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Não é certo dizer que há invasão arbitrária de escritórios

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15 de junho de 2005, 16h27

Nas últimas semanas a comunidade jurídica e a imprensa especializada, suscitaram acalorados debates acerca das operações realizadas pela Polícia Federal, as quais teriam produzido violações a direitos e prerrogativas funcionais dos advogados.

Foi empregada uma linguagem carregada de signos ligados ao arbítrio, tratando-se o tema como “invasões de escritórios de advogados”, perpetrados por policiais federais, que não corresponde exatamente ao desiderato dos policiais que chefiam, planejam e executam, tão relevantes e complexas atividades de localização e obtenção de fontes de prova, que convergirão ao poder judiciário como meio de prova.

As autoridades policiais federais estão totalmente ambientadas aos influxos democráticos trazidos pela Constituição Federal de 1988, o obscurantismo não encontra vez e lugar em suas cartilhas, elas perseguem escrupulosamente a fomentação e o prestígio aos direitos fundamentais, amplamente disseminados na sociedade e na comunidade jurídica. Os valores culturais implementados primam por uma consciência ética e um senso moral aguçado, repudiando a violência, seja através da violação a integridade física e psíquica, seja pela profanação ou discriminação. No mesmo sentido é a postura do emprego da força necessária e compatível.

As armas empregadas pelos policiais federais estão ligadas à perspicácia, planejamento, técnicas científicas modernas, investigação objetiva para o conhecimento do fato criminal, tudo isso, adstritos à legalidade, princípio geral que somos tributários e escravos, assim como o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana.

Nesta linha epistemológica, de pensamento e ação, são desencadeados os trabalhos dos policiais federais, mas sem esquecer suas funções constitucionais e legais, seu status historicamente granjeado, como instituição voltada à repressão aos crimes contra a União e ao erário público, com clara vocação de combate ao crime organizado e de alta ofensividade aos bens tão caros aos cidadãos, a vida, o patrimônio público, a probidade administrativa e política, favorecidos por sua abrangência de todo o território nacional e sua interligação a órgãos de repressão criminal internacional.

Os trabalhos de investigações policiais desenvolvidos, alguns deles no bojo de um sistema estratégico que requer operações complexas, com envolvimento de vastos recursos materiais e humanos, obedecem às normas legais vigentes, havendo debates entre a classe dirigente da instituição, os Delegados de Polícia Federal, visando discutir criticamente a profundidade e eficácia das operações, sua construção teórica e seu ajustamento ao sistema de persecução criminal, de maneira a fornecer subsídios probatórios sólidos a Justiça Pública.

As operações policiais por vezes são demoradas, perseguem elementos de provas que tragam a verdade sobre um fato penal conhecido pelos policiais, visando atingir um fato penal processual que permita ou não uma imputação criminal ao investigado.

Tais atividades, algumas vezes, se consubstanciam em buscas e apreensões domiciliares, aí englobando escritórios de advocacia, visando à localização de coisas, objetos, documentos, instrumentos de crime, cumulados com buscas e prisões de autores de crimes, estas bastantes comuns nas operações policiais da Polícia Federal, quando os policiais já estão munidos do competente mandado de prisão, expedido pela Justiça Pública.

Como meios de provas importantes para o trabalho policial, a busca e apreensão constitui uma coação processual de restrição a direitos, de natureza cautelar, e busca a oportuna conservação da prova. É praticada no interesse do processo ou para assegurar a instrução ou garantia de possível e útil julgamento futuro, em suma, acautelar satisfação ao escopo específico do processo (1).

As autoridades policiais dentro deste contexto, desenvolvem atos de investigação, de maneira sigilosa e parcimoniosa, que proporcionam a formação de um juízo positivo e provisório da ocorrência e da materialidade do crime, ou seja, um juízo de probabilidade de dano (periculum in mora) e probabilidade do direito (fumus boni iuris), isso, buscado através de uma cognição sumária. Nesta fase não se busca a certeza do dano ou do direito, esta é requisito da sentença condenatória.

