Terra de ninguém

Ministério Público investiga crimes raciais no Orkut

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2 de junho de 2005, 21h47

O Ministério Público de São Paulo prepara uma forte investida contra comunidades racistas do Orkut, o site de relacionamentos na internet que virou mania nacional. Esta semana, o promotor de Justiça Christiano Jorge Santos, do Gaeco — Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, começou a colher os frutos de seis meses de investigação das comunidades criadas no site.

O promotor — especialista em crimes de preconceito e discriminação — já identificou quatro internautas que criaram comunidades que apregoam e incitam a discriminação contra negros e que contêm mensagens neonazistas. M.G.N., que estuda engenharia em São Paulo, foi ouvido pelo promotor nesta quinta-feira (2/6), e confessou que é o criador de grupos que defendem os ideais de Hitler e a segregação de raças. Mas, segundo seu depoimento, ele “não é racista, queria apenas passar uma imagem exótica na rede”.

Santos terá muito trabalho pela frente. A revista Consultor Jurídico fez uma busca no Orkut usando a expressão “odeio” e o resultado foi assustador. A lista do ódio é longa. Há aqueles que odeiam apenas “acordar cedo” ou “filmes dublados”. Mas, pelo menos 60 comunidades são dedicadas à discriminação contra negros, gays, nordestinos e judeus.

Exemplos escatológicos não faltam. É o caso da comunidade intitulada “Judeu — prefiro o meu ao ponto”, com 18 integrantes, onde um deles dá a receita de “como matar 150 judeus”. Outro grupo criado por um internauta que se denomina Matheus Almeida, se define como uma “ONG que luta contra gays” e tem 63 membros. A exigência para fazer parte do seleto grupo é a seguinte: “Se você vê um gay na rua e sente vontade de bater e esquartejar ele, junte-se a nós”.

O promotor Christiano Santos conta que os criadores de tais comunidades costumam utilizar o ícone “anônimo” ou nomes estranhos e outras expressões. Um exemplo é o internauta membro de uma comunidade neonazista que se identifica como “Mensageiro 88”. A letra H é a oitava do alfabeto. Nesse contexto, o apelido pode ser traduzido para “Mensageiro HH”, numa referência à saudação nazista Heil, Hitler.

Noutro caso investigado pelo Ministério Público, um adolescente que faz cursinho pré-vestibular e aspira uma vaga para o curso de Medicina criou uma comunidade intitulada “Sou contra as cotas para pretos”. E ele justifica sua posição: “Porque o lugar deles é na floresta e não na faculdade. Volta pra África, bando de inútil! Essa comunidade é totalmente racista e neonazista!”.

No caso, trata-se de um menor de idade e, nessa condição, a punição mais provável deve limitar-se a medidas sócio-educativas. Há, até mesmo, uma comunidade que odeia “velhos na minha frente”. Neste caso, o tempo se encarregará da punição.

Implicações criminais

Discriminação racial é crime tipificado pela Lei 7.716/89. O texto proíbe discriminação de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional e pune os infratores com pena de um a três anos de reclusão e multa. Quando o crime é cometido por meio de órgãos de comunicação social — onde pode se enquadrar o Orkut — a pena sobe para dois a cinco anos.

O estudante de engenharia M.G.N., quando criou sua comunidade no Orkut, tinha 17 anos, ou seja, poderia escapar das punições. Mas, segundo o promotor Christiano Santos, como ele já é maior e a comunidade ainda está no ar, “continua sendo verificada a prática de incitação ao racismo”. Logo, ele deve responder como adulto pelos crimes que cometeu.

Há casos também de grupos criados para difamar determinadas pessoas. Isso aconteceu com uma adolescente de 17 anos, “homenageada” pelos colegas de escola com duas comunidades dedicadas a ofendê-la em razão de sua origem, de um estado do Norte do país.

A mãe da jovem reclamou à escola. A diretoria tomou providências e muitos adolescentes saíram das comunidades, mas passaram a ameaçar a jovem. Resultado: ela teve de mudar de escola.

Também foram feitas reclamações à administração do Orkut, que fica nos Estados Unidos. Nenhuma providência foi tomada. A administração do site deu uma sugestão: “se você optar por processar essa pessoa legalmente e a ação resultar em uma determinação de que o material é ilegal ou deve ser removido, tomaremos as providências necessárias para retirá-lo do Orkut”.

A mãe da menina deve encaminhar representação para que o caso também seja investigado pelo Ministério Público. Como os trâmites judiciais não caminham com a mesma velocidade da internet, as comunidades continuam no ar.

Segundo o advogado Omar Kaminski, especialista em tecnologia e internet, é necessário que “uma decisão brasileira determine a retirada da comunidade do ar, expedindo-se carta rogatória”. Ele esclarece que, segundo o Princípio da Territorialidade, aplica-se a lei brasileira ao crime cometido em território nacional, a teor do artigo 5º do Código Penal. E que tratados e convenções internacionais podem agilizar o cumprimento à decisão.

As ações do Ministério Público, apoiadas pela legislação e jurisprudência brasileira, podem fazer com que a internet deixe de ser considerada terra de ninguém e acabem com a farra daqueles que tomam doses de coragem para cometer crimes quando estão escondidos atrás de seus monitores.

Essas atitudes irresponsáveis podem, ainda, provocar transformações na mais revolucionária ferramenta de comunicação dos últimos tempos. “São atos como esses que prejudicam a internet, tornando-a cada vez mais burocrática e restrita”, afirma Kaminski.

É da essência da internet o seu espírito libertário e a absoluta falta de controle sobre o material que nela circula. Isso não significa que eventuais atos criminosos cometidos na rede isentem os autores de responder por eles conforme as leis do mundo real.

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