Operadores da tecnologia

Faltam regras para profissionais de Tecnologia da Informação

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29 de julho de 2005, 16h09

Agir conforme a Ética é um requisito da vida em sociedade e é tão importante que até mesmo o mundo empresarial globalizado está a exigir de todos aqueles que pretendem sobreviver profissionalmente um comportamento ético, uma postura politicamente correta diante dos consumidores, fornecedores e meio-ambiente. Por isso, as empresas põem em prática cartilhas de conduta, manuais de atendimento ao cliente, cartilhas de política de utilização de recursos tecnológicos, acesso à Internet, privacidade e segurança etc. (1)

Essas regras de conduta, para que possam surtir efeito, devem ser bastante claras, devem expressar, de modo inequívoco, os atos obrigatórios, os facultativos e os proibidos. Para ter eficácia, devem ser internalizadas pelas pessoas.

A Moral é disciplina com fundamento na Filosofia Moral e na Teologia Moral. A Ética é a prática da Moral. Embora lastreada em disciplina teórica, a Ética é essencialmente prática. Há que se distinguir a ética social da ética profissional. A Ética Social é aquela cujo controle é difuso, é disperso pela sociedade. Diz respeito a um grupo social, maior ou menor. É a Ética Social que, embora não escrita, não admite, por exemplo, que os fiéis de uma igreja cristã compareçam ao culto religioso em traje de banho. Já a Ética Profissional é de controle unificado, por uma entidade que congrega os profissionais de determinada área.

A ciência que estuda os deveres profissionais chama-se Deontologia. Assim, pode-se falar em Deontologia Médica, Deontologia do Advogado, Deontologia do Contador etc. Enquanto a Ética Profissional cuida das condutas de uma maneira geral (o que é obrigatório, facultativo e proibido), a Deontologia versa sobre os deveres.

O profissional da área de Tecnologia da Informação conhece suas obrigações quando oriundas de um contrato de emprego, de prestação de serviço ou de parceria. Ele sabe, tecnicamente, o que deve ser feito. Processualmente, todavia, não conhece obrigações inerentes ao como comportar-se em relação ao que deve ser feito. Ele sabe o que fazer, bem assim tecnicamente como fazê-lo, mas não sabe como se comportar para fazer sua tarefa.

Na execução da tarefa, ele se defronta com dilemas éticos, em virtude das peculiaridades da sua atividade. Isso ocorre porque as profissões da área de Tecnologia da Informação simplesmente não são regulamentadas. Ditam o comportamento dele tão-somente a Moral e a Ética Social.

Do noticiado acima, nascem várias situações de conflito, diante das quais os próprios profissionais envolvidos não sabem como comportar-se. Dentre estas, pode-se citar exemplo de quando um diretor de uma empresa determina ao administrador de uma rede de computadores que acesse, na máquina servidora, o histórico das tarefas desenvolvidas por um determinado usuário da rede, sem o prévio conhecimento ou consentimento do usuário, ou quando o patrão exige que um empregado da área de TI utilize ou faça cópias não autorizadas pelo titular de um software, ou ainda quando um empregado compromete sua jornada de trabalho se deleitando em páginas da Internet, em detrimento do cumprimento de suas atribuições contratuais.

É necessário mudar essa situação.

Mas para que a mudança ocorra de forma segura e duradoura, impõe-se que seja feita dentro da mais estrita legalidade, ou seja, em conformidade com a Constituição Federal e com as leis, ouvidas as partes envolvidas e consideradas as peculiaridades do setor de tecnologia, notadamente a pluralidade de profissionais e atores envolvidos, e a própria dinâmica do setor, que sobrevive de inovação.

O primeiro passo é, pois, uma passagem pela Constituição Federal. Esta é uma carta de princípios, e não um diploma que regule esses princípios. Assim é que a CF estabelece que são invioláveis a intimidade e a privacidade (artigo 5º, inciso X), que também é inviolável o sigilo das comunicações de dados e telefônicas (artigo 5º, inciso XII), que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

De acordo com a Carta Magna, qualquer pessoa pode exercer qualquer profissão, desde que sejam atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Ou seja, as profissões para as quais a lei exige determinadas qualificações somente podem ser exercidas por quem é comprovadamente qualificado para isso. São estas as profissões regulamentadas.

Nesse passo, como não há nenhuma exigência legal para o exercício das profissões na área de TI, então qualquer pessoa pode fazê-lo, ou seja, não apenas aqueles que têm conhecimento científico ou embasamento teórico sobre o assunto. Essa é uma situação grave e desconfortável.

