Judiciário Democrático

Reforma do Judiciário verticalizou ainda mais a Justiça

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12 de junho de 2005, 12h47

A súmula vinculante e o Conselho Nacional de Justiça são apenas dois exemplos de medidas impostas pela Reforma do Judiciário que contibuem para acentuar ainda mais a verticalização da Justiça Brasileira. A opinião é do juiz paulista e presidente da AJD — Associação Juízes para a Democracia, Marcelo Semer.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Marcelo Semer sustentou que “a súmula vinculante é um golpe na questão da independência”, uma vez que o instrumento será determinado por tribunais comandados por juízes de nomeação exclusiva do presidente da República.

Juiz desde 1990, Semer é formado pela USP e mestre em Direito Penal pela mesma universidade. Aos 39 anos de idade é juiz da 10ª Vara Criminal da capital paulista. Eleito recentemente presidente da AJD, pretende reativar a associação e recolocá-la no centro do debate sobre aquilo que está definido em sua denominação: a democratização da Justiça no Brasil.

Leia a íntegra da entrevista com Marcelo Semer

Conjur — O senhor acredita que a súmula vinculante pode restringir a independência do juiz de primeiro grau?

Semer — A idéia da súmula vinculante, que é o juiz ser obrigado a julgar como os outros já julgaram, eu acho que não vai resolver o problema processual e é uma afronta à independência do juiz. Os juízes não deveriam acompanhar a súmula vinculante. Foi um retrocesso. Eu não me sinto confortável decidindo com base numa determinação. É um golpe na questão da independência, se você for pensar que a súmula será determinada pelos tribunais superiores, cujos juízes são de nomeação exclusiva do presidente da República.

Conjur — E quanto ao controle externo?

Semer — A associação nunca foi refratária à criação do Conselho Nacional de Justiça. O Judiciário é um serviço ao público e é importante que o público possa ter um controle do seu funcionamento. Mas somos a favor da participação da sociedade na escolha das políticas judiciárias, participar na questão do planejamento. O CNJ acabou se transformando num grande órgão que pode ser uma grande corregedoria, com uma feição disciplinar. Assim ele poderá ter uma eficácia muito reduzida. Uma corregedoria para todos os juízes do Brasil seria incabível pelo seu próprio tamanho. A questão do Judiciário não é um problema moral, é um problema de sistema. A questão é de gerenciamento, da escolha das políticas, do planejamento, e um conselho com perfil disciplinar não terá grande utilidade nesse ponto. Para a AJD, o problema não é ter pessoas de fora participando. O problema que coloco outra vez é a questão da verticalização. O conselho foi formado fundamentalmente por indicações dos tribunais superiores. Então ele foi montado pela cúpula. Isso não é o controle externo, é o controle da cúpula sobre a base. Todo processo de nomeação, em minha opinião, foi viciado. A falta de critérios vem do começo ao fim.

Conjur — Como o senhor vê a polêmica gerada em torno da nomeação da procuradora Janice Ascari e do ex-secretário Alexandre de Moraes?

Semer — Houve política partidária tanto na indicação, quanto na rejeição do Alexandre de Moraes. Ficou claro que houve aí uma disputa partidária. Mas não vejo como o Judiciário pode imputar um erro nessa nomeação, se nas suas próprias escolhas ele não usou nenhum tipo de critério, não fez uma consulta mais ampla. Não foi aberta uma discussão com a sociedade, não sabemos o que pensam os indicados. A escolha foi feita com base em critérios de bastidores. Assim também tem sido feita a nomeação dos ministros do Supremo, não tem um debate com a sociedade, não existem regras, parâmetros. Falta democracia no processo. Se o conselho tem de ser um controle externo da magistratura, seria importante saber o que as entidades e a sociedade civil pensam e reclamam do Judiciário.

Conjur — O critério da idade para definir os mais aptos a dirigir os tribunais está caindo em desuso?

