Operação Cevada

Procurador da República trabalhava para a Schincariol

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23 de junho de 2005, 15h47

Na esteira da mega Operação Cevada, desencadeada pela Polícia Federal na semana passada contra a sonegação fiscal das cervejarias, a Corregedoria-geral do Ministério Público Federal desarquivou um processo disciplinar contra o procurador João Francisco da Rocha, hoje aposentado. Rocha é acusado de utilizar o cargo para beneficiar o Grupo Schincariol – o principal alvo da Operação Cevada que levou para trás das grades, na quarta-feira (15/6), 68 diretores e proprietários da cervejaria sob suspeita de sonegação de cerca de R$ 1 bilhão.

Apesar da gravidade da denúncia, o processo disciplinar contra o procurador havia sido arquivado há três anos, mesma época em que ele adquiriu o benefício da aposentadoria. Se for incriminado, Rocha terá a sua aposentadoria cassada. O reexame está a cargo do sub-procurador da República, Eduardo Nobre. Procurado pela revista Consultor Jurídico, Nobre mandou avisar, através da assessoria, que está proibido de falar publicamente sobre o assunto. O impedimento estaria previsto na Lei Orgânica do Ministério Público (LC 75/93) que estabeleceria o segredo automático dos procedimentos contra os integrantes da corporação.

O processo disciplinar foi aberto, no final da década passada, a pedido do então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Ele foi motivado pelo fato de Rocha ter despachado intimações contra concorrentes da Schincariol , solicitando documentos e notas fiscais, com o objetivo de obter informações sobre a sua situação com o fisco. A atitude levantou suspeitas porque a iniciativa era de competência de procurador de primeira instância – e Rocha já havia sido alçado para a procuradoria regional atuando junto ao TRF da 3ª Região.

Nas investigações para instrumentar a representação, a Receita Federal acabaria encontrando contratos de prestação de serviços advocatícios firmados pela mulher do procurador com a Schincariol. Também foram anexados ao processo os autos de infração por sonegação do Imposto de Renda sobre os rendimentos auferidos junto à cervejaria. Como procurador da “velha guarda”, ele tinha o direito de advogar para a iniciativa privada. “Mas nunca atuar contra empresas ao tempo que mantinha contrato com a empresa concorrente”, avaliou Everardo Maciel, nesta quinta-feira (23/6), ao confirmar as informações apuradas pela ConJur .

Luiz Francisco

As iniciativas do procurador para beneficiar a Schincariol não ficaram por aí. No início desta década, ele redigiu uma ação cautelar preparatória de ação civil pública (veja a íntegra abaixo) denunciando o secretário da Receita Federal de deixar de levar para os cofres públicos bilhões de reais em virtude da sistemática de recolhimento do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). A ação foi julgada improcedente mas, para poder apresenta-la, Rocha contou com os préstimos do então procurador da República, de primeiro grau, Luiz Francisco de Souza – que hoje atua no TRF da 1ª Região.

A ConJur acessou e gravou o arquivo da ação que, até há pouco tempo, estava disponível no site que Luiz Francisco mantinha na Internet. As propriedades do arquivo indicavam que ele havia sido produzido não em Brasília mas num computador do TRF da 3ª Região. Na ocasião, Everardo Maciel ficou intrigado com o profundo conhecimento de Luiz Francisco na seara do direito tributário. E, numa reunião com o procurador, arriscou: “Essa ação não é de sua autoria”. Ao que o procurador respondeu: “E que importância tem isso”. O diálogo, lembra Maciel, foi testemunhado por Jorge Rachid, hoje secretário da Receita Federal, Ricardo Pinheiro, sub-secretário, e pelos procuradores Guilherme Schelb e Alexandre Camanho.

A ação pedia ao juiz medida liminar para a imediata mudança na sistemática de apuração do IPI das cervejas. Em vez de incidir como alíquota específica sobre as características físicas do produto (lata, garrafa, etc.) na saída da produção, a mudança determinaria sua cobrança sobre o valor nos pontos de venda ao consumidor. “A tributação é muito mais difícil no consumo”, explica Maciel. A mudança ampliava as portas da sonegação. Segundo o ex-secretário, a metodologia adotada no Brasil, desde 1989, é universal e abrange todos os produtos que apresentam dificuldades para o controle de seus preços. Além das cervejas e refrigerantes, o sistema é adotado na tributação de sorvetes, combustíveis e cigarros. Ou seja, em vez de uma porcentagem sobre o valor do produto cobra-se o valor fixo de R$ 0,09 a cada latinha de cerveja que deixa as distribuidoras.

Leia o texto da Ação Civil Pública do procurador contra o Secretário da Receita

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA — VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, no uso de suas atribuições constitucionais, vem à presença de V.Exa., com fundamento nas normas do artigo 2º, artigo 129, inciso III, artigo 145, par. 1º, artigo 150, incisos I e II, artigo 170, artigo 173, par. 4º, todos da Constituição Federal cc alíneas “a” e “c”, inciso II, alínea “a”, inciso III do art. 5º, alíneas “a” e “b”, inciso VII do art. 6º da Lei Complementar nº 75/93 e, ainda, no inciso V do art. 1º da Lei nº 7.347/85, com a redação da Lei nº 8.884/94 e, finalmente, na forma dos artigos 282 e seguintes do Código de Processo Civil, para propor esta


AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA com PEDIDO LIMINAR, em defesa do patrimônio público e dos princípios constitucionais do sistema tributário nacional, contra a

1a.) UNIÃO FEDERAL, na pessoa de qualquer dos procuradores da Fazenda Nacional – art. 2º, inc. V, par. único, I da Lei Complementar 73 de 10 de fevereiro de 1995;

2o.) BRAHMA/SKOL, COMPANHIA CERVEJARIA BRAHMA, com sede na Rod. MG 050 – Entre KM 46 e 47 – Zona Rural de Juatuba – MG, CEP.: 35675-000, Fone: 0xx31 539-3131;

3o.) CERVEJARIAS KAISER, com endereço na Av. Pres. H. A. Castelo Branco 2911, Jacareí – São Paulo, CEP.: 12300-009;

4o.) GRUPO ANTARCTICA, Indústria de Bebidas Antarctica Polar S.A – Filial Getúlio Vargas, com endereço na Rua Alexandre Bramatti, 673, Bairro Centro – Getúlio Vargas – RS, CEP.: 99900-000, Fone.: 0xx54 341-1100;

5o.) PRIMO SCHINCARIOL, Indústria de Cervejas e Refrigerantes S.A, com endereço na Av. Primo Shincariol, 222/2300 – Bairro Itaim, Itu – São Paulo, CEP.: 7822-9555, Fone: 0xx11 7822-9500; e

6o.) ITAIPAVA, Cervejaria Petrópolis S/A, com endereço na Rodovia BR 040, n.º 51809 – Pedro do Rio – Petrópolis – RJ, CEP.: 25750-000, Fone: 0xx 242231555.

pelas razões de fato e de direito em anexo articuladas:

DA LEGITIMIDADE DO MPF

A atual Carta Política brasileira incluiu, no seu art. 129, III, como função institucional do Ministério Público, o dever de promover AÇÃO CIVIL PÚBLICA para a “proteção do patrimônio público”.

Por sua vez, a Lei Orgânica do Ministério Público da União – Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1995 -, em seus arts. 5º e 6º, calcada na mesma autorização constitucional, explicitou o dever de “zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos ao sistema tributário”, fazendo, também, expressa referência à “defesa do patrimônio nacional”.

A Lei nº 7.347/85, com a redação da Lei nº 8.884/94, que acrescentou o inciso V no art. 1º da norma anterior, incluiu as “infrações de ordem econômica” como passíveis de correção mediante Ação Civil Pública.

Vê-se, pois, pela simples leitura dos aludidos dispositivos constitucionais e infra-constitucionais, que ao Ministério Público foi deferida ampla competência para salvaguardar aqueles princípios e o patrimônio público.

A questão enfocada nesta Ação Civil Pública, conforme restará demonstrada ao final, cuida exatamente do exercício do dever de resguardar o patrimônio público que está sendo lesado e os “princípios constitucionais” relativos ao “sistema tributário”, motivos pelos quais a legitimidade do Ministério Público resultará plenamente justificada. Neste sentido, vejamos:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃO n. 199700913236

RESP RECURSO ESPECIAL n. 159231

UF do Processo: MG

Decisão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, vencido o Sr. Ministro Demócrito Reinaldo, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Votaram com o Sr. Ministro Relator os Srs. Ministros Milton Luiz Pereira, José Delgado e Garcia Vieira.

Data de Decisão: 16/03/1999

Código do Órgão Julgador: T1

Nome do Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA

Ementa:

PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – RESSARCIMENTO AO ERÁRIO PÚBLICO – MINISTÉRIO PÚBLICO – LEGITIMIDADE. – O Ministério Público possui legitimidade ativa para propor ação civil pública visando o ressarcimento de danos causados ao patrimônio público por prefeito municipal. – Precedentes do STJ. – Recurso provido.

Nome do Ministro Relator: HUMBERTO GOMES DE BARROS

Fonte: DJ DATA:03/05/1999 PG:00100

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃO n. 199800116303

RESP RECURSO ESPECIAL n. 164649 UF do Processo: MG

Decisão: Por unanimidade, conhecer do recurso e lhe dar provimento.

Data de Decisão: 03/12/1998

Código do Órgão Julgador: T5

Nome do Órgão Julgador: QUINTA TURMA

Ementa: RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. CÂMARA MUNICIPAL DE IGARAPÉ. REAJUSTE DE VEREADORES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA DO PATRIMÔNIO MUNICIPAL. REPARAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. POSSIBILIDADE. Conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público, visando o ressarcimento de possível dano ao erário. Precedentes. Recurso provido.

Nome do Ministro Relator: JOSÉ ARNALDO DA FONSECA

Neste rumo, a legitimidade do MPF decorre do disposto no art. 129 da Constituição Federal e do próprio texto da Lei de Improbidade. Estes os dispositivos constitucionais:


“Constituição Federal

Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:

II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”.

III – Promover o inquérito civil e ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

A população brasileira tem o direito à uma Administração Pública regida pelos princípios constitucionais fundamentais, dentre os quais o da moralidade, da probidade, da legalidade, etc. Existe, segundo Hely Lopes Meirelles e diversos outros doutrinadores, o interesse difuso relativo à moralidade administrativa e ao patrimônio público.