A apreciação criteriosa desse juízo de probabilidade está afeta as funções judiciais, quando o magistrado sopesará criteriosamente os fundamentos fáticos e de direitos, e motivadamente decidirá pela expedição do necessário mandado judicial, ou não. Exceto no estado de flagrância, há reserva de jurisdição para autorização de buscas e apreensões domiciliares, assim como soí acontecer com outros procedimentos probatórios protegidos por normas de sigilo e inviolabilidade, tais como a interceptação telefônica, acesso a dados fiscais e bancários, a violação de local de trabalho profissional etc.


O jus puniendi estatal não pode ficar inerte diante da ofensa a bens jurídicos protegidos, não pode prescindir dos meios necessários ao esclarecimento dos fatos, suas circunstâncias, autores e partícipes, numa fase preparatória ou extraprocessual, aí surgindo então o direito à investigação estatal, que também coabita com a outra face da moeda, o direito à investigação do imputado ou do acusado, alçado a direito público subjetivo, equivalente aos direitos de ação e defesa, tudo isso, numa interpretação e integração já reconhecidas ao direito à prova.

Como é reconhecido pela doutrina e jurisprudência nacional, os direitos fundamentais não são absolutos, podendo ser restringidos caso haja conflitos com outros direitos fundamentais de maior relevância jurídica, para tal, o jurista dispõe do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit) (2), lapidado pela doutrina e jurisprudência alemã.

O sigilo profissional dos advogados é uma manifestação do direito de defesa, se insere na esfera íntima da personalidade da pessoa, tanto é que a Constituição Federal de 1988 considera o advogado indispensável para a administração da justiça, com prerrogativa de inviolabilidade por seus atos e palavras no exercício da profissão, com isso visa assegurar o direito de defesa do seu constituinte, por conseguinte, das liberdades públicas e do Estado Democrático de Direito.

A própria Constituição Federal preconiza limites à atuação e ao sigilo profissional do advogado, quando prescreve na parte final do artigo 133 “nos limites da lei”. Integrando a norma constitucional a lei penal adjetiva admite a violação dessas garantias institucionais, em regime de exceção, quando as coisas e documentos que estiverem em poder do advogado constituam corpo de delito, mas, com observância do devido processo legal, descrito nas linhas anteriores.

O local de trabalho do advogado também pode ser objeto de interceptação telefônica autorizada judicialmente no bojo de investigação criminal que apura ilícitos penais cometidos pelo advogado, mas, em hipótese alguma seu sigilo telefônico pode ser devassado em virtude de sua atividade profissional.

Não é razoável conferir blindagem inexpugnável aos profissionais da advocacia, assim como a qualquer profissional, sob pena de se proteger o delito e a impunidade, já que os titulares do direito à investigação não teriam como buscar e apreender documentos e coisas que compõem o corpo de delito, então, entra em cena o sobredito princípio da proporcionalidade.

No direito comparado, a inviolabilidade não é tão abrangente como em solo brasileiro, tal como, nos sistemas jurídicos da Itália e Portugal. Neste admite-se a quebra do sigilo no benefício do cliente e para evitar ocorrência de crime conta à vida (3).

Polêmica semelhante à provocada pelas operações da Polícia Federal surgiu em 2001 (4), quando o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), pretendeu incluir categoricamente os advogados e contadores entre os profissionais com “dever de vigilância e de informação”, no qual os obrigaria a comunicar as operações financeiras suspeitas. Nesta oportunidade a presidenta do COAF chegou a declarar que “nenhuma grande operação de lavagem é feita sem o auxílio desses profissionais”. O pano de fundo daquelas discussões foi a iniciativa similar do Parlamento Europeu, que queria implantar o dever de vigilância a alguns profissionais.

Inocêncio Mártires Coelho defende que a transformação do advogado de guardião do sigilo profissional em delator de seu cliente, instituída no artigo 9o, parágrafo único, inciso IX, c/c artigos 10 e 11 da Lei 9.613/1998, que obriga o advogado a colaborar com as autoridades, é inconstitucional materialmente e incompatível com a dignidade da pessoa humana, o direito a intimidade e a ampla defesa (5).

