Lavagem de dinheiro

No Brasil, criminalidade e corrupção andam de mãos dadas

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20 de junho de 2005, 16h49

As atividades ilícitas, principalmente as que são produto do crime organizado, costumam render muito dinheiro e de forma rápida. Enormes somas são movimentadas pelo sistema financeiro, sem que se possa justificar suas origens, e nem todas as instituições bancárias têm sido suficientemente cautelosas ao se deparar com transações suspeitas. Daí porque ainda se pode agir ilicitamente, sob o manto da impunidade, nessa área.

Segundo a lei que cuida de lavagem de dinheiro em nosso país (Lei 9.613/98), dinheiro sujo, que em geral precisa ser “lavado”, é aquele obtido por meio de tráfico de drogas, terrorismo, contrabando, tráfico de armas e munições, extorsão mediante seqüestro e crimes contra a administração pública. Sempre se lamentou muito a ocorrência desses delitos, mas pouco se fez para bloquear e recuperar os ativos obtidos por meio dessas práticas.

Nos últimos tempos, com o temor internacional do terrorismo (principalmente dos Estados Unidos), iniciou-se uma forte campanha para que todos os países passassem a controlar o fluxo de recursos transitando em seu território, a fim de criar dificuldades ao financiamento dos atentados de grupos islâmicos.

Houve forte pressão para que fossem investigados os árabes residentes no Brasil, com foco especial na tríplice fronteira com o Paraguai e a Argentina, mas, até o momento, nada se conseguiu apurar que pudesse indicar qualquer envolvimento desses imigrantes com o financiamento do terrorismo.

A movimentação do bloco ocidental, posterior ao 11 de setembro fatídico, e a forte pressão externa acabaram por beneficiar nosso país, não por razões ligadas ao terrorismo, mas por demonstrar a urgência de controlarmos a movimentação de dinheiro espúrio, a fim de sufocar o crime atingindo seu ponto mais sensível, ou seja, a sua lucratividade. Ficou evidente que não basta prender os cabeças das quadrilhas, pois, como em toda organização, é fácil substituí-los. A única forma eficiente de combater as organizações criminosas é impedir o usufruto dos bens auferidos, assim como cortar o financiamento das ações. O dinheiro é vital para que o crime compense, o que é óbvio, mas o combate à criminalidade no Brasil tem se mostrado ineficiente ou, pelo menos, extremamente lento justamente quando se trata de bloquear contas bancárias ou confiscar bens ilicitamente obtidos.

As razões para essa situação são várias, mas podemos destacar as mais evidentes: a) o Estado não se aparelhou suficientemente, ainda, para lidar com o crime organizado; b) a maioria dos cursos de direito não prepara profissionais para lidar com a criminalidade sofisticada e alguns nem abordam esse tema em aula; c) nem sempre interessa aos ocupantes de cargos públicos incentivar o aprimoramento das investigação, pois não há crime organizado sem o envolvimento de agentes públicos.

Algumas mudanças importantes, porém, vêm ocorrendo. O Ministério da Justiça, por iniciativa do seu titular, o ministro Márcio Thomaz Bastos, criou um departamento especializado em recuperação de ativos e cooperação jurídica internacional e, ao mesmo tempo, organizou um grupo para elaborar a Encla — Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro. Graças a essa iniciativa pioneira, que finalmente instalou o debate sobre o tema em âmbito nacional, alguns dados importantes vieram à tona e chocaram a população, como por exemplo, o fato de que a grande maioria dos recursos lavados em nosso país provêm da corrupção e da concussão, não do tráfico ilícito de armas e drogas, como se supunha.

Conforme estimativa feita pela Controladoria Geral da União, de cada três reais que o Governo Federal destina aos municípios, somente um real chega a ser aplicado em prol da população. O restante é desviado, para satisfazer interesses pessoais. As notícias trazidas pelos meios de comunicação corroboram esta constatação, pois as denúncias de propinas, mesadas, desvios de verbas, etc. são em número assustador e têm dominado o noticiário.

Ainda como resultado da Encla e do empenho do Ministro da Justiça e de seus auxiliares em modificar a realidade brasileira no que tange à sangria provocada pelo péssimo uso de recursos públicos, estuda-se a reforma da Lei que trata de lavagem de dinheiro, a fim de aperfeiçoá-la e torná-la suficientemente abrangente para melhor coibir a prática. Uma das propostas em estudo é a eliminação do rol dos delitos que podem dar causa à lavagem de dinheiro, chamados de crimes antecedentes, e substituí-lo por “bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”. Desta forma, qualquer conduta prevista na legislação penal pode dar ensejo à lavagem de dinheiro, sem limitações.

As formas utilizadas para esconder o dinheiro sujo e depois fazê-lo ressurgir com aparência de limpo são intrincadas e exigem do Estado maior investimento em peritos da área econômica, para rastrear a movimentação bancária, que por vezes é internacional, e identificar os reais titulares das contas.

Os Ministérios Públicos, tanto estaduais quanto federal, que participam ativamente da Encla e ainda criaram o “GNCOC — Grupo Nacional de Combate ao Crime Organizado”, estão se aparelhando cada vez mais para localizar o dinheiro desviado e conseguir repatriá-lo. No Estado de São Paulo, algumas ações já foram bem sucedidas, embora os montantes recuperados ou em vias de ser recuperados sejam apenas o início de uma longa e árdua jornada.

Se nosso país conseguisse reduzir sensivelmente a corrupção dentro do aparelho do Estado e recuperasse o senso de moralidade pública, muitos de nossos problemas sociais chegariam ao fim. Os recursos obtidos com a arrecadação de impostos poderiam, finalmente, cumprir sua real função que é a de distribuir renda e diminuir a pobreza, melhorar os serviços do Estado e pagar salários.

Para que isso ocorra, é essencial impedir que os saqueadores do tesouro venham a desfrutar da riqueza que jamais mereceram ter, como já se consegue fazer, com maior sucesso, em países do primeiro mundo.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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