A Lei complementar nº 75/93, por sua vez, dispõe sobre a missão do MPF:

“Art. 5º – São funções institucionais do Ministério Público da União:

I – defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis, considerados, dentre outros os seguintes fundamentos e princípios:

III – a defesa dos seguintes bens e interesses:

a) o patrimônio nacional;

b) o patrimônio público e social;

V – zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos da União, dos serviços de relevância pública quanto:

b) aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade”.

ART.6 – Compete ao Ministério Público da União: (…)

XIV – promover outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto:

f) à probidade administrativa”.

Incumbe ao Ministério Público defender e fiscalizar os interesses da administração e do patrimônio público da União, vigiando os agentes públicos federais e zelando pela sua probidade administrativa. Tem a Procuradoria da República o dever de propor ações coletivas no âmbito da Administração Pública Federal, nos termos do art. 17 da Lei nº 8.429/92 e da Lei de Ação Civil Pública, quando verifica a prática de atos administrativos contrários aos princípios e regras constitucionais reguladores das atividades do Poder Público.

Cabível, pois, a medida proposta com a finalidade de tutelar o patrimônio público e a legalidade, além da probidade e moralidade administrativa. Da mesma forma, o interesse social, difuso também, está sendo ferido, pois na medida em que a arrecadação tributária é ilegalmente reduzida, os direitos fundamentais da população (saúde, educação, segurança pública, serviços públicos, assistência social etc) são diretamente prejudicados. Desatende ao interesse social a redução ilegal da arrecadação tributária, pois recursos que seriam destinados a propósitos sociais deixam de ser captados. Serviços públicos essenciais não serão prestados, em detrimento da sociedade, porque abriu-se mão de receita tributária.

Da mesma forma, são maculados princípios fundamentais do ordenamento jurídico, como o da legalidade e da moralidade.

Cabível, pois, a medida proposta com a finalidade de tutelar o patrimônio público, a legalidade, a probidade e moralidade administrativa, princípios fundamentais e interesses sociais difusos.

A legitimidade do MPF decorre da consideração de que a ação civil pública é um gênero, sendo a ação de improbidade administrativa uma espécie sua. Ora, a conduta dos agentes públicos responsáveis pela diminuição ilegal do IPI pode ser enquadrada nos seguintes incisos da Lei n. 8.429: “VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; (…) X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público; (…) XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente”.

DOS FATOS E DO DIREITO

No período anterior à Reforma Constitucional introduzida pela Emenda Constitucional no 18/65, a União cobrava um imposto sobre o consumo, e com esse nome consagrado. Do ponto de vista jurídico, o imposto de consumo era devido pelos produtores, assim entendidos o fabricante e o importador, na qualidade de contribuintes de direito, acabando o tributo, contudo, por ser suportado pelos contribuintes de fato, os consumidores, após sucessivas etapas da circulação do produto(1).

A Reforma Tributária de 1965 mudou a denominação do Imposto de Consumo para Imposto sobre Produtos Industrializados.


A Comissão encarregada da Reforma definia o IPI como um imposto sobre a circulação de mercadorias, restrita à fase de sua produção, fiel ao propósito de referir os impostos pelas suas bases econômicas (2).

Esse sempre foi o entendimento de Rubens Gomes de Sousa:

“O IPI (…) é o mesmo imposto federal sobre “consumo de mercadorias” (…). A reforma tributária de 1965 apenas lhe mudou o nome para outro mais conforme à sua natureza econômica e jurídica. Preservou-se a sua incidência sobre a produção (importação ou industrialização), recuperável, por estágios, do consumidor final” (3)

Essa era também a posição de Adroaldo Mesquita da Costa, quando Consultor Geral da República: “Embora o fato gerador seja a saída da mercadoria, o referido imposto incide sobre a produção”(4)

Essa concepção está longe de ser tranqüila, merecendo ressalvas de expressiva parcela da doutrina ao anotar que o IPI grava produtos já industrializados, quando entregues ao consumo, e não o correspondente processo de industrialização. É, pois, um imposto sobre o consumo(5)

Seja como for, e independente de tratar-se o IPI de tributo sobre a produção ou sobre o consumo, mantida a sua cobrança na alçada federal pelo art. 153, IV, da Constituição Federal de 1988 é de se lhe aplicar a legislação complementar recepcionada pela nova ordem, qual seja o Código Tributário Nacional que lhe define o fato gerador em seu art. 46, verbis:

“Art. 46 – O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados, tem como fato gerador:

I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;

II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51 (estabelecimentos industriais ou equiparados)

III – a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão”

A base de cálculo do mencionado imposto está firmada pelo art. 47, do mesmo Codex, nos seguintes termos:

“Art. 47 – A base de cálculo do imposto é:

I – no caso do inciso I do artigo anterior, o preço normal, como definido no inciso II do art. 20, acrescido do montante:

a) do imposto sobre a importação;

b) das taxas exigidas para a entrada do produto no País;

c) dos encargos cambiais efetivamente pagos pelo importador ou dele exigíveis.

II – no caso do inciso II do artigo anterior ;

a) – o valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria;

b) – na falta do valor a que se refere a alínea anterior, o preço corrente da mercadoria, ou sua similar, na mercado atacadista da praça do remetente

III – no caso do inciso III do artigo anterior, o preço da arrematação.”

Para o caso em tela interessa-nos a hipótese da saída do produto industrializado (cervejas, refrigerantes e águas) de estabelecimento industrial/comercial, que gera a incidência do IPI sobre o valor da operação (arts. 46, II c/c 47, II, a, ambos do Código Tributário Nacional).

A Lei nº 4502/64 (doc. nº 01), que disciplina o IPI, em seus arts. 13 e 14, preleciona que:

“Art. 13 – O imposto será calculado mediante aplicação das alíquotas constantes da Tabela anexa sobre o valor tributável dos produtos na forma estabelecida neste Capítulo.”(6)

“Art. 14 – Salvo disposição em contrário, constitui valor tributável

II – quanto aos produtos nacionais, o valor total da operação de que decorrer a saída do estabelecimento industrial ou equiparado a industrial …” (7)(8)

E, a seu turno, o Decreto nº 2637/98 (doc. nº 02), que aprovou o Regulamento do IPI em vigor, em seus arts. 117, caput, e 118,II, dispõe:

“Art. 117 – O imposto será calculado mediante aplicação das alíquotas, constantes da TIPI, sobre o valor tributável dos produtos (Lei nº 4502, de 1964, art. 13).

Parágrafo único – O disposto no caput não exclui outra modalidade de cálculo do imposto estabelecida em legislação específica.

“Art. 118 – Salvo disposição em contrário deste Regulamento, constitui valor tributável:…

II – dos produtos nacionais, o valor total da operação de que decorrer a saída do estabelecimento industrial ou equiparado a industrial (Lei nº 4502, de 1964, art. 14, inciso II e Lei nº 7798, de 1989, art. 15). …”

Conforme se verifica, há perfeita consonância entre a hipótese de incidência saída do produto industrializado do estabelecimento industrial/comercial e a base de cálculo valor da operação, requisito indispensável para a aferição da legitimidade da exigência fiscal, como ensinava Geraldo Ataliba:


“À perspectiva dimensional da hipótese de incidência se costuma designar por base de cálculo, base tributável ou base imponível. A base imponível é ínsita à hipótese de incidência. É atributo essencial, que, por isso, não deixa de existir em nenhum caso. …

“Efetivamente, fica evidente a posição central da base imponível – relativamente à hipótese de incidência – pela circunstância de ser impossível que um tributo, sem se desnaturar, tenha por base imponível uma grandeza que não seja ínsita na materialidade de sua hipótese de incidência. … Daí a advertência de Amílcar Falcão: “De outro lado, a inadequação da base de cálculo pode representar uma distorção do fato gerador e, assim, desnaturar o tributo.” (Fato gerador …, cit. Pág. 138). …

Efetivamente, em direito tributário, a importância da base imponível é nuclear, já que a obrigação tributária tem por objeto sempre o pagamento de uma soma de dinheiro, que somente pode ser fixada em referência a uma grandeza prevista em lei e ínsita no fato imponível, ou dela decorrente ou com ela relacionada.” (9)

Como se observa dos dispositivos acima transcritos da Lei 4.502/64, estão eles em perfeita harmonia com as regras dispostas na legislação complementar (CTN, arts. 46 e 47), no que concerne à base de cálculo.

Não obstante, a União Federal vem sujeitando o setor em evidência ao recolhimento do IPI com base em valores pré-fixados por meio de pauta fiscal.

Ou seja, por um estratagema legal, mas nem por isso legítimo, a União vale-se, para exigência do IPI, de base imponível diversa daquela fixada no CTN (Código Tributário Nacional), como se lhe fora possível, via legislação ordinária, alterar regra imposta por lei complementar.

Tal empreitada consubstancia-se por sucessivas Instruções Normativas e Atos Declaratórios, baixados pelo Secretário da Receita Federal, com total afronta:

a) ao patrimônio público, consubstanciado na renúncia ou diminuição ilegal de receitas tributárias;

b) ao princípio geral de direito que veda a delegação daquilo que foi recebido por delegação (delegatur delegare non potest), com a agravante de pretender-se derrogar lei complementar através de normas ordinárias;

c) ao princípio da estrita legalidade tributária (art. 150, I, CF/88);

d) ao princípio da isonomia (art. 150, II, CF/88);

e) ao princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, 1ª parte, CF/88);

f) ao princípio da livre iniciativa e livre concorrência (art. 170, caput, e inc. IV, CF/88);

g) ao princípio que veda a criação de cartéis (art. 173, § 4º, CF/88); e

h) à usurpação de competência legislativa e o princípio da Separação de Poderes.

Da lesão ao patrimônio público

A União perde com os Atos Declaratórios bilhões de reais. Refira-se apenas ao cálculo de uma fração das perdas da União. Os Atos Declaratórios atingem cerveja, água e refrigerantes. Examine-se apenas o faturamento das principais fabricantes de cerveja no período dos últimos 12 (doze) meses, segundo a quantidade (volume) fornecido pela fonte AC NIELSEN*:

Clique aqui para ler a tabela

Somente as vendas de recipientes de 600 ml de cerveja causam a diminuição indevida de IPI da ordem de R$ 1.028.908.248,91 (um bilhão, vinte e oito milhões, novecentos e oito mil, duzentos e quarenta e oito reais e noventa e um centavos).

Considerando todas as cervejas, refrigerantes e águas vendidos e o número de anos em que a situação se repete, poder-se-á chegar a aproximadamente R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais), o montante do IPI dispensado indevidamente.