Mais agressivas às liberdades públicas são as recentes normas introduzidas no EUA, em razão do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, quando se instalou o pânico entre os americanos. Seis semanas após o atentado, o congresso americano promulgou a Patriot Act, onde se conferiu poderes muito extensos aos órgãos de repressão criminal e segurança do Estado (CIA, FBI, INS etc.), dispensando-se autorização judicial em alguns casos de violação a intimidade, dentre eles: rastreamento de e-mails, monitoramento telefônico e de operações financeiras, permissão de busca em domicílios e escritórios de maneira furtiva.

A medida contrariou a solidez do Bill of Rights, que trata das garantias das liberdades individuais. Não bastasse isso, o presidente Bush assinou a Lei de Segurança Doméstica (Homeland Security Act), em 2002, criando o Departamento de Segurança Doméstica, além de implantar o programa Conhecimento Total das Informações (Total Information Awareness Office) a ser desencadeado pela Agência de Projetos de Pesquisas Avançada da Defesa (6).


A nobre classe dos advogados já deu demonstrações históricas de sua importante ação em defesa da democracia, das liberdades públicas, assim como da justiça social, citando-se Rui Barbosa no final do século XIX e início do século XX, para quem “legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado” (7). Por outra banda, ele discursou declarando “que legal pode ser o sigilo, e o é, quando a lei o admite. Mas, quando, ao contrário, a lei não o consente, o sigilo redunda em clandestinidade, vício que inquina os atos jurídicos, os desnatura, exautora e nulifica.” (8)

Tão significativa é a vida e a obra do mestre das arcadas Goffredo Telles Junior, para quem “a lei sabiamente interpretada, é que constitui o critério, a baliza, a regra do justo – do justo possível, do justo dos homens. Se a lei não é justa, substitua-se por outra, Se uma decisão judicial não é correta, recorra-se para obter nova decisão”. (9)

Tais advogados marcaram gerações de juristas, engrandeceram as ciências jurídicas e políticas, e tiveram atuações decisivas na defesa da democracia e das liberdades civis. Rui Barbosa, no turbulento início do regime republicano, seguido do aparecimento de ideologias totalitárias, desenvolveu trabalho no sentido da construção teórica libertária sobre os crimes políticos. Goffredo Telles Junior, por sua vez, viveu para restaurar a liberdade política, a redemocratização do país e ainda se dedica ao respeito aos direitos humanos e sociais, também lutou pelo fim da ditadura militar e da doutrina de Segurança Nacional. Ambos enfrentaram regimes de força, extremistas e intolerantes, mas em épocas distintas.

Inspirados nos exemplos destes dois ícones da democracia e da advocacia, vislumbramos que os abusos cometidos por policiais federais nas operações aqui analisadas, devem buscar proteção do poder judiciário, requerendo reexame das decisões concessórias de medidas cautelares de buscas e apreensões. Também, podem e devem representar pelos abusos e desvios ao Ministério Público Federal, que certamente não medirá esforços para inculpar os policiais desviantes e restituir a ordem jurídica.

Aquelas classes de profissionais que tiverem seu status dignitatis violado devem procurar o chefe da instituição policial federal, o qual não se furtará em tomar as medidas reparadoras e de readequação das operações policiais ao devido processo legal. A propósito, defendemos até mesmo uma maior integração das autoridades policiais e dos advogados, por meio de seus órgãos de classes, estabelecendo-se uma relação harmoniosa que busque uma interação entre papéis sociais desempenhados pelos titulares do direito à investigação e os titulares do direito à defesa, pois ambos são bacharéis em Direito, pertencem à mesma família jurídica, possuem a mesma socialização primária. Neste contexto, citamos a freqüência de cursos promovidos pelo MDA – Movimento de Defesa da Advocacia.

