Saúde carioca

Leia o voto de Celso de Mello sobre intervenção em hospitais

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22 de junho de 2005, 16h12

A União não pode intervir em municípios situados no âmbito de Estados-membros — a única pessoa política legítima para tanto é o próprio estado. Assim, somente o estado do Rio de Janeiro pode intervir no município do Rio de Janeiro. Com esse entendimento, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, votou pela inconstitucionalidade da intervenção federal em hospitais cariocas. Na ocasião, em abril, os ministros determinaram a devolução do comando dos hospitais para a prefeitura do Rio.

O governo havia decretado, em março, intervenção federal em seis hospitais do Rio de Janeiro — quatro federais e dois municipais. Segundo a União, o ato seria necessário diante da calamidade pública no setor de saúde na cidade. A intervenção transferiu para o governo federal toda a gestão da rede municipal.

Com a decisão do STF, a prefeitura do Rio de Janeiro retomou a administração dos hospitais Souza Aguiar e Miguel Couto e o governo ficou proibido de usar servidores municipais nos quatro hospitais federais que continuará administrando na cidade.

Para Celso de Mello, o decreto transgrediu o disposto no artigo 35 da Constituição Federal, que veda a adoção de mecanismos excepcionais (caso da intervenção) em municípios que não estejam situados em territórios federais. O ministro afirmou ainda que o artigo 5º, inciso XXV da Constituição prevê que a União só pode incidir sobre propriedade particular. “Qualquer requisição dirigida a um município, como ocorreu na espécie, traduzirá, na realidade, indisfarçável ato de intervenção federal, absolutamente incabível em face do que prescreve a Carta Política”, sustentou.

Leia a íntegra do voto

20/04/2005 – TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 25.295-2 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Ninguém ignora, Senhor Presidente, que a requisição de bens e/ou serviços, nos termos em que prevista pela Constituição da República (art. 5º, inciso XXV), somente pode incidir sobre a “propriedade particular”, conforme adverte autorizado magistério doutrinário (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 797/98, item n. 67, 17ª ed., 2004, Malheiros; JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES, “A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência”, p. 815/820, itens ns. 1/6, 4ª ed., 2000, RT; DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 375/376, item n. 114.2, 14ª ed., 2005, Forense; CARLOS ARI SUNDFELD, “Direito Administrativo Ordenador”, p. 111/112, itens ns. 25/26, 1ª ed./3ª tir., 2003, Malheiros; HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 601/603, 28ª ed., obra atualizada por EURICO DE ANDRADE AZEVEDO, DÉLCIO BALESTERO ALEIXO e JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO, 2003, Malheiros; EDIMUR FERREIRA DE FARIA, “Curso de Direito Administrativo Positivo”, p. 388/390, itens ns. 1.2/1.3, 1997, Del Rey; JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, “Manual de Direito Administrativo”, p. 702/709, itens ns. VII e VIII, 12ª ed., 2005, Lumen Juris; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 570/572, item n. 443, 1999, Forense; DIÓGENES GASPARINI, “Direito Administrativo”, p. 299/300, item n. 3.5, 1989, Saraiva; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 310/311, item n. 8, 7ª ed., 2004, Malheiros; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 281, item n. 12, 24ª ed., 2005, Malheiros; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 271/272, item n. 5.47, 2ª ed., 2003, Atlas, v.g.).

Isso significa, portanto, que, em contexto de normalidade institucional, os bens integrantes do patrimônio público estadual e municipal acham-se excluídos, porque a ele imunes, do alcance desse extraordinário poder que a Lei Fundamental, tratando-se, unicamente, “de propriedade particular”, outorgou à União Federal (art. 5º, XXV), ressalvadas as situações excepcionais, que, fundadas no estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, II), outorgam, ao Presidente da República, os denominados “poderes de crise”, cujo exercício está sujeito à rígida observância, pelo Chefe do Executivo, dos limites formais e materiais definidos pelo modelo jurídico que regula, em nosso ordenamento positivo, o sistema constitucional de crises ou de legalidade extraordinária, conforme ressaltam eminentes doutrinadores (UADI LAMMÊGO BULOS, “Constituição Federal Anotada”, p. 1.118/1.129, 5ª ed., 2003, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 1.629/1.640, 2ª ed., 2003, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 736/746, 22ª ed., 2003, Malheiros; WALTER CENEVIVA, “Direito Constitucional Brasileiro”, p. 317/323, 3ª ed., 2003, Saraiva, v.g.).