A CPI da Evasão Fiscal, feita há anos, estimou que para cada unidade monetária arrecadada havia uma sonegada. O próprio Presidente da República atual participou desta CPI anos atrás. E o Dr. Everardo Maciel, em depoimentos prestados na CPI dos Bancos, reconheceu que a sonegação chega a dezenas de bilhões, principalmente somas que circulam no sistema financeiro inacessíveis aos olhos da Receita. Ocorre que o Secretário, que tanto alardeia a necessidade de ampliar a arrecadação, dirige seus olhos com preferência obsessiva para a classe média e assina Atos Declaratórios que beneficiam grandes grupos financeiros, no caso, as grandes cervejarias.

Além da sonegação, conforme estudos do UNAFISCO ( Sindicato nacional dos auditores fiscais da Receita Federal) existem ainda vários tipos de renúncia fiscal, que beneficiam grupos multimilionários. Em data recente, um Juiz Federal do interior de São Paulo, atendendo a uma ação do MPF, anulou um benefício fiscal contido numa Instrução Normativa que beneficiava usineiros de açúcar em cerca de 1,3 bilhões de reais. Este precedente consta anexo igualmente a esta ação.


Para evidenciar a injustiça fiscal existente no Brasil, vale transcrever um artigo do “Jornal do Brasil”, de 09 de julho de 2.000, denominado “O imposto nosso de cada dia”, de Mair Pena Neto:

“O imposto nosso de cada dia

Classe média paga R$ 5 diários embutidos nos gastos mais simples, como água, luz, telefone, alimentação e gasolina

Um cidadão de classe média está pagando de impostos cobrados e embutidos nos produtos e serviços que consome uma média de R$ 5 por dia. Ao longo de um mês são R$ 150, o equivalente a um salário mínimo. Ao fim de um ano, R$ 1.800, renda superior à média que o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) considera como de classe média: R$ 682,61 a R$ 1.405.

Este custo refere-se apenas aos gastos mais triviais, como uso de água, luz e telefone, alimentação, gasolina e alguma forma de lazer. Não estão considerados gastos mais pesados, como aluguel, condomínio, colégios dos filhos e assistência médica, nem outros impostos, como IPTU, IPVA e, principalmente, Imposto de Renda, que consome dois meses de trabalho para ser pago.

Tarifaço – Se até o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhece que é a classe média quem paga a conta da estabilidade econômica, esta parcela da população, estimada em 40% dos 157 milhões de habitantes do país, está prestes a sofrer novo golpe, com o tarifaço previsto para o segundo semestre. A classe média, que já vem abrindo mão de certos confortos para manter gastos essenciais, como planos de saúde, terá que apertar mais o cinto com os aumentos de gasolina, transporte público, luz e telefone que estão a caminho.

A Domínio Assessores, a pedido do JORNAL DO BRASIL, elaborou uma planilha de cálculo dos impostos que são pagos dia a dia na vida dos brasileiros de classe média (ver acima). A partir de uma base mensal, estabeleceu-se um gasto diário e a quantidade de impostos que incidem sobre ele. Partiu-se do princípio que o que é tributado às empresas é repassado ao consumidor, elevando a carga tributária das pessoas físicas. “O Brasil tem a segunda maior carga tributária do mundo (30,32% do PIB), atrás da Alemanha, que tem projeto para reduzi-la”, comenta Cleoncio Souza da Silva, da Domínio. “O problema é que estes impostos não retornam para a população, e quem mais sente isso é a classe média”, completa.

Um cidadão começa a pagar impostos assim que acorda e acende a luz do banheiro para escovar os dentes, tomar banho e fazer a barba. Se o barbeador e o chuveiro forem elétricos, a conta de luz aumenta e nela estão embutidos ICMS, pago ao estado, e PIS, Cofins e CPMF, arrecadados pelo governo federal. Para um gasto mensal de R$ 123 com luz, correspondente a uma família com dois filhos, o total de impostos chega a quase R$ 1 por dia.

Combustível – No caso da gasolina, para o cidadão de classe média que conseguiu manter o carro, o imposto diário para um gasto mensal de R$ 200 é de R$ 1,46, número que vai subir com o aumento dos combustíveis, que poderá chegar a 15% nas bombas dos postos, se depender da vontade do ministro da Fazenda, Pedro Malan.

Os impostos estão presentes nos ingredientes básicos do café da manhã (leite, café, pão, manteiga e açúcar) e no cardápio de uma refeição simples, com arroz, feijão, carne e batata. Estudo do IPEA aponta que os tributos sobre os itens da cesta básica, que fica aquém do consumo da classe média, chegam a mais de 15%.

Se ainda sobrar dinheiro para o lazer, o cidadão de classe média que optar por assistir a um filme e tomar um chope ainda encontrará embutido nos preços, o ISS, que o cinema paga ao município, e o IPI sobre a produção do chope”.

Ocorre que, conforme será demonstrado nesta lide, o IPI sobre a produção do chope ( água e refrigerante) é praticamente nominal, pois de fato é reduzido a quantias bem aquém da correta.

A partir de dados anunciados pelo Sr. EVERARDO MACIEL, calcula-se que cerca de R$ 3 milhões são sonegados por hora, entre janeiro e maio deste ano. Ou seja, cerca de R$ 11,2 bilhões acumulados até maio, sendo as bases do cálculo pautadas pelo princípio da prudência. A arrecadação fiscal mensal chega a cerca de R$ 13 bilhões. Ocorre que, além da sonegação, existem mecanismos de renúncia fiscal como o apontado nesta lide.

A injustiça fiscal é uma prática que também tem raízes na sonegação e nos atos administrativos que isentam ou diminuem tributos. Se a Receita Federal fosse aparelhada para fiscalizar, a arrecadação poderia aumentar de forma exponencial.

Ao arrecadar menos tributos, especialmente em razão de renúncia ilícita de receitas, atinge-se diretamente o patrimônio público, consubstanciado no conjunto de bens e direitos da União, além de o fato ferir os interesses sociais, pois o Estado não assegura os direitos sociais básicos ( saúde, educação, segurança, assistência etc).


SACHA DE CALMON NAVARRO COELHO, na obra Curso de Direito Tributário Brasileiro (Comentário à Constituição e ao Código Tributário nacional, artigo por artigo), Editora Forense, 1999, p. 584, demonstra que a obrigação tributária nasce com a realização do fato gerador (fato jurígeno), que gera imediatamente um direito por parte da União, ou seja, um bem jurídico que integra o patrimônio público. O patrimônio público é formado pelos bens e direitos da União:

“Os fatos jurígenos ou geradores de obrigações tributárias podem ser fatos jurídicos já regulados noutro ramo do Direito e podem ser fatos da vida valorados pela lei tributária. No primeiro caso, podemos citar o fato gerador do imposto sobre heranças e doações, com a abertura da sucessão pela morte do de cujus, e o instituto da doação, já regulados pelo Direito das sucessões e dos contratos ou, ainda, o fato gerador do imposto sobre a transmissão de bens imóveis por natureza ou acessão física e de direitos a eles relativos, tais como o usufrutos e a enfiteuse, matérias fartamente reguladas pelo Direito das coisas. No segundo caso, podemos citar o fato gerador do imposto sobre ganhos de capital, simples fato econômico a que a lei atribui relevância jurídica. O CTN, ao regular o momento em que se considera ocorrido o fato gerador e, pois, nascida a obrigação tributária e seu correlativo crédito, distingue esses dois tipos de fatos jurígenos com o fito de resguardar a prática das condições dos atos jurídicos aderidas a negócios eleitos como geradores de impostos (as condições suspensivas e resolutivas previstas no Código Civil). Diga-se, para logo, que a sede desse assunto reporta-se ao aspecto temporal dos fatos geradores, cuja arquitetura vimos de ver ao tratarmos da norma tributária. O inciso I diz que se considera ocorrido o fato gerador, tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produzam os efeitos que normalmente lhe são próprios. Assim sendo, tomando-se por base o exemplo ofertado, desde que a pessoa realize um ganho de capital, seja porque ganhou um prêmio lotérico, seja porque comprou e vendeu ações num só dia (da trade) com lucro expressivo, ficará sujeita ao pagamento do imposto, vez que presentes as circunstâncias materiais necessárias à consumação do fato jurígeno. A seu turno, o inciso II revela que se o fato jurígeno for “situação jurídica”, considera-se ocorrido no momento em que dita situação seja constituída nos termos do direito aplicável”.

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….o lançamento é ato administrativo, e a Constituição diz que ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei (ato legislativo). O lançamento aplica a lei, não é lei, não podendo, pois, criar o crédito a ser pago pelos sujeitos passivos da obrigação.

Não é por outra razão que o CTN, já no art. 144, dispõe “o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada.”

O lançamento é apenas declaratório. A obrigação tributária nasce com a realização do fato gerador. Neste momento, nasce uma obrigação do contribuinte correlata a um direito do Estado.

EPAMINONDAS DA COSTA, na obra Manual do Patrimônio Público, Livraria Del Rey Editora Ltda, p. 17, expõe o conceito jurídico de patrimônio público:

“Diz o artigo 1º, § 1º, da Lei n. 4.717/65, na nova redação dada pela Lei n. 6.513, de 20/12/77: “considera-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico [dinheiro, ações, prédios públicos, etc.], artístico [pintura, arquitetura…], estético [praças, jardins…], histórico [monumentos, palácio…] ou turístico.”

Deve ser destacado, porém, que a chamada Lei da Ação Civil Pública – Lei n.º 7.347/85 – deslocou para o item IV do artigo 1º a tutela jurídica do patrimônio público, enquanto conjunto dos bens e direitos de valor econômico. Fê-lo sob a nomenclatura de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Esta redação foi dada pela Lei n. 8.078, de 11/9/90. Em razão da antiga redação do aludido artigo de lei, é que alguns tribunais pátrios vinham negando a possibilidade do ajuizamento de ação civil pública para a exigência, por exemplo, da reparação do prejuízo causado ao erário, decorrente de conduta desonesta de prefeito municipal ou de qualquer outro agente público”.

Na p. 40 de livro constam algumas proposições aprovadas pelo 11o. Congresso Nacional dos 27 Ministérios Públicos estaduais que se aplicam a esta lide:

“PROPOSIÇÕES APROVADAS PELOS GRUPOS DE TRABALHOS SETORIAIS DO 11º CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA)


“1. ‘Cabe ao Ministério Público ajuizar a ação de improbidade administrativa contra o Administrador que deixou de propor o executivo fiscal e/ou cobrar multas administrativas sem, no entanto, descurar da improbidade daquele que foi responsabilizado.’

(…)

3. ‘O Ministério Público poderá instaurar Inquérito Civil e propor Ação Civil Pública nos casos de lesão ao patrimônio público decorrentes de atos não abrangidos pela Lei n. 8.429/92.

