Violação de prerrogativas

Invasão de escritórios: nós sabemos aonde isso irá parar

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23 de junho de 2005, 17h10

“toda demora é um crime; toda formalidade é um perigo público; o tempo para punir os inimigos da pátria não deve ser senão o de os reconhecer”. (Justificativa à Lei 22 de Praial, de Robespierre e Couton, que, ao final, os levaria também, à guilhotina.)

I

A persistência das violações de escritórios de Advocacia amparadas em mandados judiciais, inegavelmente ilegítimos, demonstra o atual grau de arbitrariedade e opressão dos aparelhos do Estado sobre o cidadão comum, atingindo a sua mais cara trincheira de defesa: a relação advogado-cliente.

Esses mandados são aberrações não só contra o Estado de Direito mas contra princípios básicos em que se assenta qualquer sociedade minimamente civilizada.

Nem a recente ditadura militar brasileira ousou tanto: instaurar a sistemática devassa em escritórios para busca de documentos de seus clientes!

Tais mandados não são expedidos para investigar os advogados por prática de algum ilícito criminal ou por supostamente cooperar no desiderato criminoso, não estão os causídicos sendo acusados ou investigados; ocorrem as devassas apenas por estes terem algum cliente seu entre o rol dos investigados.

Repita-se: é apenas isso, não há outro cajão!

Ora, que garantia ou segurança haverá para a parte ao consultar um advogado ? Nessa situação, como exibir ao causídico um contrato, um plano, documentos que embasem um seu projeto e suas alternativas, trazendo-os para ouvir a opinião jurídica, obter um parecer, que poderia até significar para o cliente o veemente desaconselhamento ? Que faria a parte se soubesse que seu documento poderia ser apreendido, sua consulta gravada, seu correio eletrônico devassado?

Como expor toda a verdade e suas dúvidas ao advogado, se elas poderão ser, de alguma forma, capturadas e utilizadas contra o consulente?

Daqui a pouco serão as Varas de família a permitir invasões em bancas para busca de provas de rendimentos ou de traições da parte; atrás de uma qualquer alegação por-se a vigiar correios eletrônicos, buscar por microfones ultrassensíveis o desabafo do autor ou autora, réu ou ré, ao seu patrono. Ao final, isso ocorrerá nas questões trabalhistas, fiscais, e entre empresas etc.

Aliás, nesse ritmo, desculpe a ironia, por que não dilargar e fazer uma devassa na pasta do advogado no momento da audiência?

A relação de confiança entre advogado e cliente, respeitada mesmo nos mais polêmicos julgamentos dos tempos modernos, no Brasil inexistirá.

Querem repetir o regime de terror e de medo sobre advogados, como na didatura getulista, conforme denunciava valentemente João Mangabeira

Já há vozes se levantando contra tais fatos, jornais e revistas sérias já demonstraram grave preocupação.

II

Todavia duas entidades de juízes federais expediram notas de repúdio às queixas da OAB, manifestando-se em favor de tais procedimentos.

O teor das manifestações surpreende.

Mas antes de comentá-las, impõe-se clarificar uma verdade. É difícil, para quem os conhece, imaginar magistrados agindo arbitrariamente. Basta um contato mais longo com ministros dos tribunais superiores, desembargadores, juízes de primeiro grau, para conhecer, em grande número, cavalheiros lhanos, damas cultas, estudiosos e pesquisadores de rigor. Privando-lhes da intimidade, por certo serão horas de convívio estimulante. Essa é, ainda, a maioria.

Mas há alguns que não são assim. Que não acreditam no Direito, que preferem o seu sentimento pessoal de justiça, e invocando escapar à “fria letra da lei”, arbitram-na de acordo com suas pessoais convicções. Recebem uma petição e passam por cima dela, propondo-se intimamente a investigar “o que realmente quer” o peticionário, como se todo cidadão fosse um velhaco pronto a dar-lhe um passa-moleque. Raramente sequer respondem ao mero cumprimento de um jurisdicionado, posando com aquela severidade típica e mais ridícula do que os chapéus de penacho do fascista Mussolini.