Neste paradigma de consenso moral, não há espaço para opressões e violências, tal como a “invasão de escritório” por policiais federais, ou, a deletéria pressão política através do Ministro da Justiça. Aquela é ilegal, esta é desleal e ilegítima, pois o Ministério da Justiça não detém atribuições constitucionais de investigação criminal, somente competências administrativas, aflorando acoimada qualquer iniciativa deste visando apontar a forma e a significação axiológico-teleológica das atividades de investigação policial. Esta é de incumbência dos órgãos diretivos da Polícia Federal e das autoridades policiais federais, que deverão observar, por sua vez, o devido processo legal, aí incluindo o vigente Código de Processo Penal, que assegura o poder geral de polícia aos Delegados de Polícia.

Uma putativa violência não pode ensejar uma ilegítima violência real, senão, estaremos naquele drama prelecionado por Roberto Armando Ramos de Aguiar (10), em que o poder formal — o governo — possui a máscara da ambigüidade, quando “tem de agir demonstrando algo que não é e representar interesses que não devem aparecer”, aí incluindo interesses dos banqueiros, dos industriais, dos latifundiários e no vertente caso, das grandes corporações de categorias profissionais dos advogados, alguns integrantes destas podem estar vinculados àqueles.

Investigação criminal é coisa séria e complexa. Para profissionais, seu objeto de ação atinge bens jurídicos caros: a vida, o patrimônio, a liberdade, a honra etc, e não comportam manobras de bastidores ou arranjos políticos espúrios.

Notas bibliográficas

AGUIAR, Roberto A. R. Direito, poder e opressão. 3a ed. rev., atual., São Paulo: Alfa-Omega, 1990.

BARBOSA, Maria Lucia Victor. O voto da pobreza e a pobreza do voto: a ética da malandragem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 57.

BARBOSA, Rui. Trecho do discurso “Oração ao moços”, disponível em www.fcrb.org.br, acesso em 11.02.05.

_______________. Trecho de discurso proferido no Senado Federal. www.fcrb.org.br, acesso em 11.02.05.

BARROS, Susana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3a ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2003.

COELHO, Inocêncio Mártires. O sigilo profissional nos crimes de lavagem de dinheiro: tópicos para uma discussão no marco do Estado de direito: In: Notícia do Direito Brasileiro. UNB, n.º 8.

GOMES, Luiz Flávio. Lavagem de capitais e quebra de segredo profissional do advogado. Disponível em www.estudoscriminais.com.br, acesso em 04.02.02.

LEITÃO, Ricardo Azevedo. Restrição aos direitos fundamentais como mecanismo de controle da ordem pública. São Paulo: Fiúza Editores, 2003.

PITOMBO, Sérgio Marcos Moraes. Breves notas em torno da coação processual penal. In: Ciência Penal 1. Miguel Reale Junior (Dir.). São Paulo: Bushatsky, 1973, p. 107-110.

SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e a vida privada. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.

TELLES JR, Goffredo. Devoção de advogado. Revista do Advogado. Disponível em www.goffredotellesjr.adv.br .

Notas de rodapé

(1) Maria Lucia Victor Barbosa, O voto da pobreza e a pobreza do voto: a ética da malandragem, p. 57.

(2) Sérgio Marcos Moraes Pitombo, Breves notas em torno da coação processual penal, p. 108.

(3) Susana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, passim 48.

(4) José Adércio Leite Sampaio, Direito à intimidade e a vida privada, p. 413, nota 137.

(5) Luiz Flavio Gomes, Lavagem de capitais e quebra de segredo profissional do advogado, passim.

(6) O sigilo profissional nos crimes de lavagem de dinheiro: tópicos para uma discussão no marco do Estado de direito, p. 245.

(7) Ricardo Azevedo Leitão, Restrição aos direitos fundamentais como mecanismo de controle da ordem pública, p. 120 ss, passim.

(8) Trecho do discurso ‘Oração ao moços”, disponível em www.fcrb.org.br, acesso em 11.02.05.

(9) Trecho de discurso proferido no Senado Federal. www.fcrb.org.br, acesso em 11.02.05.

(10) Revista do Advogado. Devoção de advogado. Disponível em www.goffredotellesjr.adv.br .

(11) Direito, poder e opressão, p. 56.

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