(…)

5. ‘Será denominada ‘Ação Civil Pública por ato de improbidade’, a medida judicial prevista na Lei n. 8.429/92, com aplicação subsidiária das Leis n. 7.347/85 e 4.717/65.’

(…)

11. ‘A enumeração dos artigos 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.429/92, é meramente exemplificativa.

Goiânia, GO, 23 a 26 de setembro de 1996.”

Eis os artigos da Lei de Improbidade nas quais as condutas dos agentes públicos poderiam se enquadrar na ação principal:

“VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; (…)

X – agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público; (…)

XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente.

De fato, o patrimônio público sofre perdas de vários bilhões com esta diminuição ilegal do IPI sobre cervejas, água e refrigerantes. Tais produtos não são essenciais, sendo a cerveja e os refrigerantes notadamente prejudiciais à saúde pública. A cerveja, devido à composição alcoólica que produz milhões de dependentes. E os refrigerantes pela produção de cárie e outros danos ao organismo – os nutricionistas recomendam, há anos, sua substituição por sucos naturais de frutas. No entanto, o Secretário da Receita Federal beneficia as empresas produtoras de tais produtos supérfluos enquanto a classe média é esfolada viva.

Não é despiciendo relatar ainda que o IPI é tributo não cumulativo, ou seja, abate-se em cada operação o tributo pago na operação anterior. Ora, admitindo-se que as matérias-primas componentes da cerveja e refrigerantes, e demais produtos, foram regularmente registradas na contabilidade das empresas, tem-se, aí, que as mesmas geraram créditos de IPI e que, na saída de tais produtos, tendo sido fixada uma pauta possivelmente bastante inferior ao custo das matérias primas, gera-se, artificialmente e ilicitamente, um crédito que redundará em ressarcimento indevido dos cofres públicos às empresas particulares, ampliando as perdas da União de forma ilegal. Tal engenharia é chamada no meio contábil e de direito tributário de “indústria do ressarcimento”, fraude que prejudica em muito a arrecadação tributária.

Do princípio geral de Direito delegatur delegare non potest e alteração de lei complementar por lei ordinária

A Lei nº 7798/89 (doc. nº 03), que alterou a legislação do IPI, em seu art. 3º, caput, estabeleceu que:

“Art. 3º – O Poder Executivo poderá, em relação a outros produtos dos capítulos 21 e 22 da TIPI, aprovada pelo Decreto nº 97.410, de 23 de dezembro de 1988, estabelecer classes de valores correspondentes ao IPI a ser pago. …”

Com base na previsão normativa referida, o atual Decreto nº 2637/98(10), que aprovou o Regulamento do IPI, em seus arts. 126 a 145, e especificamente para o caso em tela, em seu art. 128 (doc. nº 04) (11), delega ao Secretário da Receita Federal a competência para fixação das classes de valores da exação fiscal em tela.

Este (Secretário da Receita Federal), com base no dispositivo normativo susomencionado (arts. 127 e 128 do Dec. 2637/98 – RIPI – que repete os mesmos dispositivos de regulamentos anteriores), tem baixado sucessivos Atos Declaratórios, tais como os de nºs 17, de 26/04/95; 23, de 25/08/95; 4, de 29/01/97; 74, de 13/11/97; 81, de 27/11/97; 8, de 23/01/98; 132, de 05/11/98; 133, de 11/11/98; 134, de 11/11/98; 140, de 14/12/98; 8, de 24/02/2000 (docs. nº 05). Vejamos a transcrição do último Ato Declaratório, objeto mais específico desta ação cautelar:

“ATO DECLARATÓRIO N.º 8, DE 23.02.2000, DO SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL – DOU DE 24.02.2000

IPI – Bebidas – Classificação para efeito de cálculo e pagamento do imposto – Alterações

O Secretário da Receita Federal, no uso da competência prevista no art. 127 do Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados, aprovado pelo Decreto n.º 2.637, de 25 de junho de 1998,

Declara que os produtos relacionados neste Ato Declaratório, para efeito de cálculo e pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, de que tratam os arts. 1º da Lei n.º 7.798, de 10 de julho de 1989, e 2º da Lei n.º 8.133, de 27 de dezembro de 1990, passam a ser classificados conforme o enquadramento ora estabelecido, observado, no que for aplicável, o disposto na Portaria MF n.º 139, de 19 de junho de 1989”.


Contudo, não pode o Chefe do Executivo federal delegar, competência privativa, que lhe foi atribuída pela Constituição Federal (art. 84, IV, CF/88), ao Secretário da Receita Federal – para disciplinar as denominadas classes de valores de IPI, por meio das ilegítimas e famigeradas pautas fiscais -, sob pena de afronta ao princípio geral de direito que veda a delegação daquilo que foi recebido por delegação. Cabe mencionar uma destas delegações:

“MINISTÉRIO DA FAZENDA

GABINETE DO MINISTRO

Portaria n.º 678, de 22 de outubro de 1992

O MINISTRO DE ESTADO DA FAZENDA, no uso de suas atribuições, e tendo em vista a Medida Provisória n.º 309, de 16 de outubro de 1992, que transformou o Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento em Ministério da Fazenda, o Decreto de 21 de outubro de 1992, que nomeou o Secretário da Receita Federal, e considerando a necessidade de evitar solução de continuidade na administração tributária da União, resolve:

Art.1º Determinar que as atribuições do antigo Diretor do Departamento de Receita Federal, sejam exercidas pelo Secretário da Receita Federal, cabendo aos demais dirigentes as atribuições constantes do Regimento Interno, aprovado pela Portaria MEFP n.º 606, de 3 de setembro de 1992.

Art. 2º Transferir as competências do Departamento da Receita Federal para a Secretaria da Receita Federal, até a aprovação formal dos atos normativos pertinentes.

Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições ao contrário

GUSTAVO KRAUSE GONÇALVES SOBRINHO”.

Sobre este ponto, vale a pena transcrever a opinião de Hugo de Brito Machado, Juiz Federal titular da 2a. Vara Federal na Seção Judiciária do CE, na obra “Curso de Direito Tributário”, 16a. edição, ampliada, 1999, ed. Malheiros, pág. 262:

“A propósito da base de cálculo, destacamos que a Constituição de 1988 já não permite sua alteração por ato do Poder Executivo, razão pela qual a norma do art. 4º do Decreto-lei n. 1.199/71, consolidada no art. 71 do RIPI, acima transcrito, tornou-se inconstitucional e, assim, sem validade jurídica”.

Nesse sentido, o Eg. Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:

“TRIBUTÁRIO – DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA A MINISTRO DE ESTADO – BASE DE CÁLCULO – PAUTAS FISCAIS – CTN (ART. 97).

– A fixação de base de cálculo para o IPI deve resultar de dispositivo legal. O Sistema Tributário Brasileiro não admite delegação de competência, para este fim.

– A utilização de pautas, fixando “preço mínimo” ou “preço de mercado”, só se admite em caso de ser inidônea a documentação oferecida pelo contribuinte.

– O Decreto-lei 1593/77, outorgando competência ao Ministro da Fazenda, para fixar pauta fiscal, é incompatível com a reserva legal explicitada no art. 97, do CTN.

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS (RELATOR): O v. Acórdão foi construído sobre o fundamento (exposto no voto do E. Juiz Francisco Falcão) de que:

“Em sendo assim, o Decreto-lei nº 1593/77, tratando da base de cálculo do IPI, autorizando o Ministro da Fazenda a fixar pauta fiscal, é conflitante em relação às normas constitucionais, conforme entendimento esposado acima.” (fls. 132)

No que respeita ao plano infraconstitucional do Ordenamento Jurídico, o Aresto adotou proposição do Relator, in verbis (fls. 132):

“Igualmente, é de ressaltar-se que a base de cálculo e critérios para sua determinação devem decorrer de lei, segundo determina o art. 97 do CTN.”

Prestigiou, também, assertiva lançada pela contribuinte, nestes termos:

“As disposições do CTN como preceitos complementares excluem qualquer validade de pautas fiscais estabelecidas pela autoridade administrativa, para servirem de cálculo, da base de apuração do quantum da obrigação tributária, sabido que a fixação de pauta correspondente a uma PRESUNÇÃO de valores em ainda, feita com antecedência, com a agravante, que tudo fica ao limitado arbítrio da autoridade administrativa.”(fls. 133).

Esta orientação coincide com o entendimento a que chegou esta Turma, nos julgamentos dos Recursos Especiais 18.971-0/SP e 30.601-6/SP.

No primeiro destes acórdãos, de que foi relator o E. Ministro César Rocha, decidimos:

“I – O arbitramento fiscal (art. 148, CTN), de forma casuística e mediante processo regular, é condicionado à omissão ou infidelidade do contribuinte.

II – A adoção do preço de mercado dos bens somente é prevista na falta do valor real da operação (artigo 2º, Decreto-lei nº 406/68).”

No outro, conduzidos pelo E. Ministro Demócrito Reinaldo, proclamamos:

“Quer se entendam as pautas fiscais como presunção legal ou ficção legal da base de cálculo do ICMS, é inadmissível sua utilização apriorística para esse fim. A lei de regência do tributo (Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968) determina que a base de cálculo é “o valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria” (artigo 2º, I).

Mesmo que tomada como presunção relativa, a pauta de valores só se admite nos casos do artigo 148 do Código Tributário Nacional, em que, mediante processo regular, se arbitre a base de cálculo, se inidôneos os documentos e declarações prestadas pelo contribuinte. Os incisos II e III do artigo 2º do Decreto-lei nº 406/68 prevêem a utilização do valor de mercado dos bens apenas na falta do valor real da operação.

Precedentes do Supremo Tribunal Federal, que julgou inconstitucionais essas pautas.”

Como se percebe, a Decisão recorrida, longe de negar vigência ao Art. 97 do CTN, deu-lhe interpretação coerente com o sistema tributário brasileiro.