Semer — Os tribunais maiores têm órgãos especiais onde os 25 juízes mais antigos é que fazem parte. A Reforma do Judiciário contemplou que metade deles seja por antiguidade e a outra metade por eleição. Só que os tribunais de Justiça já definiram que enquanto não chegar o estatuto da magistratura essa lei não pode ser aplicada. Então a gerência continua para os mais antigos. Eu acho que isso não faz o menor sentido, é preciso democratizar também o Judiciário. Tanto o presidente Lula, quanto o FHC tiveram uma atuação forte contra a ditadura e mesmo assim eles não foram capazes de promover a democratização do Judiciário. Tivemos o inverso, não só não se democratizou, como se verticalizou o poder no Judiciário ainda mais.

Conjur — O senhor defende que um juiz de primeira instância possa presidir o TJ, ou ser eleitor do presidente?

Semer — Presidir eu acho que não, mas ser eleitor sim. Há uma discussão aí, no que diz respeito ao corporativismo. A grande crítica é que se a eleição for de todos, isso pode gerar um corporativismo. Vai ganhar aquele que oferecer mais vantagens. Mas isso já acontece hoje, já temos um corporativismo de cúpula, já ganha aquele que oferece mais vantagens. Na decisão das prioridades da Justiça é que eu enxergo a possibilidade do planejamento ser aberto para outras pessoas. Eu acredito que grande parte dos equívocos que acontecem na administração decorreram do fato de as decisões serem fechadas, em sessões secretas.


Conjur — O que o senhor acha do ministro Nelson Jobim dizer repetidamente que o Judiciário do Rio é o melhor do país e é um exemplo a ser seguido?

Semer — Eu não tenho conhecimento disso. De qualquer forma, eu acho que já que é para discutir o gargalo do Judiciário, seria importante o Supremo definir seus próprios gargalos. Tem ações que estão lá há anos aguardando julgamento e não são julgadas, pedidos de vista que perduram indefinidamente, que não são para o ministro estudar, mas simplesmente postergar. É importante que o Supremo dê o exemplo de planejamento e eficiência que o Jobim está cobrando do Judiciário todo. Eu gostaria que ele cobrasse do Supremo a mesma eficiência que ele cobra do Judiciário.

Conjur — Uma questão que está em pauta são as prerrogativas dos advogados. Na sua opinião, quais são limites, pode ser feito mandado de busca e apreensão de documentos de clientes dentro dos escritórios?

Semer — É importante dizer que essa sensação de aumento de criminalidade ou a sensação de insegurança não podem ser álibis para a supressão de direitos. Não se pode ter essa noção de que para apurar o crime vale tudo. Dentro da democracia não vale a máxima de que os fins justificam os meios. Na democracia tanto os fins quanto os meios têm de se legítimos. O juiz deve garantir os direitos fundamentais e se ele não faz isso, ninguém mais pode fazer. Tivemos aqui em São Paulo, há algum tempo, mandados de busca e apreensão coletivos. Vinha o comandante da polícia, por exemplo, e dizia que tinha suspeita de drogas e armas em determinada favela. Então o juiz dava uma autorização para que o policial entrasse indsicriminadamente em todas as residências de um determinado quarteirão. E com base nisso foram feitas inúmeras prisões. Nesse caso, há uma inversão muito clara, já que é preciso ter objeto determinado para se conceder a busca e apreensão. A pessoa e o local que estão sendo investigados não podem ser instrumentos de pesquisa. Isso tem acontecido nas CPIs, que começam quebrando o sigilo fiscal e depois vão ver se encontram alguma coisa de irregular.

Conjur — Com as CPIs, o Legislativo não tenta ocupar o espaço e as atribuições do Judiciário?

