Distribuição de recursos

Desembargador de São Paulo quer trabalhar, mas não consegue

Autor

8 de junho de 2005, 14h31

A manhã do dia 7 de junho começa, para os advogados em geral, assemelhadamente a todas as outras. Conta-se que em Paris, ao tempo de Napoleão Bonaparte, ou pouco antes, os advogados não podiam usar barba e deixar os cabelos crescerem. Colocavam suas batas negras e iam à missa antes do sol nascer. Só mais tarde desenvolviam suas tarefas no tribunal. Deviam manter celibato.

É edificante, por sinal, o exame de caricaturas deixadas por “Domier”, célebre chargista francês. O desenhista representava os juristas, quase sempre, com a calva pronunciada e os narizes bolhosos, as pontas pendendo para baixo, o ventre estufado e um pezinho — normalmente o esquerdo — esticado à maneira de um bailarino parlapatão. Aliás, vi uma efígie dessas na parede de um velho escritório do hoje ministro Thomaz Bastos, em São Paulo, numa das pouquíssimas vezes em que o visitei, a convite, certamente. Faz mais de trinta de anos, mas o retrato foi conservado na memória. Creio que o título era alguma coisa ligada a um tal de “Chapotard”, profissional que se auto-elogiava nos panfletos da época.

Refletindo-se ainda sobre a advocacia, é bom fixar, desde logo, que o relacionamento entre magistrados, promotores de justiça e advogados deve ser distante. É muito difícil, ou quase impossível, o entrelaçamento de afetos entre uns e outros.

Lembro-me de Cid Vieira de Souza, antigo bastonário da OAB e depois desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo. Era meu amigo. Nunca julgou caso meu. Meu nome, no distribuidor, estava numa espécie de “lista negra”, ainda existente, comenta-se, num setor de distribuição do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, estendendo-se a um ou outro juiz que, antes de o ser, foi meu íntimo. A suspeição, aí, é sagrada e inafastável, circunstância que no final das contas é implacável, pois não constrange ninguém.

Dentro de tal contexto, é bom especificar, logo no intróito, que não sou amigo de desembargador. Obviamente, dentro do pressuposto caracterizador da empatia ou antipatia entre os humanos, fenômenos dos quais sequer se livram os animais inferiores, alguns significam melhor aproximação, valendo, para tanto, mais do que inteligência ou cultura, a maior capacidade de trabalho e de resposta rápida às pretensões das partes.

Valem as premissas em justificação do título: “Desembargador quer trabalhar e não consegue”. Na verdade, poucos advogados, atualmente, vão diariamente à missa. Conheço só um: Ives Gandra da Silva Martins, que freqüenta os salmos todas as manhãs, rezando, provavelmente, em contrição pelos pecados dos outros porque, respeitados os limites, é quase um santo.

A grande maioria dos profissionais do Direito inaugura a madrugada lendo novidades jurídicas. Impressionou bastante, a propósito, reportagem publicada na revista eletrônica Consultor Jurídico, dando publicidade a mandado de segurança impetrado pelo desembargador Luiz Pantaleão contra resolução do Órgão Especial da Corte paulista que suspendia até 30 de junho a distribuição imediata de recursos recebidos por aquele Tribunal, afrontando-se, então, a Emenda Constitucional 45/04.

O mandado de segurança é longo (veja notícias relacionadas abaixo). Pretende, em síntese, receber imediatamente distribuição de recursos que lhe sejam endereçados. Argumenta: “A suspensão da eficácia do artigo 1º, da Resolução nº 204/05, em tais condições, viola direito líquido e certo do impetrante, na medida em que lhe restringe o direito-dever de prestar jurisdição em sua plenitude. É que com a imediata distribuição dos feitos, como previsto no artigo 1º, da Resolução nº 204/05, deste E. Tribunal, cada Desembargador a quem o feito for distribuído de imediato passa a ser o Juiz Natural do feito distribuído, passando a apreciar, desde logo, liminares em Habeas Corpus e Mandados de Segurança. Assim, nos feitos distribuídos imediatamente ao impetrante, sendo ele o Juiz Natural em razão da distribuição, exercerá plenamente a jurisdição, apreciando e decidindo desde logo os pedidos liminares”.

O mandado de segurança não obteve liminar. O 3º vice-presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Ruy Camilo, não concedeu a medida pretendida. Deixou-a para o fim, disso resultando, evidentemente, que o prazo de paralisação da distribuição dos feitos criminais (30 de junho) será cumprido em razão da demora na apreciação e julgamento do “mandamus”, convindo notar que o próprio mandado de segurança impetrado pelo desembargador Pantaleão entrará na vala comum que ele pretende fechar, característica esta constitutiva de irônico paradoxo.

Há na Justiça Penal paulista um momento trágico. Réus presos aguardam meses para verem seus recursos apreciados, havendo hipóteses em que a exculpação ou redução das penas, quando concretizadas, atingem o vazio, porque o recorrente já ultrapassou umas e outras, o que é lamentável. De outra parte, os reclusos chafurdam (a expressão é esta) em cubículos destinados às denominadas prisões provisórias, significando que conservam, enquanto presos, “o estado de inocência” a que se referia o saudoso Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, enquanto corrigia a primitiva expressão “presunção de inocência”. No fim de tudo, é tudo muito feito.

A situação, é certo, deve angustiar as noites dos eminentes desembargadores e de todo Poder Judiciário paulista. Entretanto, parece não haver solução. A supressão do Tribunal de Alçada Criminal, com absorção pelo Tribunal de Justiça, destruiu o primeiro e apenas engordou o segundo, numa conseqüência complicativa e absurdamente ineficaz. Viram-se os juízes do Tacrim vestidos com roupas novas mas desesperados pela quebra da capacidade laborativa. Há, realmente, uma catástrofe judiciária. Um silêncio elegante poderia manter estáveis as relações entre a advocacia e Poder Judiciário paulista, mas há quase 100 mil presos com as bocas fechadas, simbolicamente, entre as paredes das masmorras. Se os reclusos pudessem gritar, melhor seria. Mas não podem.

Há ações penais em que as apelações demoram dois anos para serem distribuídas, ficando os recursos, diga-se de passagem, vários meses em primeiro grau, aguardando razões e remessa. Equipara-se isso a uma verdadeira negativa de jurisdição. Razão tem, e muita, o desembargador impetrante do mandado de segurança em questão. Cuidando-se de juiz conhecido pela dedicação e discrição, o “mandamus” vale em dobro. Seria subscrito, com humildade mas com teimosia, por todos os advogados criminais de São Paulo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!