Nego provimento ao recurso.”(12)


A ementa do acórdão acima parcialmente transcrito diz:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA DESPACHO RIP:00017919 DECISÃO:15-12-1993 PROC:RESP NUM:0024861 ANO:92 UF:CE TURMA:01 REGIÃO:00 RECURSO ESPECIAL Fonte: Publicação: DJ DATA:21-02-94 PG:02124 – Ementa: TRIBUTÁRIO – DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA A MINISTRO DE ESTADO – BASE DE CALCULO – PAUTAS FISCAIS – CTN (ART. 97). – A FIXAÇÃO DE BASE DE CALCULO PARA O IPI DEVE RESULTAR DE DISPOSITIVO LEGAL. O SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO NÃO ADMITE DELEGAÇÃO DE COMPETÊNCIA, PARA ESTE FIM. – A UTILIZAÇÃO DE PAUTAS, FIXANDO “PREÇO MINIMO” OU “PREÇO DE MERCADO”, SÓ SE ADMITE EM CASO DE SER INIDÔNEA A DOCUMENTAÇÃO OFERECIDA PELO CONTRIBUINTE. – O DECRETO-LEI 1.593/77, OUTORGANDO COMPETÊNCIA AO MINISTRO DA FAZENDA, PARA FIXAR PAUTA FISCAL, E INCOMPATÍVEL COM A RESERVA LEGAL EXPLICITADA NO ART. 97 DO CTN. — Relator: MIN:1096 – MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS Observações: POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Nesse tocante, nem haveria que se pretender aplicar, por analogia, o disposto no § 1º, do art. 153, da Constituição Federal de 1988, que faculta ao Poder Executivo, atendidas as condições e limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas do IPI.

O desiderato do Fisco Federal é alcançado, com violação ao princípio da legalidade, o que é fácil de ser verificado quando constatado estar o imposto tratado, o IPI, no caso das bebidas – águas, cervejas e refrigerantes – sendo cobrado com embasamento em pauta fiscal, por obra de delegação do Senhor Presidente da República ao Secretário da Receita Federal, segundo bases de cálculo estabelecidas em Atos Declaratórios, de nada valendo o disposto no art. 97 do CTN.

Certo é que ainda que fosse viável a delegação nos termos estabelecidos, para tratar da matéria, a única possibilidade delegável seria alterar alíquotas, nunca as bases de cálculo.

A leitura do fixado no art. 153, § 1º, da CF/88 não deixa dúvida, verbis:

“Art. 153 – …

§ 1º – É facultado ao Poder Executivo(13), atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”.

É importante registrar que na Constituição anterior, revogada, o Poder Executivo tinha o direito de alterar também as bases de cálculo, o que lhe foi retirado, como comprova a simples leitura de seu art. 21:

“Art. 21 – Compete à União instituir imposto sobre:

I – importação de produtos estrangeiros, facultado ao Poder Executivo, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar-lhe as alíquotas ou as bases de cálculo.” (grifamos)

Além disso, se a base de cálculo, na hipótese específica ora tratada (saída de bebidas de estabelecimento industrial), está fixada pela legislação complementar, no caso o CTN, como sendo o valor da operação (art. 47, II, a), à evidência não pode a legislação complementar estipular outro valor para servir de base imponível. Essa empreitada é obviamente impossível, a menos que se admita, por absurdo, que à lei ordinária é dado alterar, revogar, derrogar dispositivo de lei complementar.

Não se trata de controle abstrato da constitucionalidade. Os Atos Declaratórios são atos administrativos concretos que ferem diversas leis, principalmente o CTN, recepcionado como Lei Complementar. Cuida-se de mera ilegalidade, com reflexos funestos para a arrecadação.

Considerando que o inciso IV, do art. 153 da CF/88 trata do IPI, resulta fácil o entendimento de que:

a) o Chefe do Executivo não podia delegar direito que lhe foi delegado e que por isso mesmo só por ele poderia ser exercitável;

b) não podia delegar direito que não tinha.

c) lei ordinária e, a fortiori, norma regulamentar ou baixada por Portaria, Instrução Normativa etc, não pode alterar preceito de lei complementar.

Vejamos ementas no mesmo sentido do acórdão relatado pelo Ministro Humberto Gomes:

TRIBUNAL:TR5 ACORDÃO RIP:05053072 DECISÃO:31-10-1991 PROC:AC NUM:00510276 ANO:91 UF:CE TURMA:01 REGIÃO:05 APELAÇÃO CIVEL Fonte: Publicação: DJ DATA:18-11-91 PG:29034 Ementa: TRIBUTARIO. CONSTITUCIONAL. DELEGAÇÃO DE COMPETENCIA TRIBUTARIA DO PODER EXECUTIVO AO MINISTRO DE ESTADO E SECRETARIO DA RECEITA FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE. BASE DE CALCULO DO IPI. FIXAÇÃO E CRITERIOS. EXIGENCIA DE LEI. –

NÃO SE CONCEBE DELEGAÇÃO DE COMPETENCIA TRIBUTARIA INSTRUMENTADA POR PORTARIA MINISTERIAL A ENSEJAR, DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, EMISSÃO DE INSTRUÇÃO NORMATIVA, ATRAVES DA QUAL SE ESTABELECEU UMA PAUTA FISCAL, A QUAL A APELANTE DEVERIA OBEDECER. – A FIXAÇÃO DA BASE DE CALCULO DO IPI DEVE DECORRER DE LEI. – INTELIGENCIA DO ART. 21, I E V DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 67, VIGENTE A EPOCA, E DO ART. 97 DO CTN. Informações da Origem: TRIBUNAL:TR5 ACORDÃO RIP:05053072 DECISÃO:31-10-1991 PROC:AC NUM:00510276 ANO:91 UF:CE TURMA:01 REGIÃO:05 Relator: JUIZ:510 – JUIZ FRANCISCO FALCÃO Observações: DECISÃO UNANIME.


TRIBUNAL: TR5 ACORDÃO RIP: 05241151 DECISÃO:27-05-1997 PROC:AC NUM:00585518 ANO:95 UF:PE TURMA:02 REGIÃO:05 APELAÇÃO CIVEL Fonte: Publicação: DJ DATA:20-06-97 PG:46599 Ementa: TRIBUTARIO. I.P.I. BASE DE CALCULO. VALOR DA OPERAÇÃO. CTN. ART. 47, II, “A”. APLICABILIDADE. ART. 146, III, “A”, DA C.F. LEI 7.798/89, ART. 75. INAPLICABILIDADE. ART. 97, IV DO CTN. INCOMPATIBILIDADE OU NÃO RECEPCIONALIDADE COM A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. AÇÃO ANULATORIA DE AUTO DE INFRAÇÃO. AÇÃO CAUTELAR. EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL.

1 – A REGRA INSCULPIDA NO ART. 146 DA C.F. QUE OUTORGAR A LEI COMPLEMENTAR, ENTRE OUTROS, A COMPETENCIA EXCLUSIVA PARA A DEFINIÇÃO DA BASE DE CALCULO, TORNA INCOMPATIVEL COM NOVA CARTA CONSTITUCIONAL O ART. 97, IV DO CTN QUE EXPRESSAMENTE CONFERE A LEI ORDINARIA ESTABELECER A BASE DE CALCULO DO TRIBUTO, O QUE RESULTA NA SUA NÃO RECEPÇÃO.

2 – A BASE DE CALCULO DO IPI E O VALOR DA OPERAÇÃO DE QUE DECORRE A SAIDA DA MERCADORIA (CTN, ARTSAS . 46, II C/C 47, II, “A”, C/C 51, II). 3 – PROVIDA A APELAÇÃO QUANTO A AÇÃO ANULATORIA, PARA ANULAR O AUTO DE INFRAÇÃO; PROVIDA A APELAÇÃO QUANTO AOS EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL PARA ANULAR A CDA, EXTINGUIR A EXECUÇÃO FISCAL E LIBERAR A PENHORA. Informações da Origem: TRIBUNAL:TR5 ACORDÃO RIP:05241151 DECISÃO:27-05-1997 PROC:AC NUM:00585518 ANO:95 UF:PE TURMA:02 REGIÃO:05 Relator: JUIZ:506 – JUIZ PETRUCIO FERREIRA

Os precedentes jurisprudenciais do STJ, mais o texto normativo e a doutrina, são uníssonos.

DO PRINCÍPIO DA ESTRITA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

Ainda que as pautas de valores tivessem sido baixadas pelo Chefe do Executivo, ainda assim não poderiam ser validamente utilizadas, na exata medida em que afrontam o princípio constitucional da estrita legalidade tributária, enunciado no art. 150, I, CF/88:

“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; …”.

Imperioso registrar que não obstante a norma constitucional referir-se apenas a i) exigência ou ii) aumento de tributo, é certo que a mesma deve ser entendida como uma garantia fundamental (art. 5º, § 2º, CF/88) do contribuinte, e que visa a:

1) proteger o contribuinte contra o “poder” estatal de instituir e exigir tributos em detrimento da garantia de inviolabilidade do direito à propriedade; e,

2) assegurar o atendimento do primado da isonomia (= conferir tratamento paritário àqueles que se encontram na mesma situação jurídica), tendo em conta as características fundamentais da lei, quais sejam, a generalidade e a abstração.

Ou seja, o intuito legis consiste em salvaguardar o contribuinte de uma oneração financeira excessiva, resultante de arbítrio do Executivo, de forma que regras relativas a matéria tributária necessitam, para incidir validamente, ser discutidas e votadas pelos representantes eleitos pelo povo, e que devem, portanto, ser veiculadas necessariamente por meio de lei (formal).

Exigência e aumento dizem respeito às situações normais em que se verifica essa oneração direta a ser suportada pelo contribuinte.

Contudo, como ocorre no caso em tela e que será mais adiante objeto de explanação específica, podem ocorrer situações em que o Fisco, através de meios indiretos, acaba por onerar, utilizando-se da desoneração, mais determinados contribuintes do que outros, que se encontram na mesma situação jurídica.

Tal acontece quando subsidia, dispensando de pagamento parcial de imposto de forma desigual certos contribuintes, criando um sistema tributário que, aparentemente legal e benéfico a todos, na verdade discrimina.

É o que se verifica, via de regra, no caso da utilização das pautas fiscais ou pautas de valores, no caso das cervejas, refrigerantes e águas, especificamente, e demais produtos dos capítulos 21 e 22 da TIPI (doc. nº 06), segundo a Lei nº 7798/89.

É que a tributação, segundo os sucessivos Atos Declaratórios editados pelo Secretário da Receita Federal, não reflete a realidade das operações de circulação das mercadorias industrializadas vendidas. Esta ilicitude nivela todos os contribuintes de determinada exação fiscal (embora inferior o cobrado) ao quantum que seria devido se a base de cálculo fosse o valor da operação, infringindo a legislação vigente porque a ilicitude evita a exata subsunção dos fatos concretos às normas legais incidentes.

De resto, a jurisprudência reiteradamente tem proscrito a utilização de pautas fiscais para efeito de determinação da base de cálculo de qualquer tributo:

“TRIBUTÁRIO. ICM. ENTRADA E SAÍDA DE CANA EM CAULE. DIFERIMENTO. BASE DE CÁLCULO. PAUTA FISCAL. INADMISSIBILIDADE.

