Blindagem de direito

OAB cobra fim de invasão de escritórios ao CNJ

Autor

23 de junho de 2005, 17h31

A Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao CNJ — Conselho Nacional de Justiça que apure ato do juiz federal da 1ª Vara de Itaboraí, no Rio de Janeiro, que determinou a busca e apreensão em escritórios de advocacia na semana passada. A autorização foi dada dentro da Operação Cevada, que investiga sonegação fiscal praticada por cervejarias. Um dos escritórios invadidos foi o do advogado Luiz Olavo Baptista, em São Paulo.

A entidade deu entrada nesta quinta-feira (23/6) em sua primeira representação feita ao CNJ, órgão criado pela Emenda Constitucional 45 (reforma do Judiciário) para controlar as atividades do Judiciário.

Nela, a OAB defende as prerrogativas dos advogados contra atos dos juizes. Segundo a Ordem, o juiz da 1ª Vara de Itaboraí também impediu que os advogados dos acusados pela Operação Cevada, e presos temporariamente, tivessem acesso aos autos, alegando que as investigações correm em sigilo de Justiça.

“O caso é grave porque, estando o cidadão preso, não há como pleitear em seu nome; afinal, sem conhecer o teor dos autos e da decisão que se reputa ilegal ou injusta, não se pode, como parece intuitivo, combatê-la”, sustenta a representação assinada pelo presidente da entidade Roberto Busato.

Instalado no último dia 14, o CNJ tem reunião marcada para a próxima terça-feira (28/6). A representação da OAB foi protocolada sob o número 32 e adverte que, em casos como o ato do juiz federal de Itaboraí, “admitir a perpetuidade ou mesmo a repetição de tal situação equivale a negar o próprio Estado de Direito; é colocar o preso como cera mole nas mãos de seus captores”.

Para Busato, “o quadro sombrio e tenebroso que as invasões de escritórios descortinam, não se compatibiliza com o porquê da reconstrução do Brasil democrático e regido pelo Direito”.

Leia a íntegra da representação

Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente do Egrégio Conselho Nacional de Justiça

A Ordem dos Advogados do Brasil, por seu presidente do Conselho Federal, vem respeitosamente à elevada presença de Vossa Excelência a fim de representar em face de ato do MM. Juiz Federal da 1ª Vara de Itaboraí (RJ) em razão de ter:

i) determinado a realização de busca e apreensão em diversos escritórios de advocacia e

ii) impedido os advogados dos diversos investigados, presos sob o regime de prisão temporária, de ter acesso aos autos sob o argumento de que as investigações corriam em sigilo.

Todos sabemos que o poder punitivo numa democracia encontra-se limitado por várias disposições de caráter constitucional que atingem e restringem o seu exercício. Fortes nesse sentido são as disposições que, ao regular a atividade no processo penal, inadmitem as provas ilícitas e, no direito penal, vedam as penas cruéis, perpétua e de morte. O conjunto de direitos e garantias individuais, inscrito no artigo 5º da Lei Maior impede, concretamente, que se torture alguém em nome, por exemplo, da eficácia repressiva, descoberta da verdade, etc. O mesmo se pode afirmar em relação aos assim chamados grampos telefônicos: a conversa interceptada de forma ilícita, ainda que materialmente possa expressar alguma verdade, é imprestável. Disso se infere que, no campo do processo penal, há limites cognitivos à atividade persecutória estatal erigidos em nome de uma ética reconhecida pelo documento maior de nossa cidadania.

É, portanto, em nome do interesse público, reconhecido pela Constituição, que se veda, repita-se, a introdução no processo de provas ilícitas. Por isso e para ilustrar, não se pode admitir que se tome como válida uma confissão obtida mediante tortura com o argumento de que em nome do interesse público deva prevalecer pelo que nela há de verdadeiro. Sustentar o contrário levaria ao absurdo de se afirmar que o direito de o cidadão não ser torturado, identificado como interesse individual, não pode se sobrepor ao da eficácia repressiva ou da descoberta da verdade real.

No que concerne ao inquérito policial há regra clara no Estatuto do Advogado que assegura o direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter acesso aos autos (art. 7º, inc. XIV) e que não é excepcionada pela disposição constante do §1º, do mesmo artigo, que trata dos casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV do art. 7º não fala a respeito dos inquéritos marcados pelo sigilo. Todavia, quando o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o instrumento procuratório para se viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório. Sim, porque inquéritos secretos não se compatibilizam com a garantia de o cidadão ter ao seu lado um profissional para assisti-lo, quer para permanecer calado, quer para não se auto-incriminar (CF, art. 5º, LXIII). Portanto, a presença do advogado no inquérito, sobretudo no flagrante, não é de caráter afetivo ou emocional. Tem caráter profissional, efetivo, e não meramente simbólico. Isso, porém, só ocorrerá se o advogado puder ter acesso aos autos. Advogados cegos, blind lawyers, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.

