei de Imprensa”, p. 128, item n. 79, 3ª ed., 1995, RT), que a proibição do anonimato tem um só propósito, qual seja, o de permitir que o autor do escrito ou da publicação possa expor-se às conseqüências jurídicas derivadas de seu comportamento abusivo.

Nisso consiste, portanto, a “ratio” subjacente à norma, que, inscrita no inciso IV do art. 5º, da Constituição da República, proclama ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (grifei).

Torna-se evidente, pois, Senhor Presidente, que a cláusula que proíbe o anonimato — ao viabilizar, “a posteriori”, a responsabilização penal e/ou civil do ofensor — traduz medida constitucional destinada a desestimular manifestações abusivas do pensamento, de que possa decorrer gravame ao patrimônio moral das pessoas injustamente desrespeitadas em sua esfera de dignidade, qualquer que seja o meio utilizado na veiculação das imputações contumeliosas.

Esse entendimento é perfilhado por ALEXANDRE DE MORAES (“Constituição do Brasil Interpretada”, p. 207, item n. 5.17, 2002, Atlas), UADI LAMMÊGO BULOS (“Constituição Federal Anotada”, p. 91, 4ª ed., 2002, Saraiva) e CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS (“Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/43-44, 1989, Saraiva), dentre outros eminentes autores, cujas lições enfatizam, a propósito do tema, que a proibição do anonimato — por tornar necessário o conhecimento da autoria da comunicação feita — visa a fazer efetiva, “a posteriori”, a responsabilidade penal e/ou civil daquele que abusivamente exerceu a liberdade de expressão.


Lapidar, sob tal perspectiva, o magistério de JOSÉ AFONSO DA SILVA (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 244, item n. 15.2, 20ª ed., 2002, Malheiros), que, ao interpretar a razão de ser da cláusula constitucional consubstanciada no art. 5º, IV, “in fine”, da Lei Fundamental, assim se manifesta:

“A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí porque a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. (…).” (grifei)

É inquestionável, Senhor Presidente, que a delação anônima, notadamente quando veicular a imputação de supostas práticas delituosas, pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais – igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional -, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.

O caso veiculado na presente questão de ordem suscitada pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO pode traduzir, eventualmente, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos.

Com efeito, há, de um lado, a norma constitucional, que, ao vedar o anonimato (CF, art. 5º, IV), objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade (como a honra, a vida privada, a imagem e a intimidade), buscando inibir, desse modo, delações de origem anônima e de conteúdo abusivo. E existem, de outro, certos postulados básicos, igualmente consagrados pelo texto da Constituição, vocacionados a conferir real efetividade à exigência de que os comportamentos individuais, registrados no âmbito da coletividade, ajustem-se à lei e mostrem-se compatíveis com padrões ético-jurídicos decorrentes do próprio sistema de valores que a nossa Lei Fundamental consagra.

Assentadas tais premissas, Senhor Presidente, entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina (DANIEL SARMENTO, “A Ponderação de Interesses na Constituição Federal” p. 193/203, “Conclusão”, itens ns. 1 e 2, 2000, Lumen Juris; LUÍS ROBERTO BARROSO, “Temas de Direito Constitucional”, p. 363/366, 2001, Renovar; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 220/224, item n. 2, 1987, Almedina; FÁBIO HENRIQUE PODESTÁ, “Direito à Intimidade. Liberdade de Imprensa. Danos por Publicação de Notícias”, in “Constituição Federal de 1988 – Dez Anos (1988-1998)”, p. 230/231, item n. 5, 1999, Editora Juarez de Oliveira; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 661, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina; EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, “Colisão de Direitos”, p. 94/101, item n. 8.3, 1996, Fabris Editor; WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, “Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade”, p. 139/172, 2001, Livraria do Advogado Editora; SUZANA DE TOLEDO BARROS, “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, p. 216, “Conclusão”, 2ª ed., 2000, Brasília Jurídica).