A base de cálculo do tributo só pode ser estabelecida por lei e no caso do ICM corresponde ao valor da operação de que decorra a saída da mercadoria.

É defeso ao Estado, por simples portaria e resolução fixar esse valor com base em pauta de valor fiscal, ao arrepio da legislação que fixa a base de cálculo como sendo o valor da operação”(REsp. 87.749/SP, DJU de 01/07/96, pág. 24.060)


“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS (ICMS). BASE DE CÁLCULO. FIXAÇÃO ATRAVÉS DE PAUTAS DE PREÇOS OU VALORES. INADMISSIBILIDADE.

Quer se entendam as pautas fiscais como presunção legal ou ficção legal da base de cálculo do ICMS, é inadmissível a sua adoção aprioristicamente para esse fim. A lei de regência do tributo (….) determina que a base de cálculo é o ‘valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria’ (…)

Mesmo que tomada como presunção relativa, a pauta de valores só se admite nos casos do artigo 148 do Código Tributário Nacional, em que, mediante processo regular, se arbitre a base de cálculo, se inidôneos os documentos e declarações prestadas pelo contribuinte. (…) (REsp. 23.313-0/GO, DJU de 15/02/93, pág. 1.670)

“TRIBUTÁRIO. ICM. PAUTAS FISCAIS

Cobrança de ICM com base em pautas fiscais é ilegal. (REsp. 48.951-2/SP, DJU de 22/98/94, pág. 21.229)

Veja-se, ainda, no mesmo sentido: REsp. 12.250-0/SP, DJU de 24/05/93, pág. 9.980; REsp. 7.096-0/SP, DJU de 27/06/94, pág. 16.882; REsp. 47.831-6/SP, DJU de 22/08/94, pág. 21.224; REsp. 7.449-0/SP, DJU de 16/08/93, pág. 15.956; REsp. 22.621-0/SP, DJU de 16/08/93, pág. 15.965; REsp. 30.601-6/SP, DJU de 17/05/93, pág. 9.306; REsp. 81.642/SP, DJU de 26/08/96, pág. 29.645; REsp. 71.865/SP, DJU de 26/08/96, pág. 29.641; REsp. 60.036-7/SP, DJU de 08/05/95, pág. 12,327; REsp. 64.189-6/SP, DJU de 19/06/95, pág. 18.665 etc.

Além da ilegalidade da delegação, como explicitado anteriormente, outro aspecto merece destaque na Lei nº 7798/89. Esta, ao tratar da questão da fixação de classes de valores a que se sujeitam os produtos elencados nos Capítulos 21 e 22 da TIPI, em seus arts. 2º e 3º determina expressamente que:

“Art. 2º – O enquadramento do produto na classe será feito pelo Ministro da Fazenda, com base no que resultaria da aplicação da alíquota a que o produto estiver sujeito na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI, sobre o valor tributável.

§ 1º – Para efeito deste artigo, o valor tributável é o preço normal da operação de venda, sem descontos ou abatimentos, para terceiros não interdependentes ou para coligadas, controladas ou controladoras … ou interligadas

§ 2º – O contribuinte informará ao Ministério da Fazenda as características de fabricação e os preços de venda, por espécie e marca do produto e por capacidade do recipiente.”

“Art. 3º – O Poder executivo poderá, em relação a outros produtos dos Capítulos 21 e 22 da TIPI, aprovada pelo Decreto nº 97.410, de 23 de outubro de 1988, estabelecer classes de valores correspondentes ao IPI a ser pago.

§ 1º – Os valores de cada classe deverão corresponder ao que resultaria da aplicação da alíquota a que o produto estiver sujeito na TIPI, sobre o valor tributável numa operação normal de venda. …

§ 4º – Os valores, estabelecidos para cada classe serão reajustados automaticamente nos mesmos índices do BTN ou, tratando-se de produto de preço de venda controlado por órgão do Poder Executivo, nos mesmos índices e na mesma data de vigência do reajuste.”

Ou seja, as disposições legais deixam consignadas que: i) uma coisa é estabelecer classes de produtos; ii) outra é fixar valores “ad valorem”, sendo certo que ainda que fosse legítimo o estabelecimento destes, teriam eles que espelhar o valor efetivo de mercado dos produtos.

Quanto ao ANEXO I (doc. nº 07), citado no artigo 1º, da Lei 7798/89, elenca ele produtos e classes mínimas e máximas, dentre os quais não se encontram as cervejas, refrigerantes e águas, produtos que foram alcançados em razão do disposto no artigo 3º da mesma lei, como exposto, ao cuidar de declinar os requisitos para o enquadramento de classes, nestes termos:

“O enquadramento inicial dos produtos nas classes ocorrerá segundo:

a) a capacidade do recipiente em que são comercializados, agrupados em quatro categorias: (…)

IV…;

b) os preços normais de venda efetuada por estabelecimento industrial ou equiparado a industrial ou os preços de venda do comércio atacadista ou varejista;

c) os produtos acondicionados em recipiente de capacidade de 1.000ml, arredondando-se para 1.000ml a fração residual, se houver”

Como visto, uma coisa é criar classe de produtos para individualizar unidades de produtos, outra é fixar valores para eles, sem explicação, como se vê do ANEXO II (doc. 08), sem o atendimento aos próprios pressupostos de admissibilidade.

Conforme se pode observar na planilha mais adiante exposta, os valores de IPI arbitrados pelo Fisco federal são inferiores ao que seria devido se tivesse sido levado em consideração o valor de mercado dos produtos industrializados em comento.


Os parâmetros utilizados pelo Fisco para aferição do que seria o valor efetivo de mercado sob nenhum ângulo espelham a realidade das vendas.

Assim, ainda que não houvesse o vício da delegação de competência, o que se admite a título argumentativo, ainda assim a conduta fiscal estaria viciada de ilegitimidade, posto que, à evidência, não atende aos mandamentos da Lei nº 7798/89, quando alude expressamente, e em diversas passagens, anteriormente destacadas, a “valor tributável”, “operação normal de venda”, “preço de venda” etc.

Destarte, também sob esse aspecto devem ser desconstituídas as pautas fiscais fixadas e alteradas pelos inúmeros e sucessivos Atos Declaratórios e demais atos normativos infralegais, com base na igualmente inconstitucional e ilegítima delegação de competência outorgada pelo Chefe do Executivo.

Admais, os conceitos definidos na Constituição não podem ser modificados ou alterados por legislação infra constitucional a teor dos artigos 109 e 110 do CTN.

Do princípio da isonomia e a capacidade contributiva

Especificamente sob o ângulo da isonomia, garantia fundamental que, além da previsão constante do art. 5º, I, da CF/88, recebeu tratamento peculiar, em matéria tributária, no inc. II, do art. 150, do texto constitucional, verbis:

“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: … II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; …”(14)

A sistemática adotada pelos sucessivos Atos Declaratórios baixados pelo Secretário da Receita Federal, atos infralegais anteriormente referidos, faz com que o pagamento do IPI segundo a pauta seja menor do que seria devido.

Tendo o Secretário da Receita Federal arbitrado o valor da base de cálculo do valor a ser pago a título de IPI incidente sobre cervejas, refrigerantes, águas etc, segundo classes de unidades, em montante inferior ao devido – se tomado o valor da operação mercantil, o que pode parecer um benefício fiscal acaba por constituir uma forma desigual e ruinosa de tributação, beneficiando determinadas empresas – geralmente aquelas que dominam o mercado em detrimento de outras, em regra, as menores -, alimentando a concentração e formação de cartel.

Tal conduta fere o princípio da capacidade contributiva, que tem eficácia plena e aplicabilidade direta. O princípio de que cada um deve contribuir de acordo com a sua condição econômica foi abraçado pela Revolução Francesa e esteve presente na primeira Constituição brasileira, de 1824.

Constitui a pauta fiscal de IPI, fixada pelos diversos Atos Declaratórios apontados, para as bebidas já citadas, uma forma engenhosa de estabelecimento de desigualdade, onde aqueles contribuintes que mais caro cobram os seus produtos, menos imposto pagam, proporcionalmente.

Os fatos podem ser assim sintetizados:

1) entre as diversas indústrias do setor produtivo de cervejas, refrigerantes e águas, o preço de venda varia de acordo com seus custos. As pequenas cervejarias e fabricantes de refrigerantes, etc, para concorrer com as grandes, reduzem os seus lucros, controlam suas despesas, tornam anêmica a propaganda, a qual tem peso significativo. A carga tributária tão só quanto ao IPI, para as cervejas, corresponde a 80% (oitenta por cento), restando evidente que a desigualdade de tributação equivale a estar ou não no mercado.

2) O valor do IPI, aplicando-se a alíquota sobre a base de cálculo – valor do produto, tem uma consequência direta no valor final do produto industrializado;

3) Assim, logicamente, quanto maior o valor do produto, da operação de venda, maior será o valor do IPI devido;

4) Integrando o valor do IPI o preço final do produto, o seu peso é fundamental para estabelecer a concorrência e estar participante nos atos de comércio;

5) Ao exigir o Fisco federal o IPI com base em pauta fiscal, estabelecendo valor predeterminado e uniforme a ser recolhido, indistintamente, por todas as indústrias do setor, inferior ao que deveria ser pago por todas elas, acaba por, de uma só vez: a) dispensar o pagamento de tributo sem que tenha estabelecido isenção; b) dá desconto desigual, beneficiando a quem tem preço mais elevado, contribuindo para alijar ou colocar à margem da lei aqueles contribuintes que podem oferecer preços inferiores.

Considerando-se que para o produto cerveja a alíquota é de 80% (oitenta por cento), basta projetar-se tal peso para comprovar a conclusão da desigualdade criada pela tributação arquitetada.


Tome-se como exemplo o faturamento das principais fabricantes de cerveja no período dos últimos 12 (doze) meses, segundo a quantidade (volume) fornecido pela fonte AC NIELSEN*:

Clique aqui para ler a tabela

É isso mesmo. Para um só produto, num prazo de 12 (doze) meses, somente, isto é: cerveja 600 ml, a dispensa de imposto foi da ordem de R$ 1.028.908.248,91 (um bilhão, vinte e oito milhões, novecentos e oito mil, duzentos e quarenta e oito reais e noventa e um centavos).

Ao que tudo indica, consideradas todas as cervejas, refrigerantes e águas vendidos e o número de anos em que a situação se repete, poder-se-á chegar a aproximadamente R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais), o montante do IPI dispensado.

A situação merece a devida consideração.