Quem regulamenta o exercício de determinada profissão é, num primeiro momento, o Poder Legislativo, que edita uma lei federal que cria um conselho profissional. Assim é que ocorre com todas as profissões regulamentadas, dentre as quais a de médico-veterinário, vinculada aos Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária, criados pela lei 5.517/68, a de médico, vinculada aos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, instituídos pelo Decreto-Lei 7.955/45 (revogada pela Lei 3.268/57), e a de assistente social, vinculada aos Conselhos Federal e Regional de Serviço Social, criados pela Lei 3.252/57 (posteriormente revogada pela Lei 8.662/93). São os Estatutos das profissões.


Num segundo momento, esses Estatutos profissionais são regulamentados, ora por Decreto (a exemplo do Dec. 44.045/58 que aprovou Resolução do CFM), ora por Resolução do próprio Conselho Federal da categoria (no caso da OAB), sempre conforme estabelecido em lei.

Em caso de dúvida quanto à interpretação de dispositivos desses Regulamentos, assim como nas situações por eles não contempladas, podem e devem ser baixadas, pelos Conselhos Federais, novas Resoluções ou Provimentos.

No âmbito das profissões regulamentadas, os Conselhos Federais têm a competência de criar Códigos de Ética, fixando condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, e as penas para sua violação, bem como os Regimentos que cuidam dos procedimentos ético-disciplinares, ou seja, da tramitação dos processos contra os profissionais acusados de violar as normas ético-profissionais.

A área da Tecnologia da Informação contempla uma variedade de profissionais, com níveis diferenciados de formação acadêmica e técnica e com atribuições específicas. São eles o Bacharel em Sistemas de Informação, em Ciência da Computação, em Informática ou em Processamento de Dados, o Analista de Sistemas, o Engenheiro da Computação, dentre outros profissionais com formação superior, reconhecidos pelo Poder Publico, no topo da pirâmide; o Técnico de Informática e o Programador de Computadores e outros profissionais com formação de nível médio; e o Auxiliar de Informática e outros afins, com formação básica.

Apesar da grande diversidade e quantidade de atores no cenário da Tecnologia da Informação, essa área profissional não é legalmente regulamentada, embora esforços tenham sido empregados nesse sentido. Além da ausência de regulamentação, há uma lacuna imposta pela falta de um Código de Ética Profissional.

São portanto dois desafios a serem superados, duas necessidades cujo suprimento é imperativo: a criação de um Conselho Federal e de Conselhos Regionais com autorização legal para disciplinar e fiscalizar o exercício dos profissionais — empregados ou autônomos — e das empresas na área de informática, bem como de impor sanções administrativas aos seus inscritos; e a criação de um Código de Ética Profissional, que estabeleça regras de conduta profissional.

Esforços nesse sentido não foram poucos. Assim é que houve diversos projetos de lei visando regulamentar as profissões na área de Informática, tendo sido arquivados em 31 de janeiro de 2003, em razão de não ter sido reeleito o Deputado Silvio de Abreu, autor do principal deles, de nº PLC 815/95 (2), ao qual estavam apensados mais quatro projetos (PL-981/1999, PL-2194/1996, PL-6639/2002 e PL-6640/2002) (3).

Há duas possíveis soluções para o impasse criado com o arquivamento dos projetos de lei que criavam o sistema do Conselho Federal de Informática. A primeira seria o pedido de desarquivamento do projeto, por seu autor. Todavia, como Silvio Abreu não foi reeleito para Deputado, essa hipótese é inviável. A segunda consiste da apresentação de uma nova proposta, por parlamentar ou entidade representativa da categoria. Por último, em qualquer caso, faz-se imprescindível o acompanhamento, o monitoramento de tramitação do projeto de lei junto às Casas Legislativas — Câmara e Senado — bem como cada movimento no âmbito das Comissões.

Após a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Informática estes, como legítimos representantes da classe, poderão instituir o Código de Ética Profissional de Informática, de modo a punir disciplinarmente os maus profissionais, imputando-lhes sanções administrativas de multa, advertência, censura pública, suspensão e até de exclusão do exercício profissional, conforme a gravidade da infração.

O processo legislativo no Brasil é extremamente demorado. O fisiologismo politiqueiro é algo muito mais presente na vida do legislador nacional do que o interesse social. Se no mundo inteiro o Direito anda a reboque dos fatos, no nosso país ele anda de tartaruga.

Atualmente, não há como punir os maus profissionais, aqueles que não têm ética, aqueles que não agem com lealdade para com os colegas, fornecedores e consumidores. Essa situação é inadmissível.

Não é possível que não exista um regramento ético para os profissionais de Informática, enquanto o legislador pátrio não se ocupa nem se preocupa com a criação de um sistema federativo profissional da área.