É por essa razão que MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 3/60-61, 1994, Saraiva), ao versar o tema pertinente às medidas extraordinárias autorizadas pelo estado de defesa, observa, quanto ao alcance do poder de requisição federal, que tal instituto incide sobre “bens e serviços, inclusive públicos”, podendo estender-se, em conseqüência, vigente esse mecanismo constitucional de defesa do Estado, até mesmo, a “bens ou serviços municipais ou estaduais” (grifei).

Vê-se, desse modo, que não se revela lícito, à União Federal, em período de normalidade institucional, e analisada a questão sob uma perspectiva de ordem estritamente constitucional, promover a requisição de bens, serviços e recursos financeiros pertencentes ao Município do Rio de Janeiro, que se insurge, por isso mesmo, com absoluta razão, contra o decreto emanado do Senhor Presidente da República.

O exame da controvérsia instaurada nesta sede mandamental – que envolve matéria de alta indagação constitucional – impõe que a análise da questão se realize, não com apoio em meros dispositivos legais, mas seja feita, essencialmente, à luz dos postulados fundamentais que dão suporte à organização, em nosso sistema institucional, do Estado Federal.

O relacionamento entre as instâncias de poder – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – encontra necessário fundamento na Constituição, que traduz, nesse contexto, a expressão formal do pacto federal, cujas prescrições não podem ser transgredidas, sob pena de a autonomia institucional das entidades federadas, que representa pedra fundamental na estruturação da Federação, nulificar-se, com evidente ofensa a um dos princípios essenciais que conformam a organização do Estado Federal em nosso sistema jurídico.

Entendo, por isso mesmo, Senhor Presidente, que a controvérsia ora em exame há de ser resolvida em face do princípio da autonomia municipal, que representa, no contexto de nossa organização político-jurídica, uma das pedras angulares sobre as quais se estrutura o edifício institucional da Federação brasileira.

A nova Constituição da República, promulgada em 1988, prestigiou os Municípios, reconhecendo-lhes irrecusável capacidade política como pessoas integrantes da própria estrutura do Estado Federal brasileiro, atribuindo-lhes esferas mais abrangentes reservadas ao exercício de sua liberdade decisória, notadamente no que concerne à disciplinação de temas associados ao exercício do seu poder de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração.

O artigo 29 da Constituição da República representa, na realidade, o substrato consubstanciador, o núcleo expressivo de outorga dessa autonomia institucional às entidades municipais. A Constituição da República, no preceito mencionado, dispõe que o Município reger-se-á por lei orgânica, que se qualifica como verdadeiro estatuto constitucional das pessoas municipais.

Cabe assinalar, neste ponto, que a autonomia municipal erige-se à condição de princípio estruturante da organização institucional do Estado brasileiro, qualificando-se como prerrogativa política, que, outorgada ao Município pela própria Constituição da República, somente por esta pode ser validamente limitada, consoante observa HELY LOPES MEIRELLES, em obra clássica de nossa literatura jurídica (“Direito Municipal Brasileiro”, p. 80/82, 6ª ed./3ª tir., 1993, Malheiros):

“A Autonomia não é poder originário. É prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal. Tanto os Estados-membros como os Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de autogoverno decorrente da Soberania Nacional, mas como um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua Administração, nos limites que a Lei Maior lhes traça. No regime constitucional vigente, não nos parece que a autonomia municipal seja delegação do Estado-membro ao Município para prover a sua Administração. É mais que delegação; é faculdade política, reconhecida na própria Constituição da República. , pois, um minimum de autonomia constitucional assegurado ao Município, e para cuja utilização não depende a Comuna de qualquer delegação do Estado-membro.” (grifei)


Essa mesma orientação já era perfilhada por SAMPAIO DORIA (“Autonomia dos Municípios”, in Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, vol. XXIV/419-432, 1928), cujo magistério – exposto sob a égide de nossa primeira Constituição republicana (1891) – bem ressaltava a extração constitucional dessa insuprimível prerrogativa político-jurídica que a Carta Federal, ela própria, atribuiu aos Municípios.

Sob tal perspectiva, e como projeção concretizadora desse expressivo postulado constitucional, ganha relevo, a meu juízo, no exame da presente controvérsia, a garantia institucional da autonomia política, fundada no próprio texto da Constituição da República.