Tal mecanismo, a toda evidência, representa afronta direta ao princípio da isonomia e ao princípio da capacidade contributiva. Constitui forma diferenciada de tributação. Apresenta-se como recurso inverso ao da aplicação da capacidade contributiva. Apesar de todas recolherem valores menores a título de IPI, algumas empresas recolhem muito menos do que outras, o benefício fica com quem tem mais poder econômico, numa inversão que o sistema não pode admitir.

É a utilização do tributo indireto em prejuízo do Erário Federal e contrário aos princípios tributários, premiando os contribuintes de maior capacidade contributiva em detrimento dos seus congêneres de menor fôlego econômico.

A respeito do princípio em comento, Roque Antonio Carrazza ensina que:

“O princípio da capacidade contributiva hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade e ajuda a realizar, no campo tributário, os ideais republicanos. Realmente, é justo e jurídico que quem, em termos econômicos, tem muito pague, proporcionalmente, mais imposto do que quem tem pouco. Quem tem maior riqueza deve, em termos proporcionais, pagar mais imposto do que quem tem menor riqueza. Noutras palavras, deve contribuir mais para a manutenção da coisa pública. As pessoas, pois, devem pagar impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, de seus índices de riqueza.

O princípio da capacidade contributiva informa a tributação por meio de impostos. Intimamente ligado ao princípio da igualdade, é um dos mecanismos mais eficazes para que se alcance a tão almejada Justiça Fiscal….

O princípio da igualdade exige que a lei, tanto ao ser editada, quanto ao ser aplicada: a) não discrimine os contribuintes que se encontrem em situação jurídica equivalente; b) discrimine, na medida de suas desigualdades, os contribuintes que não se encontrem em situação jurídica equivalente.

No caso dos impostos, estes objetivos são alcançados levando-se em conta a capacidade contributiva das pessoas (físicas ou jurídicas).” (15)

Do princípio da livre iniciativa e livre concorrência

O art. 174 da Constituição federal dispõe que “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”.

O termo “Estado” no discurso constitucional, por óbvio, engloba tanto a União, como os Estados-membros e os Municípios. Da mesma forma, a expressão “fiscalização”, de seu turno, significa que ao Estado, lato sensu considerado, incumbe a atividade de zelar pela observância dos princípios que informam a ordem econômica.

Reportando-se a esse artigo 174 da CF e à sua abrangência, diz Eros Roberto Grau(16):

“Essa atividade, de fiscalização, é desenvolvida, evidentemente, em torno de um objeto. Fiscalizar significa verificar se algo ocorre, sob motivação de efetivamente fazer-se com que ocorra – ou não ocorra. Assim, fiscalizar, no contexto deste art. 174, significa prover de eficácia as normas produzidas e medidas encetadas, pelo Estado, no sentido de regular a atividade econômica. Essas normas e medidas, isto é evidente – nítido como a luz solar passando através de um cristal bem polido – hão de necessariamente estar a dar concreção aos princípios que conformam a ordem econômica”

Ora, entre os princípios constitucionais que informam a ordem econômica está a livre concorrência. A ordem econômica, diz a CF/88 (art. 170, IV), “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (….) IV – livre concorrência”.

Concorrência, diz Carlo Barbieri Filho(17), “é disputa, em condições de igualdade, de cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais”.


O objetivo da livre concorrência, observa Luiz Cabral de Moncada(18), “é assegurar uma estrutura e comportamento concorrenciais dos vários mercados no pressuposto de que é o mercado livre que, selecionando os mais capazes, logra orientar a produção para os setores susceptíveis de garantir uma melhor satisfação das necessidades dos consumidores e, ao mesmo tempo, a mais eficiente afetação dos recursos disponíveis, que é como quem diz os mais baixos custos e preços. A concorrência é assim encarada como o melhor processo de fazer circular e orientar livremente a mais completa informação econômica quer ao nível do consumidor quer ao nível dos produtores, assim esclarecendo as respectivas preferências”

O que a livre concorrência repudia, em primeiro plano, é a dominação do mercado, através de trustes e cartéis, com o que ficaria comprometido o desiderato consistente nos “mais baixos custos e preços”, bem como a “melhor satisfação das necessidades dos consumidores” de que fala Moncada no tópico acima reproduzido.

É por isso que adverte Pontes de Miranda(19): “Dominar os mercados nacionais, entenda-se: ficar em situação de poder impor preço de mão-de-obra, de matéria-prima, ou de produto, ou de regular, ao seu talante, as ofertas”

Não há “disputa em condições de igualdade” de que fala Carlo Barbieri Filho, quando o Estado, por vias oblíquas e sob o disfarce de pautas fiscais, deixa de cobrar o imposto que lhe é efetivamente devido com o objetivo de favorecer determinadas empresas que, assim beneficiadas, ficam em condições de fixar preços ou regular a oferta de forma tal que os outros contribuintes, não favorecidos pelas mesmas benesses, jamais poderão concorrer, incidindo, pois, na censura de Pontes de Miranda.

Do princípio que veda a criação de cartéis

Ao dificultar a continuidade da atividade econômica das empresas de menor capital do setor de cervejas, refrigerantes e águas, fomenta o Estado a criação de cartel, o que deve ser repudiado.

Nesse sentido, estabelece o § 4º, do art. 173, da Carta Magna:

“Art. 173 – …

§ 4º – A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. …”

Da usurpação de competência legislativa e o princípio da Separação de Poderes

A par de todas as ilegitimidades enfocadas, tomando-se por base a idéia acima esposada, mesmo que, ad argumentandum, se se considerasse legítima a redução da base de cálculo concedida, ter-se-ia que, por meio de atos infralegais, da lavra do senhor Secretário da Receita Federal, a dispensa de pagamento de tributo infringe o primado da Separação dos Poderes, uma vez que compete exclusivamente ao Poder Legislativo editar normas sobre a base de cálculo.

A dispensa do pagamento de tributo equivale à isenção parcial e desigual.

Resta evidente que se a norma de tributação decorre de lei, a dispensa de carga tributária, ainda que parcial, reclama igual ação legislativa, na área federal.

Poder-se-ia dizer que a renúncia fiscal consubstanciada na dispensa parcial do IPI incidente sobre as operações com bebidas (frias), se não classificável como isenção parcial equivaleria mesmo à remissão, assim entendida como perdão legal do débito tributário, o que mais uma vez exigiria lei.

Não é possível ignorar que a ação consubstanciada na dispensa de arrecadação nos termos fixados pelos Atos Declaratórios do senhor Secretário da Receita Federal equivale à violação do princípio da indisponibilidade do interesse público.

Da violação à repartição de receitas tributárias

A dispensa parcial de arrecadação fere ainda interesses dos Estados, Municípios e Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, na exata medida em que desobedecidos os mandamentos constantes do artigo 159 da Constituição Federal que têm a seguinte dicção:

“Art. 159. A União entregará:

I. do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, quarenta e sete por cento na seguinte forma:

a) vinte um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participações dos Estados e do Distrito Federal;

b) vinte e dois por inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;

c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer”.


Portanto, por qualquer ângulo que se enfrente a dispensa de arrecadação, que é feita de forma ilícita, onde se constata que ela tenciona beneficiar alguns, coincidentemente os mais fortes, em detrimento dos mais fracos, com lesão ainda a Estados e Municípios e Regiões específicas, a conclusão de ilegitimidade se apresenta às escâncaras .

A legislação do IPI não pode ser utilizada para fazer política nem servir de amparo à tributação discriminatória, com atuação inversa ao estabelecido no princípio da capacidade contributiva como já ficou claro.

DO FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA

Emerge de todo o exposto que a ruinosa, ilegítima e discriminatória utilização de “pauta fiscal” para a cobrança de IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados -, decorrente da industrialização das cervejas, refrigerantes e águas, não pode ser aceita sobre qualquer ângulo que se enfrente o tema.

Assim, demonstrado à saciedade os desacertos, as ilegalidades e as ilicitudes da desmotivada utilização da “pauta fiscal”, justifica-se a urgente necessidade de ser deferido o pedido Liminar, para a imediata suspensão da aplicabilidade dos Atos Declaratórios que a instituíram, todos de autoria do Sr. Secretário da Receita Federal, a fim de que, até o julgamento final da presente ação, a cobrança do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados -, tenha como base de cálculo aquela fixada pelo art.47 do Código Tributário Nacional, com a exclusão de qualquer outra.

O “periculum in mora”, a justificar a urgência no deferimento da Liminar, é uma decorrência natural das cotidianas perdas financeiras sofridas em razão do montante a menor da receita auferida pela União Federal a título de Imposto sobre Produtos Industrializados incidente sobre a industrialização de cervejas, refrigerantes e águas – estimada em de R$ 1.028.908.248,91 (hum bilhão, cento e vinte e oito milhões, novecentos e oito mil, duzentos e quarenta e oito reais e noventa e um centavos/anuais -, e seus conseqüentes reflexos orçamentários em todo o patrimônio público nacional, sempre carente de maiores recursos, inclusive para a própria manutenção desse mesmo patrimônio.

Em relação a este mesmo requisito – periculum in mora -, não pode ser olvidado que a perda de receita do IPI, tal como ora apontada, atinge diretamente não só a União mas, de maneira igual, os Estados federados, os Municípios e determinadas Regiões geográficas, conforme destacadamente restou demonstrado, em decorrência da obrigatória repartição das receitas provenientes de sua cobrança, conforme determina o art. 159 da atual Carta Política. Da mesma forma, fere o interesse social, pois a população será prejudicada sem recursos públicos para saúde, educação, segurança etc. E a moralidade pública, bem jurídico maior, com o ordenamento, também estão sendo prejudicados.

Quanto ao “fumus boni iures”, igualmente exigido para a concessão da Liminar, este restou cabalmente demonstrado no corpo da presente ação, sendo, pois, desnecessário enumerá-la em repetição, atento ao princípio da economia.

Face ao exposto, deferido o pedido Liminar, tal como formulado, é a presente para requerer a citação da ré, efetuada segundo as disposições da Lei Complementar nº 73/95, para que, no prazo que lhe faculta a lei, venha contestar a presente, sob pena de revelia, valendo a citação para todos os demais atos e termos processuais, até final sentença, devendo esta ação ser julgada simultaneamente com a ação principal que será ajuizada nos dias seguintes.

Com efeito, o fumus boni iuris se caracteriza na medida em que restou amplamente demonstrada a série de ilicitudes constantes dos atos administrativos concretos, objeto deste processo cautelar. Os argumentos expostos como causas de pedir demonstram suficientemente o fumus boni iuris.