Essa parcela afasta-se da lei para aplicar o que chama de “justiça”; mas assim fazendo, tais magistrados incidem em dois enganos e lançam, sem saber, um repto à sociedade.

São dois enganos: o primeiro, esquecem que o conceito de Justiça é objeto de um grandioso debate filosófico e jurídico milenar e ainda muito atual, mas nenhuma sociedade prescindiu do Direito para aplicá-lo; o segundo, a idéia de Justiça e sua realização implica em profundos estudos de Filosofia, e em Direito particularmente de sua Teoria Geral, coisa que as faculdades ensinam superficialmente, os exames da magistratura exigem pouco, e em que esses juízes são largamente jejunos.

Nada mais perigoso, pois empiricamente, tanto Bush quanto Bin Laden acreditam estar a fazer justiça.

O repto lançado: mais cedo ou mais tarde a sociedade se verá diante do desafio do velho adágio “os homens curvam-se às leis, para não se curvarem aos tiranos”.

De maneira individual, a esmagadora maioria dos magistrados é merecedora de todo o respeito ( e não só o protocolar), são pesquisadores sérios, com grande vontade de acertar. Mas, a vontade coletiva, em especial a associativa, nem sempre corresponde à melhor expressão do todo.

Infelizmente é o que ocorre nas notas distribuídas.

Com todo o respeito, as entidades fazem sofismas na vã tentativa de justificar sirva o escritório de advocacia de mero depositório de provas contra seus clientes, a serem sacadas ao bem-querer de uma investigação qualquer alhures.

A primeira nota é da Ajufe — Associação de Juizes Federais, que a despeito de lançar argumentos serenos, os advogados e a sociedade civil não podem assentir.

Com a devida vênia, dizer que se trata de interesse corporativo, obviamente, só ocorreria se a OAB reverberasse contra busca e apreensão em caso de escritórios partícipes das ações criminosas.

Dizer que até hoje nunca houve reforma de uma dessas decisões, não esclarece muito até porque pela rapidez e surpresa da ação, igualmente até hoje não se deu para impetrar recurso em tempo hábil e útil.

Correlacionar a defesa da inviolabilidade do escritório de advocacia a um “mausoléu imune à ação estatal” é canhestra alegoria. Escritório de advocacia difere de outros estabelecimentos, porque o produto daquele é organizar meios para a ampla defesa, que impera como uma das maiores garantias constitucionais do indivíduo. Como poderá o profissional fazê-lo assim acuado; como poderá o cliente confiar nessa relação se for ela frágil e potencialmente devassável ?

De outro lado, a nota da Ajufesp — Associação dos Juizes Federais de São Paulo merece o mais profundo e indignado repúdio. Ela reclama como “estridente” as queixas da OAB, a entidade aponta-lhe “intenções não muito claras”, acusando mesmo de “proteger indiretamente o crime organizado”.

Estas afirmações são aleivosias grosseiras, são insolências que desacatam o papel maior da OAB na República e ofendem profundamente a instituição e seus integrantes.

A OAB nunca defendeu direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, crime organizado, nem nunca atentou contra a República ou a Democracia.

Ela tem um grandioso histórico de lutas, de sacrifícios por si e por seus membros, e não só sabe muito bem o que está fazendo agora, como sabe muito bem aonde iremos chegar a persistir essas espúrias ações violadoras!

Trata-se de nota infeliz trazendo a público algumas considerações desrespeitosas embasadas em argumentos tolos, o que não condiz com o alto espírito público e discernimento esperados por parte de magistrados.

Interesses pessoais têm aqueles que querem fazer prevalecer a sua visão personalíssima de Justiça, seu sentimento pessoal de justiceiro togado, sobre os mais caros princípios da República, pois não há República sem Direito!

Os Advogados mais uma vez estão se levantando para defender as instituições republicana, defender o seu papel histórico de última trincheira de defesa do cidadão contra a opressão estatal, contra a violência ilegítima do Estado. Fazem-no com profunda tristeza, pois, desta feita, ela é perpetrada por muitos daqueles que juraram defender o Direito e a Justiça e não os holofotes!

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