Tenho para mim, desse modo – ao reconhecer que existe, em favor da autonomia municipal, uma “garantia institucional do mínimo intangível” (PAULO BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 320/322, item n. 7, 12ª ed., 2002, Malheiros) – que o art. 29 da Carta Política não autoriza a utilização de recursos hermenêuticos cujo emprego possa importar em grave vulneração à autonomia constitucional dos Municípios, especialmente se considerar que a Constituição da República criou, em benefício das pessoas municipais, um espaço mínimo de liberdade decisória que não pode ser afetado, nem comprometido, em seu concreto exercício, por ingerências normativas ou político-administrativas de outras entidades estatais ou, como decorreria da tese sustentada pelo Senhor Presidente da República, por interpretações que culminassem por lesar o mínimo essencial inerente ao conjunto (irredutível) das atribuições constitucionalmente deferidas aos Municípios.

O exame do decreto presidencial, considerado o seu próprio conteúdo, permite que nele se reconheça um indisfarçável (e inaceitável) caráter interventivo, claramente transgressor da ordem constitucional vigente no Estado brasileiro.

O fato é que a adoção de mecanismos excepcionais não poderá traduzir, como sucede na espécie, meio dissimulado da prática de atos de nítido caráter interventivo, cuja utilização – tratando-se da União em suas relações com os Municípios – é expressamente vedada pela Constituição, pois, não custa advertir, os Municípios, exceto aqueles situados em territórios federais (CF, art. 35, “caput”), não podem sofrer intervenção decretada pela União Federal.

Essa particular circunstância qualifica-se, no caso ora em exame, como dado juridicamente relevante, pois, no sistema constitucional brasileiro, não há possibilidade de a União intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios “localizados em Território Federal…” (CF, art. 35, “caput”).

Desse modo, os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros, como sucede com o Município do Rio de Janeiro, não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro, consoante adverte o magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 280, item n. 3.3, 4ª ed., 1998, Atlas; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/236, 1990, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 3, tomo II/353, 1993, Saraiva; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 2/352, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. IV/2091, item n. 184, 1991, Forense Universitária; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 483 e 488, 15ª ed., 1998, Malheiros, v.g.).

Cumpre enfatizar, no ponto, por relevante, que esse entendimento encontra pleno suporte no magistério jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em causa:

IMPOSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO DE INTERVENÇÃO FEDERAL EM MUNICÍPIO LOCALIZADO EM ESTADO-MEMBRO.

– Os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro. Magistério da doutrina.

Por isso mesmo, no sistema constitucional brasileiro, falece legitimidade ativa à União Federal para intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios ‘localizados em Território Federal…’ (CF, art. 35, caput).”

(RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

No caso, e como já destacado nos votos precedentes, registrou-se hipótese expressamente vedada pela Constituição, o que não pode ser tolerado por esta Suprema Corte.

Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, ressalto que o ato do Senhor Presidente da República, objeto de impugnação nesta sede mandamental, não obstante veiculado com a finalidade de promover a requisição de bens e serviços do Município do Rio de Janeiro/RJ, qualifica-se – considerado o seu próprio conteúdo – como medida de nítido caráter interventivo, incidindo, por isso mesmo, em clara transgressão ao que dispõe a Constituição da República.

O vício de inconstitucionalidade que afeta e compromete o decreto presidencial em questão é suscetível de reconhecimento, no caso ora em exame, por dois motivos: primeiro, porque a União Federal não dispõe de legitimidade para requisitar bens, serviços e recursos financeiros pertencentes a qualquer Município, eis que a prerrogativa a que se refere o art. 5º, XXV, da Constituição, em contexto de normalidade institucional, somente pode incidir sobre a “propriedade particular”; e segundo, porque qualquer requisição dirigida a um Município, como ocorreu na espécie, traduzirá, na realidade, indisfarçável ato de intervenção federal, absolutamente incabível, em face do que prescreve a Carta Política, que não admite a possibilidade de intervenção federal em municípios situados em território dos Estados-membros (CF, art. 35, “caput”), conforme já advertiu o Plenário desta Suprema Corte (RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Sendo assim, e consideradas as razões expostas, defiro, integralmente, nos termos em que impetrado, o presente mandado de segurança, em ordem a invalidar, por absolutamente inconstitucional, o decreto do Senhor Presidente da República.

É o meu voto.

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