Já no que se refere ao periculum in mora, tem-se que a União não pode diminuir ilicitamente o IPI sobre cerveja, água e refrigerante, muito menos beneficiando algumas empresas em detrimento de outras.

A União está prestes a sofrer prejuízo que pode e deve ser evitado mediante uma liminar. E mais, acima de tudo, há um grave atentado ao princípio da moralidade administrativa: se as normas jurídicas sobre o IPI não foram observadas, estará consolidado um prejuízo bilionário para a União e para o povo brasileiro.

Verifica-se o periculum in mora na medida em que, sem a concessão da liminar ora pleiteada, os recursos públicos serão perdidos de forma ilegal e profundamente imoral.

Todo exame sobre liminar tem como base os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Um artigo recente do Dr. Antônio Souza Prudente tem bons argumentos que, por analogia, podem ser aplicados ao caso concreto e seguem transcritos:


“Nessa linha de entendimento, observa o ilustre juiz federal João Carlos Mayer Soares que ‘‘sufragar a postura adotada pela Fazenda — vedação incondicional e irrestrita de antecipação do provimento meritório — importa o rompimento com o modelo da procura pela eficácia ótima idealizado por Georg Ress, que ressalta a importância da aplicação, pelo juiz, de verdadeiro juízo de eqüidade — de reflexão dos prós e contras, de averiguação de excessos na relação entre os meios e os fins — na solução do caso concreto. O respeito ao princípio da proporcionalidade, ao qual nenhum ato normativo está infenso, exige, por parte do órgão julgador, o acesso a methods of reasoning do qual é modalidade o equilibrado prudential approach, tão aplicado no Direito norte-americano.

O princípio da razoabilidade comanda o processo justo, pois não é razoável nem justo obrigar o autor a esperar a realização de um direito que não se mostra mais controvertido, nos tribunais.

Com essa inteligência, a norma do artigo 273, I, do CPC, determina que o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, quando fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

A tutela antecipatória, nesse caso, não se funda em probabilidade ou verossimilhança das alegações do autor, mas na certeza do direito declarado pelo tribunal superior competente, a não mais exigir um mero exercício de cognição sumária, mas uma cognição plenamente exauriente, sem riscos ao direito de defesa e ao contraditório constitucionais, nem mesmo de ser revogada ou modificada a qualquer tempo pelas vias recursais, posto que se acha afinada ao que já se decidiu na derradeira instância jurisprudencial.

Adverte Guilherme Marioni que ‘‘a antecipação no caso de abuso de direito de defesa, na verdade tem certo parentesco com o réferé provision do direito francês. Através da provision é possível a antecipação quando l’obligation ne soit pas sérieusement contestable (‘‘a obrigação não é seriamente contestável’’, arts. 771 e 809 do Código de Processo Civil Francês)”.

Todos os argumentos expostos nesta ação são plausíveis; a probabilidade e a verossimilhança das alegações bastam, para, numa análise sumária, fundamentarem a concessão das liminares requeridas abaixo.

O MPF, em respeito ao sagrado direito de defesa, requer, respeitosamente, que a entidade pública seja ouvida no prazo de 72 horas, de acordo com o art. 2o. e 4o. da Lei n. 8.437. Ainda que o STF, o STJ e os TRFs tenham abrandado a exigência de oitiva prévia, não havendo tanta urgência e sendo possível aguardar até 72 horas, a prudência recomenda a oitiva prévia da pessoa jurídica de direito público apontadas, no caso a UNIÃO, como parte neste feito.

DOS PEDIDOS LIMINARES

Diante de todo exposto, reitera-se, perante Vossa Excelência, o pedido:

a) a concessão de medida liminar para, diante das ilicitudes apontadas, e ilegalidades e da desmotivada utilização da “pauta fiscal”, justifica-se a urgente necessidade de ser deferido o pedido Liminar, para a imediata suspensão da aplicabilidade dos Atos Declaratórios que a instituíram, atos administrativos concretos, todos de autoria do Sr. Secretário da Receita Federal, a fim de que, até o julgamento final da presente ação e da ação principal, a cobrança do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados -, tenha como base de cálculo aquela fixada pelo art. 47 do Código Tributário Nacional, assim o MPF requer a determinação para que a Receita aplique o CTN na cobrança do IPI sobre água, bebidas alcoólicas e refrigerantes;

b) a confirmação da liminar no julgamento do mérito desta ação;

c) a citação dos requeridos nos endereços acima declinados; e

d) a condenação dos réus em custas e honorários advocatícios, nos termos da lei.

Especificação da ação principal: cuidar-se-á de ação civil pública, que terá as mesmas causas de pedir e como pedido anular os efeitos e os Atos Declaratórios do Secretário da Receita Federal, cf. enumerados nas folhas anteriores dessa peça, restaurando, assim, o império da lei e determinando que a cobrança do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados -, incidente sobre cervejas, refrigerantes e águas seja efetivado exclusivamente pelo valor da operação. O MPF talvez venha a ajuizar ação de improbidade, ponto que está sendo estudado.

Protesta provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitido, sem exceção de nenhum, notadamente a requisição de procedimentos administrativos, perícias, juntada de documentos, depoimentos, etc..

No mais, por estimativa, dá-se a presente o valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais).


Termos em que, com os anexos documentos,

Pede deferimento.

Brasília, 11 de julho de 2000.

Notas de rodapé

1- Rubens Gomes de Sousa, “Idéias Gerais sobre os Impostos de Consumo”, in “Estudos de Direito Tributário”, Saraiva, SP, 1950, págs. 51 e 57.

2- “Reforma Tributária Nacional”, publ. no 17 da FGV, 1o Relatório, pág. 47; 2o Relatório, pág. 93.

3- Parecer dado a ABRAFET – Associação Brasileira de Fabricantes de Equipamentos Telefônicos, texto não publicado.

4- RDP 10/111

5- José Manoel da Silva, in “Reforma Tributária”, publicação da FIESP, SP, 1965, pág. 14; Paulo Celso B. Bonilha, “IPI e ICM – Fundamentos da Técnica não Cumulativa”, co-edição IBDT/Resenha Trib., SP, 1979, págs. 91/92; Ruy Barbosa Nogueira,. “IPI, ICMS E ISS: Fatos Geradores Afins ou Confrontantes”, in “Direito Tributário Atual”, co-ed. IBDT/ Ed.Res. Tribut., SP, 1992, vol. 11-12, pág. 3.127.

6- É importante registrar que a Lei 4502/64 – lei de regência do IPI – prevê, em seu art. 13, como única forma de cálculo da exação fiscal referida a aplicação da alíquota sobre o valor tributável do produto.

Assim, quando o RIPI (Dec. 2637/98), no parágrafo único do art. 117 possibilita a criação de outras modalidades de cálculo do imposto inova ilegitimamente.

Como se sabe, no Brasil somente os regulamentos executórios são admitidos, servindo apenas para auxiliar a fiel execução da lei. Ou seja, somente a lei pode inovar a ordem jurídica, cabendo ao regulamento (cujo veículo normativo é o Decreto) apenas emanar normas que visem à perfeita aplicação da lei (art. 84, IV, 2ª parte da CF/88). Não pode, em hipótese alguma, inovar, como fez o Dec. 2637/98, no parágrafo único do art. 117, sendo inválido, pois, nesse tocante.

7- Redação dada pela Lei 7798/89, art. 15.

8- grifamos

9- in “Hipótese de incidência tributária”, coleção Estudos de Direito Tributário, 5ª ed., ed. Malheiros, SP, 1994, pp. 96, 99 e 101.

10- Também na sistemática do antigo RIPI (aprovado pelo Decreto nº 87.981/82) havia disciplina semelhante: o assunto vinha tratado em seus arts. 73 a 75, e em especial para o caso em tela, em seu art. 74, onde o Chefe do Executivo federal delegou ao Ministro da Fazenda. As classes de valores foram, então, instituídas por meio da Portaria MF nº 282, de 15/05/80. Posteriormente, por delegação do Ministro da Fazenda, outorgada pela Portaria MF nº 957 (doc. nº 09-A), de 07/12/79, e, posteriormente, pela Portaria MF nº 678 (doc. nº 09-B), de 22/10/92, ao Secretário da Receita Federal, este alterava periodicamente as classes de valores (v.g., IN SRF nº 61, de 15/06/84; 135, de 13/12/84; 48, de 14/06/85; 98, de 13/12/85; 132, de 25/11/86; 68, de 29/04/87; 90, de 29/06/87; 127, de 23/09/87; 139, de 13/10/87; 165, de 18/12/87; 79, de 09/05/88).

11- “Art. 128 – Os produtos classificados nas posições 2201, 2202 e 2203 e no código 2106.90.10 Ex 02 da TIPI serão enquadrados em classes de valores de imposto, por ato do Secretário da Receita Federal (Lei nº 7798, de 1989, art. 3º) …”

12- Resp nº 24.861-2/CE; Recte.: Fazenda Nacional; Recda.: Destilaria Dandiz Ltda.; rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j. 15/12/93; in DJ de 21/2/94.

13- De se esclarecer que, por Poder Executivo, deve-se entender Presidente da República, que é o Chefe do Poder Executivo, nos expressos termos do art. 76, do texto constitucional: “Art. 76 – O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.” (grifamos)

Os Ministros de Estado são apenas auxiliares do Presidente da República. E, no caso em tela, o Secretário da Receita Federal é subordinado a um dos Ministros de Estado, qual seja, o Ministro da Fazenda.

Não há, portanto, como se argumentar no sentido de que sendo facultado ao Poder Executivo a definição da alíquota, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado à base de cálculo.

Em suma, tem-se que:

por Poder Executivo deve-se entender Presidente da República;

a) o dispositivo constitucional em comento refere-se apenas à alíquota, sendo certo o repúdio à utilização da analogia em matéria tributária;

b) o veículo normativo apto a exteriorizar regras destinadas à ‘fiel execução da lei’ é o Decreto;

a norma constitucional enfocada expressamente remete à necessidade da lei estabelecer os limites e condições para a alteração da alíquota dos impostos nela tratados, dentre os quais o IPI.

14- Grifamos

15- in “Curso de Direito Constitucional Tributário”, ed. Malheiros, 12ª ed., pp.65/67.

16- “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, Malheiros Ed., SP, 1997, págs. 301-2, grifamos.

17- “Disciplina Jurídica da Concorrência – Abuso do Poder Econômico”, Ed. Res. Trib., SP, 1984, pág. 119.

18- “Direito Econômico”, Ed. Coimbra, Coimbra, 2ª ed., pág. 313.

19- Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969”, Ed. RT, SP, 2ª ed., vol. 6/51.

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