Semer — A CPI é um misto de atividade de política e atividade de juiz. Já vimos muitos casos em que os parlamentares, por questões políticas, acabam se expondo e exagerando nas suas atribuições dentro de uma CPI. Tivemos vários casos de ordem de prisão na CPI, por desacato, ou porque a testemunha se negou a depor… Na verdade, há uma incompreensão de que as pessoas que são chamadas à CPI têm os mesmos direitos que os indiciados têm em um inquérito policial. Não há dúvidas de que é preciso impor limitações às CPIs, que aliás o Supremo já tem imposto. Como, por exemplo, nas quebras de sigilo fiscal e bancário não fundamentadas. Se a CPI faz papel de polícia e de juiz ela tem as mesmas responsabilidades da polícia e do juiz. Mas essas são perversões que o Judiciário pode corrigir. Existe outra perversão muito mais grave que é a de não se instalar uma CPI. Autoridade em nenhum grau pode abafar qualquer tipo de investigação.

Conjur — E a questão do sigilo, do segredo de Justiça? A imprensa deve ser punida por divulgar documento sigiloso a que teve acesso?

Semer — Eu acho que você não pode divulgar informações que são obtidas de forma ilícita. Temos uma questão que não dá para ignorar, que é a relevância do papel da imprensa na transparência política. Tem havido decisões proibindo a imprensa previamente de publicar algumas questões. Eu tenho muita restrição a essa idéia de censura prévia. A responsabilidade sobre os atos excessivos deve ser imputada.

Conjur — E a responsabilidade do jornalista na divulgação de processo que está sob sigilo? Vamos supor que um jornalista tenha acesso a um processo através de um funcionário de um tribunal. Como ele fica nessa situação?

Semer — Como vem sendo entendido, a responsabilidade recai sobre a pessoa que quebra o sigilo. Ainda mais porque do lado da imprensa existe o interesse público. Mas é preciso ter cautela com relação a isso, para que não se faça uma devassa geral da intimidade das pessoas a todo custo. Existem limites à privacidade, ela não pode ser absolutamente desguarnecida. A privacidade é importante para a preservação das relações sociais e é um direito fundamental. Por outro lado, a liberdade de expressão também é um direito fundamental. Há aí um choque que deve ser avaliado caso a caso. Tem casos em que o interesse público é patente. Há situações nas quais se a informação não for divulgada, a comissão de inquérito não será instalada e nós não vamos ter a verdade sobre a legitimidade dos nossos governantes.

Conjur — O senhor acha que governantes e outras autoridades devem ter direito a foro especial?

Semer — A AJD sempre se manifestou no sentido de que não deveria haver foro privilegiado. Isso faz parte da síndrome dos desiguais, de tratar desigualmente as pessoas. Temos a imunidade do parlamentar, o foro privilegiado para autoridades e isso não casa com o sistema democrático e isonômico.


Conjur — A responsabilidade do cargo de uma autoridade justificaria que tivessem um tratamento diferenciado?

Semer — Eu acho que não. O que a autoridade faz fora do exercício do cargo, o que ela faz descumprindo seus deveres, deve ser julgado pela Justiça comum, como acontece com qualquer pessoa. A idéia do foro privilegiado seria proteger o cargo, e o cargo da pessoa que pratica um crime vai estar mais protegido se ele não estiver no cargo.

Conjur — E o foro privilegiado para ex-autoridades?

Semer — O foro privilegiado para ex-autoridades do jeito que a lei prevê hoje — que eu considero inconstitucional — se aplica só para os crimes cometidos enquanto a autoridade estava no cargo. Depois disso é que veio a lei, no final do governo Fernando Henrique, que ampliou o foro privilegiado para os ex-ocupantes de cargos públicos e no caso de ação de improbidade. E não foi a única tentativa do governo de não se ver julgado. Nessa questão de imunidade tem até algumas situações que a pessoa pratica o crime antes de se tornar parlamentar e depois com a eleição ele ganha essa imunidade processual.

Conjur — O senhor disse que considera a lei do foro privilegiado inconstitucional. E como o senhor atua neste caso?