A lógica e o bom senso mandam que algo seja feito pelos profissionais e empresas da área de tecnologia da informação. É verdade que a inexistência de um Conselho criado por lei cria uma certa dificuldade, que pode ser transposta.

Os bons exemplos devem ser seguidos.

Toda a população, em algum momento, já ouviu falar do Conar (4). É o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, fundado em maio de 1980, na forma de sociedade civil sem fins lucrativos, por um grupo de profissionais da área de publicidade, com a “função de zelar pela liberdade de expressão comercial e defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os do consumidor” (5), com base em um bem sucedido “modelo inglês”.


Pois bem. Os profissionais de Informática não podem ficar de braços cruzados, enquanto o legislador não institui o sistema federativo profissional. A solução mais prática e rápida, porém legítima, seria exatamente a criação de um Conselho Nacional de Auto-Regulamentação de Tecnologia da Informação (6), como uma associação civil sem fins lucrativos, e, ato contínuo, a fixação de um Código de Auto-Regulamentação de Tecnologia da Informação, conduzido pelos legítimos representantes da classe, código esse que congregue preceitos éticos relativos aos profissionais e empresas da área de informática.

Um Código de Ética instituído por uma associação civil pode não ter, em princípio, a mesma força imperativa que possui um Código de Ética proveniente de um conselho profissional criado por lei federal. Mas poderá ter plena eficácia e respeitabilidade se houver um envolvimento de todas as partes interessadas, notadamente das associações da classe (Sucesu, Assespro, Abinfo (7), SBC (8)), das entidades sindicais (Fenadados e Fenainfo), associações estudantis (Enec (9)), bem como, e principalmente, de todas as instituições de nível superior do país nas quais há curso de Ciência da Computação ou similar.

O proficiente exemplo dado pelo Conar é uma bela amostra de que a auto-regulamentação pode dar certo.

Notas de rodapé

1 – Este artigo é resultante de anotações do autor para a palestra proferida no painel Ética na Atividade de Tecnologia da Informação, no SUCESU’2003 – Congresso Nacional de Tecnologia da Informação e Comunicação, promovido pela Sucesu – Sociedade dos Usuários de Informática e Telecomunicações, em abril de 2003, Salvador, Bahia. O título original da palestra foi “Necessidade de uma legislação para os usuários de informática e telecomunicações.” Para discutir a ética na atividade de tecnologia da informação, a organização da SUCESU’2003 convidou representantes de entidades sindicais, Fenadados – Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Processamento de Dados, Serviços de Informática e Similares e Fenainfo – Federação Nacional das Empresas de Serviços Técnicos de Informática e Similares, bem como a Assespro – Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, Software e Internet, para que se pronunciassem a respeito da postura que deve ser adotada por profissionais e empresas em relação à regulamentação profissional, à pirataria de software e à privacidade dos usuários de correio eletrônico, dentre outros aspectos. O painel tinha como objetivo debater e sistematizar as idéias, sob a ótica da legalidade, para que a comunidade de TI (formada por empregados, empregadores, empresas e autônomos) pudesse ter um guia quanto ao papel ético que cabe aos seus integrantes.

2 – O inteiro teor pode ser obtido no sítio da Câmara dos Deputados (acessado em 21.04.2003)

3 – Embora seja possível pesquisar os Projetos de Lei diretamente nos sites das Casas Legislativas, o advogado Omar Kaminski, diretor do IBDI e responsável pelo site InternetLegal, em uma das áreas deste, sistematizou toda a gama de Projetos de Lei que versam sobre Tecnologia da Informação, classificando-os de acordo com a Casa Legislativa da qual nasceu o projeto, bem como a situação atual (ativo ou arquivado), com a descrição resumida do último andamento, facilitando enormemente o trabalho de pesquisa.

4 – O sítio do Conar na Internet contém material interessante sobre a auto-regulamentação, incluindo os Estatutos, o Código de Ética, dados históricos etc. (acessado em 21.04.2003)

5 – Conforme consta no sítio do Conar (acessado em 21.04.2003)

6 – Por dever de lealdade intelectual, cumpre esclarecer que, numa discussão telefônica sobre o assunto, o eminente professor e advogado baiano Sérgio Novais Dias sugeriu a idéia trazida neste parágrafo, da qual imediatamente se apropriou o autor do presente texto.

7 – Associação dos Bacharéis em Informática.

8 – Sociedade Brasileira de Computação.

9 – Executiva Nacional dos Estudantes de Computação.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito de Informática da Universidade Católica do Salvador, presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, membro da Comissão de Informática do Conselho Federal da OAB, conselheiro da OAB/BA, advogado militante e sócio-fundador do escritório Brito Cunha Advogados em Salvador, Bahia.

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