O tema ganhou fôlego tanto pela incomum reiteração de decisões indeferitórias de vista, quanto pela irresignação dos advogados que, pasmos, vêm-se impossibilitados de atuar tecnicamente em prol do cidadão que estava sendo chamado para prestar depoimento ou mesmo diante de indiciamentos arbitrários ou, pior ainda, de prisões já consumadas como ocorreu nas famigeradas Operações Anaconda, Farol da Colina, Vampiro e, agora, Cevada. Os advogados não tinham como combater os atos que se abatiam sobre os clientes, pois não conheciam os fundamentos das decisões.

Com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, esperava-se que negar vista de autos de inquérito ao advogado constituído fosse coisa do passado. Afinal, o debate ficou iluminado pela decisão proferida no Habeas Corpus n.º 82.354-8-PR, relatado pelo Ministro Pertence que, entre outras coisas, deixou assentado o seguinte:é perfeitamente possível manejar-se o habeas corpus para se discutir a matéria, pois “o cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na manutenção desta”;

ii) malgrado não se apliquem as garantias do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, existem, não obstante, “direitos do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio”;

iii) “do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial- é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade”.

A conclusão a que, por unanimidade de votos, chegou a Primeira Turma do STF no julgado posto em destaque encerra com propriedade a idéia de que “a oponibilidade (do sigilo) ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações”.

A despeito da clareza do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, não se consegue compreender como juízes, particularmente os federais, continuam dando de ombros à Constituição, à lei e à jurisprudência.

Agora, no famigerado caso da “Operação Cevada” os advogados de investigados presos não puderam ver os autos do inquérito onde a decisão fora prolatada. Atesta-o a representação que segue em anexo subscrita pelos ilustres advogados Fernando Tristão Fernandes, Fernando Augusto Fernandes e Ricardo Sidi Machado da Silva .

O caso é grave porque, estando o cidadão preso, não há como pleitear em seu nome. Afinal, sem conhecer o teor dos autos e da decisão que se reputa ilegal ou injusta, não se pode, como parece intuitivo, combatê-la. Admitir a perpetuidade ou mesmo a repetição de tal situação equivale a negar o próprio Estado de Direito; é colocar o preso como cera mole nas mãos de seus captores.

Não é que se queira reavivar os assim chamados “crimes de hermenêutica”, tal qual o insuperável Rui Barbosa os definiu e se pretenda a punição de juízes por suas decisões. Não! Sem embargo, não se pode negar eficácia à prerrogativa profissional ferida e, tampouco, à lei que reprime o abuso de autoridade (Lei n.º 4.898/65, art. 3º, letra j).

Nesse campo reclama-se, portanto, uma firme ação deste E. Conselho Nacional de Justiça!

Ao lado dos juízes que indeferem a pretendida vista dos autos, há os que, sem chegarem a tanto, permitem (quando não promovem) algo mais funesto. Não se nega formalmente o direito de vista, mas criam-se tantos embaraços que o advogado, de fato, fica sem acesso aos autos. A situação é perversa. O advogado embora, teoricamente, possa ver os autos, não o consegue porque ora estão conclusos, ora com o representante do Ministério Público ou “já foram devolvidos à polícia”.

Para remediar este tipo de situação, convém normatizar-se o procedimento de vista aos autos de inquérito, ou mesmo os denominados procedimento diverso. Assim, submetida a petição de vista ao juiz, ele a apreciará com ou sem os autos, deferindo ou indeferindo o pedido. Deferida a petição de vista formulada pelo advogado, os autos não podem, ao menos por 24 horas, sair do Cartório enquanto o advogado não tiver acesso ao procedimento investigatório. Com tal solução os percalços, mais freqüentes do que se imagina, diminuíram sensivelmente.

Por fim, quanto à determinação de busca e apreensão nos escritórios de advocacia, é pesaroso notar que os mandados são expedidos sem qualquer especificação e, quando a determinação emana de autoridade de outra Região ou Circunscrição, não se expede precatória para que o colega da outra Circunscrição determine o seu cumprimento.

Afora tais irregularidades, que maculam o ato, a Ordem dos Advogados do Brasil alerta para a ilegalidade que a busca de provas nos escritórios de advocacia representa. Sim, porque aqui não estamos falando do profissional que tenha drogas no interior do seu escritório. Aqui se fala do profissional que no curso dos seus afazeres recebe clientes e destes os seus documentos. A inviolabilidade que a Constituição outorga aos advogados neste caso é inquebrantável. Outra intelecção inviabilizará a própria advocacia e, com isso, atinge-se a democracia. Os cidadãos diante do poder punitivo estatal não serão detentores de direitos e garantias, ao menos, isso é certo, não terão quem possa, com independência, falar por eles.

Certamente que o quadro sombrio e tenebroso que as invasões de escritórios descortina não se compatibiliza com o porquê da reconstrução do Brasil democrático e regido pelo direito. A solução que se preconiza é o respeito, mais uma vez, à Constituição e à legalidade. Bem por isso, salvo no caso da prática de crime, não se pode admitir a realização de busca e apreensão nos escritórios de advocacia, máxime com mandados sem especificação.

Eminente Presidente :

A Ordem dos Advogados do Brasil bate, pela primeira vez, às portas deste Conselho Nacional de Justiça para que, em nome do respeito ao Direito e à própria democracia, se faça cessar o arbítrio.

Termos em que, pede deferimento.

Brasília, 22 de junho de 2005.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!