Semer — O procurador-geral da República ajuizou uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] no STF contra a lei, e que não foi julgada até agora. Eu entendo que a lei é inconstitucional e assim posso julgar processos dessa natureza. Mas o STJ entende que a lei é constitucional. Pelo STJ, eu tenho de mandar o processo para o TJ, mas TJ manda o processo de volta porque ele também acha que a lei é inconstitucional e é a primeira instância que deve julgar. O Supremo não decide [se a lei é constitucional ou não] e coisa fica assim. Se eu julgar um processo que o STJ entende que a competência não é minha, ele vai ser nulo.

Conjur — E no caso do presidente do Banco Central?

Semer — A idéia de foro privilegiado é uma questão de competência. Então atribuir competência para o Supremo é uma coisa que só a Constituição pode fazer. E a Medida Provisória [que dá status de ministro ao presidente do BC] vocês sabem porque foi feita. Ela não foi feita depois de um longo estudo onde se concluiu que o Banco Central tem um status de ministério, e sim, porque se noticiou que havia uma investigação que poderia culminar numa ação penal contra o presidente do Banco Central.

A meu ver essa mudança legislativa fica a critério de atrasar ou atrapalhar a investigação a respeito de um fato relevante.

Conjur — Mais do que uma questão de competência, trata-se de uma questão de moralidade.

Semer — Sobre a corrupção é preciso que se crie uma conscientização e para isso é preciso que a autoridade dê exemplo. Quando se mantém na linha de frente de um governo pessoas suspeitas, o que se passa para a população é que a questão de ética não é importante. E nesse caso o foro privilegiado tende a ser um instrumento que dificulta o combate à corrupção

Conjur — A AJD foi atuante para aprovar o projeto de lei que introduziu o artigo 41-A na Lei Eleitoral, que caracteriza como crime a compra de votos. O que o senhor acha da proposta que está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e visa a revogar este dispositivo.

Semer — Também nesse caso, a questão importante, a que deveríamos estar atentos neste momento, são as questões de improbidade e corrupção que têm vindo à tona. A eleição é a porta de entrada para a vida pública. O que podemos esperar de um governante que já começa a praticar a corrupção durante a própria eleição que vai introduzi-lo na vida pública? Por isso somos totalmente contra a revogação do artigo 41-A. A aprovação desse projeto de lei seria um retrocesso.

Conjur — Mas tem-se visto muita cassação de prefeito, vereador por motivo insignificante com base no artigo 41-A.

Semer — Essa é uma questão muito curiosa. De um lado a opinião pública gosta muito de rigor do juiz. Mas de outro, quando há instrumentos para isso e o juiz age com rigor, independentemente do valor, até porque corrupção não tem valor, eu não acho que deve haver uma repulsa da sociedade. Acho que os tribunais superiores têm feito uma distinção dos casos. É claro que há excessos como o de uma mulher que ficou presa um ano por causa de um furto de xampu. Mas também há mecanismos rápidos no Judiciário para corrigir os excessos, as liminares, por exemplo. Agora, você retirar hoje a lei de improbidade porque ela pode causar algum excesso seria um despropósito. O que a gente imagina é que hoje há muito mais improbidade do que punições, há muito mais corrupção eleitoral do que as decisões judiciais alcançam.

Conjur — Conte um pouco sobre a associação e seus planos para ela.

Semer — A AJD tem um compromisso com a democracia e trabalha para transformar o Judiciário em um serviço público eficiente. Está em nossos planos fazer uma ponte com outras entidades e continuar fazendo propostas de emenda. Aqui em São Paulo já tivemos algumas vitórias, como a instituição de visitas íntimas para mulheres encarceradas.Voltando às questões que foram colocadas aqui, a associação defende o princípio do juiz natural, da aleatoriedade na distribuição de processos. Até onde sei há cerca de 200 ou 300 juízes de São Paulo que não tem respeitada a sua inamovibilidade, o que tem pode ter reflexos na independência e imparcialidade. A associação também sempre se manifestou contrária às férias forenses. As questões essenciais não param. Não há justificativa institucional para dois meses de férias coletivas.

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