Tenho para mim, portanto, Senhor Presidente, em face do contexto referido nesta questão de ordem, que nada impedia, na espécie em exame, que o Poder Público, provocado por denúncia anônima, adotasse medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição” (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I/147, item n. 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millennium), a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, com o objetivo de viabilizar a ulterior instauração de procedimento penal em torno da autoria e da materialidade dos fatos reputados criminosos, desvinculando-se a investigação estatal (“informatio delicti”), desse modo, da delação formulada por autor desconhecido, considerada a relevante circunstância de que os escritos anônimos — aos quais não se pode atribuir caráter oficial — não se qualificam, por isso mesmo, como atos de natureza processual.


Disso resulta, pois, a impossibilidade de o Estado, tendo por único fundamento causal a existência de tais peças apócrifas, dar início, somente com apoio nelas, à “persecutio criminis”.

Daí a advertência consubstanciada em julgamento emanado da E. Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em que esse Alto Tribunal, ao pronunciar-se sobre o tema em exame, deixou consignado, com absoluta correção, que o procedimento investigatório não pode ser instaurado com base, unicamente, em escrito anônimo, que venha a constituir, ele próprio, a peça inaugural da investigação promovida pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público:

INQUÉRITO POLICIAL. CARTA ANÔNIMA. O Superior Tribunal de Justiça não pode ordenar a instauração de inquérito policial, a respeito de autoridades sujeitas à sua jurisdição penal, com base em carta anônima. Agravo regimental não provido.”

(Inq 355-AgR/RJ, Rel. Min. ARI PARGENDLER – grifei)

Vale referir, no ponto, o douto voto que o eminente Ministro ARI PARGENDLER, Relator, proferiu no mencionado julgamento:

“O artigo 5º, item IV, da Constituição Federal garante a livre manifestação do pensamento, mas veda o anonimato.

A carta anônima de fls. 3 e verso não pode, portanto, movimentar polícia e justiça sem afrontar a aludida norma constitucional.” (grifei)

É interessante observar que, na Itália, quer sob a égide do antigo Código de Processo Penal de 1930, editado em pleno regime fascista (art. 141), quer sob o novo estatuto processual penal promulgado em 1988 (arts. 240 e 333, nº 3), a legislação processual peninsular contém disposições restritivas no que concerne aos “documenti anonimi”, às “denunce anonime” ou aos “scritti anonime”, estabelecendo que os documentos e escritos anônimos não podem ser formalmente incorporados ao processo, não se qualificam como atos processuais e deles não se pode fazer qualquer uso processual, salvo quando constituírem o próprio corpo de delito ou quando provierem do acusado.

Revela-se expressivo, sob tal aspecto, o que hoje dispõe o vigente Código de Processo Penal italiano (1988), em seu art. 240, que tem o seguinte teor:

240. Documenti anonimi. – 1. I documenti che contengono dichiarazioni anonime non possono essere acquisiti né in alcun modo utilizzati salvo che costituiscano corpo del reato o provengano comunque dall’imputato.”

Como já assinalado, o velho Código de Processo Penal fascista (1930) continha dispositivo que também vedava a formal recepção, em sede de “persecutio criminis”, de escritos anônimos, determinando, quando se tratasse “di delazioni anonime” (art. 8º), a aplicação da cláusula limitativa inscrita no art. 141 daquele antigo estatuto processual penal:

141. Eliminazione degli scritti anonimi – Gli scritti anonimi non possono essere uniti agli atti del procedimento, né può farsene alcun uso processuale, salvo che costituiscano corpo del reato, ovvero provengano comunque dall’imputato.

Cumpre referir, neste ponto, o valioso magistério expendido por GIOVANNI LEONE (“Il Codice di Procedura Penale Illustrato Articolo per Articolo”, sob a coordenação de UGO CONTI, vol. I/562-564, itens ns. 154-155, 1937, Società Editrice Libraria, Milano), cujo entendimento, no tema, após reconhecer o desvalor e a ineficácia probante dos escritos anônimos, desde que isoladamente considerados, admite, no entanto, quanto a eles, a possibilidade de a autoridade pública, a partir de tais documentos e mediante atos investigatórios destinados a conferir a verossimilhança de seu conteúdo, promover, então, em caso positivo, a formal instauração da pertinente “persecutio criminis”, mantendo-se, desse modo, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas que forem encaminhadas aos agentes do Estado, salvo – como anteriormente enfatizado – se os escritos anônimos constituírem o próprio corpo de delito ou provierem do acusado.

Impende rememorar, bem por isso, na linha do que vem de ser exposto, a precisa lição de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I/147, item n. 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millennium):

No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339 e 340), o que implica a exclusão do anonimato na notitia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente.

Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia criminis inqualificada.” (grifei)


Essa orientação — perfilhada por JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES (“Tomada de Contas Especial”, p. 51, item n. 4.1.1.1.2, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica) — é também admitida, em sede de persecução penal, por FERNANDO CAPEZ (“Curso de Processo Penal”, p. 77, item n. 10.13, 7ª ed., 2001, Saraiva):

A delação anônima (notitia criminis inqualificada) não deve ser repelida de plano, sendo incorreto considerá-la sempre inválida; contudo, requer cautela redobrada, por parte da autoridade policial, a qual deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das informações.” (grifei)

Com idêntica percepção da matéria em exame, orienta-se o magistério de JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 95, item n. 5.4, 7ª ed., 2000, Atlas):

(…) Não obstante o art. 5º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede a notícia anônima do crime (notitia criminis inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder com a máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente com a certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular.” (grifei)

Esse entendimento é também acolhido por NELSON HUNGRIA (“Comentários ao Código Penal”, vol. IX/466, item n. 178, 1958, Forense), cuja análise do tema — realizada sob a égide da Constituição republicana de 1946, que expressamente não permitia o anonimato (art. 141, § 5º), à semelhança do que se registra, presentemente, com a vigente Lei Fundamental (art. 5º, IV, “in fine”) — enfatiza a imprescindibilidade da investigação, ainda que motivada por delação anônima, desde que fundada em fatos verossímeis:

Segundo o § 1.º do art. 339, ‘A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto’. Explica-se: o indivíduo que se resguarda sob o anonimato ou nome suposto é mais perverso do que aquêle que age sem dissimulação. Êle sabe que a autoridade pública não pode deixar de investigar qualquer possível pista (salvo quando evidentemente inverossímil), ainda quando indicada por uma carta anônima ou assinada com pseudônimo; e, por isso mesmo, trata de esconder-se na sombra para dar o bote viperino. Assim, quando descoberto, deve estar sujeito a um plus de pena./>” (grifei)

Essa mesma posição, Senhor Presidente, é igualmente perfilhada, dentre outros, por GUILHERME DE SOUZA NUCCI (“Código de Processo Penal Comentado”, p. 68, item n. 29, 2002, RT), DAMÁSIO E. DE JESUS (“Código de Processo Penal Anotado”, p. 9, 18ª ed., 2002, Saraiva), GIOVANNI LEONE, (“Trattato di Diritto Processuale Penale”, vol. II/12-13, item n. 1, 1961, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli), FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. 1/34-35, 4ª ed., 1999, Saraiva) e ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito Policial e Ação Penal”, item n. 17, p. 19-20, 7ª ed., 1998, Saraiva), cumprindo rememorar, ainda, por valiosa, a lição de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Persecução Penal, Prisão e Liberdade”, p. 34/35, item n. 6, 1980, Saraiva):

Não deve haver qualquer dúvida, de resto, sobre que a notícia do crime possa ser transmitida anonimamente à autoridade pública (…).

(…) constitui dever funcional da autoridade pública destinatária da notícia do crime, especialmente a policial, proceder, com máxima cautela e discrição, a uma investigação preambular no sentido de apurar a verossimilhança da informação, instaurando o inquérito somente em caso de verificação positiva. E isto, como se a sua cognição fosse espontânea, ou seja, como quando se trate de notitia criminis direta ou inqualificada (…).” (grifei)

Esse entendimento também fundamentou julgamento que proferi, em sede monocrática, a propósito da questão pertinente aos escritos anônimos. Ao assim julgar, proferi decisão que restou consubstanciada na seguinte ementa:

DELAÇÃO ANÔNIMA. COMUNICAÇÃO DE FATOS GRAVES QUE TERIAM SIDO PRATICADOS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES QUE SE REVESTEM, EM TESE, DE ILICITUDE (PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS SUPOSTAMENTE DIRECIONADOS E ALEGADO PAGAMENTO DE DIÁRIAS EXORBITANTES). A QUESTÃO DA VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ANONIMATO (CF, ART. 5º, IV, ‘IN FINE’), EM FACE DA NECESSIDADE ÉTICO-JURÍDICA DE INVESTIGAÇÃO DE CONDUTAS FUNCIONAIS DESVIANTES. OBRIGAÇÃO ESTATAL, QUE, IMPOSTA PELO DEVER DE OBSERVÂNCIA DOS POSTULADOS DA LEGALIDADE, DA IMPESSOALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (CF, ART. 37, ‘CAPUT’), TORNA INDERROGÁVEL O ENCARGO DE APURAR COMPORTAMENTOS EVENTUALMENTE LESIVOS AO INTERESSE PÚBLICO. RAZÕES DE INTERESSE SOCIAL EM POSSÍVEL CONFLITO COM A EXIGÊNCIA DE PROTEÇÃO À INCOLUMIDADE MORAL DAS PESSOAS (CF, ART. 5º, X). O DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO CIDADÃO AO FIEL DESEMPENHO, PELOS AGENTES ESTATAIS, DO DEVER DE PROBIDADE CONSTITUIRIA UMA LIMITAÇÃO EXTERNA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE? LIBERDADES EM ANTAGONISMO. SITUAÇÃO DE TENSÃO DIALÉTICA ENTRE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL. COLISÃO DE DIREITOS QUE SE RESOLVE, EM CADA CASO OCORRENTE, MEDIANTE PONDERAÇÃO DOS VALORES E INTERESSES EM CONFLITO. CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS. LIMINAR INDEFERIDA.

(MS 24.369-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 286/2002)

Cabe referir, ainda, que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão da delação anônima, analisada em face do art. 5º, IV, “in fine”, da Constituição da República, já se pronunciou no sentido de considerá-la juridicamente possível, desde que o Estado, ao agir em função de comunicações revestidas de caráter apócrifo, atue com cautela, em ordem a evitar a consumação de situações que possam ferir, injustamente, direitos de terceiros:

CRIMINAL. RHC. NOTITIA CRIMINIS ANÔNIMA. INQUÉRITO POLICIAL. VALIDADE.

1. A delatio criminis anônima não constitui causa da ação penal que surgirá, em sendo o caso, da investigação policial decorrente. Se colhidos elementos suficientes, haverá, então, ensejo para a denúncia. É bem verdade que a Constituição Federal (art. 5º, IV) veda o anonimato na manifestação do pensamento, nada impedindo, entretanto, mas, pelo contrário, sendo dever da autoridade policial proceder à investigação, cercando-se, naturalmente, de cautela.

2. Recurso ordinário improvido.”

(RHC 7.329/GO, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES – grifei)

“CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. (…). PROCESSO ADMINISTRATIVO DESENCADEADO ATRAVÉS DE ‘DENÚNCIA ANÔNIMA’. VALIDADE. INTELIGÊNCIA DA CLÁUSULA FINAL DO INCISO IV DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (VEDAÇÃO DO ANONIMATO). (…). RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.”

(RMS 4.435/MT, Rel. Min. ADHEMAR MACIEL – grifei)

“(…) Carta anônima, sequer referida na denúncia e que, quando muito, propiciou investigações por parte do organismo policial, não se pode reputar de ilícita. E certo que, isoladamente, não terá qualquer valor, mas também não se pode tê-la como prejudicial a todas as outras validamente obtidas.

(RHC 7.363/RJ, Rel. Min. ANSELMO SANTIAGO — grifei)

Vê-se, portanto, não obstante o caráter apócrifo da delação ora questionada, que, tratando-se de revelação de fatos revestidos de aparente ilicitude penal, existia, efetivamente, a possibilidade de o Estado adotar medidas destinadas a esclarecer, em sumária e prévia apuração, a idoneidade das alegações que lhe foram transmitidas, desde que verossímeis, em atendimento ao dever estatal de fazer prevalecer — consideradas razões de interesse público — a observância do postulado jurídico da legalidade, que impõe, à autoridade pública, a obrigação de apurar a verdade real em torno da materialidade e autoria de eventos supostamente delituosos.

Tal como asseverado pelo eminente Relator, o Ministério Público adotou, na espécie em análise, e no que concerne à carta anônima em questão, todas as cautelas ora mencionadas neste voto, procedendo, em conseqüência, de acordo com a orientação doutrinária e jurisprudencial que venho de expor.

Demais disso, cumpre acentuar que o Ministério Público, para formar a sua “opinio delicti”, valeu-se, como referido pelo eminente Relator, de outros meios de informação, de origem conhecida, que viabilizaram o ajuizamento, na espécie, da ação penal pública.

Não constitui demasia assinalar que o Ministério Público não depende, para deduzir a pretensão punitiva do Estado, da prévia instauração de inquérito policial, eis que o representante do “Parquet” pode formar a sua convicção com fundamento em elementos obtidos “aliunde”.

Como se sabe, o magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, confirmando esse entendimento, tem acentuado ser dispensável, ao oferecimento da denúncia, a prévia instauração de inquérito policial, desde que seja evidente a materialidade do fato alegadamente delituoso e estejam presentes indícios de sua autoria (AI 266.214-AgR/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – HC 63.213/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – HC 77.770/SC, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RHC 62.300/RJ, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO, v.g.):

O oferecimento da denúncia não depende, necessariamente, de prévio inquérito policial. A defesa do acusado se faz em juízo, e não no inquérito policial, que é meramente informativo (…).”

(RTJ 101/571, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei)

Denúncia – Oferecimento sem a instauração de inquérito policial – Admissibilidade, se a Promotoria dispõe de elementos suficientes para a formalização de ação penal (…).”

(RT 756/481, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei)

“‘HABEAS CORPUS’ – MINISTÉRIO PÚBLICO – OFERECIMENTO DE DENÚNCIA – DESNECESSIDADE DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL – EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS MÍNIMOS DE INFORMAÇÃO QUE POSSIBILITAM O IMEDIATO AJUIZAMENTO DA AÇÃO PENAL – INOCORRÊNCIA DE SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO – PEDIDO INDEFERIDO.

– O inquérito policial não constitui pressuposto legitimador da válida instauração, pelo Ministério Público, da ‘persecutio criminis in judicio’. Precedentes.

O Ministério Público, por isso mesmo, para oferecer denúncia, não depende de prévias investigações penais promovidas pela Polícia Judiciária, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de informação, fundados em base empírica idônea, sob pena de o desempenho da gravíssima prerrogativa de acusar transformar-se em exercício irresponsável de poder, convertendo, o processo penal, em inaceitável instrumento de arbítrio estatal. Precedentes.

(HC 80.405/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

A “ratio” subjacente a essa orientação — que também traduz a posição dominante na jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 664/336 — RT 716/502 — RT 738/557 — RSTJ 65/157 – RSTJ 106/426, v.g.) — encontra apoio no próprio magistério da doutrina (DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 07, 17ª ed., 2000, Saraiva; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. I, p. 111, 4ª ed., 1999, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 111, item n. 12.1, 7ª ed., 2000, Atlas), cuja percepção do tema põe em destaque que, “se está a parte privada ou o Ministério Público na posse de todos os elementos, pode, sem necessidade de requerer a abertura do inquérito, oferecer, desde logo, a sua queixa ou denúncia” (EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. I, p. 288, 2000, Bookseller – grifei).

É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez (RTJ 64/342), já decidiu que “Não é essencial ao oferecimento da denúncia a instauração de inquérito policial, desde que a peça acusatória esteja sustentada por documentos suficientes à caracterização da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria” (RTJ 76/741, Rel. Min. CUNHA PEIXOTO).

Encerro o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, deixo assentadas as seguintes conclusões:

(a) os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da “persecutio criminis”, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o “crimen falsi”, p. ex.);

(b) nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; e

(c) o Ministério Público, de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial, também pode formar a sua “opinio delicti” com apoio em outros elementos de convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de sua autoria, desde que os dados informativos que dão suporte à acusação penal não tenham, como único fundamento causal, documentos ou escritos anônimos.

Sendo assim, e consideradas as razões expostas, peço vênia, Senhor Presidente, para acompanhar o douto voto proferido pelo eminente Relator, rejeitando, em conseqüência, a questão de ordem ora sob exame desta Suprema Corte.

É o meu voto.

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