Garantia constitucional

Justiça cassa decisão que obrigou réu a fazer prova contra si

Autor

27 de julho de 2005, 17h39

O réu não é obrigado, em hipótese alguma, a produzir prova contra si. O direito de não se auto-incriminar é garantido em ao menos três incisos vizinhos no artigo 5º da Constituição Federal: direito à ampla defesa, da presunção da inocência e de permanecer calado.

O princípio que impede a auto-incriminação não garante somente o direito ao silêncio. Sua amplitude abrange todos os atos do processo. O réu não pode ser obrigado nem mesmo a fazer exames físicos forçados — como retirar sangue para prova de DNA ou dosagem alcoólica.

Um acusado pode até mesmo se recusar ao uso do bafômetro, “pois prevalece o princípio da não auto-incriminação mesmo frente a norma legal expressa em sentido contrário”.

Esse foi o entendimento da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região ao conceder liminar para que os acusados Samuel Semtob Sequerra e Jan Sidney Murachowsky não sejam obrigados a identificar — na ação penal a que respondem por gestão fraudulenta e por operar instituição financeira sem autorização de casa de câmbio — as supostas contas mantidas por eles nos Estados Unidos.

Segundo os desembargadores, decisão em sentido contrário desloca o ônus da prova para a defesa. No caso concreto, segundo o desembargador federal Néfi Cordeiro, “desloca não para provar que é inocente (o que já seria absurdo), mas para que a defesa traga provas da culpa”.

Determinação polêmica

A decisão do TRF da 4ª Região derrubou determinação do juiz Sérgio Fernando Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, no Paraná. Em maio, no curso de ação penal por lavagem de dinheiro, o juiz intimou os acusados a “trazerem aos autos a identificação de suas contas mantidas ou por eles controladas no exterior”, sob pena de desobediência a ordem judicial.

Segundo o juiz, a determinação foi tomada porque o cumprimento da quebra de sigilo “depende do atendimento de solicitação de cooperação judiciária internacional, o que é, além de incerto, demorado”. Para Sérgio Moro, a não auto-incriminação o impede de exigir do acusado “informações verbais de fatos que possam incriminá-lo”. Mas não de exigir os documentos.

Representados pelos advogados Alberto Zacharias Toron e Carla Vanessa Domenico, os acusados entraram com Habeas Corpus na segunda instância. Os advogados sustentaram que “se os acusados não estavam obrigados nos seus interrogatórios a declinar se possuíam contas no exterior, quais e quantas, soa extravagante, para não dizer pueril, que se queira fazê-lo invocando a regra do art. 234 do Código de Processo Penal”.

Segundo os advogados, a determinação que, “sob pena de desobediência, pretende que os pacientes forneçam prova contra si omite de forma vergonhosa toda a doutrina nacional sobre o tema”.

Num primeiro momento, o relator da questão, desembargador federal Tadaaqui Hirose, rejeitou o pedido de liminar em Habeas Corpus. A decisão, contudo, foi revertida em Agravo Regimental. Para o desembargador Néfi Cordeiro, a decisão de primeira instância não poderia vigorar porque é “ilegal e contraria princípios básicos do processo penal”.

Leia a íntegra do Habeas Corpus

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL PRESIDENTE DO COLENDO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO.

Os advogados ALBERTO ZACHARIAS TORON e CARLA VANESSA T. H. DE DOMENICO, brasileiros, casado e solteira, inscritos respectivamente na seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (…) vêm à presença de Vossa Excelência impetrar

ORDEM DE HABEAS CORPUS

com pedido de liminar adiante explicitado em favor de SAMUEL SEMTOB SEQUERRA e JAN SIDNEY MURACHOWSKY, (…) em face de constrangimento ilegal por parte do MM. Juiz Federal da 2ª Vara Criminal de Curitiba, Seção Judiciária do Paraná o qual, sob pena de desobediência, determinou que os pacientes façam prova contra si entregando em juízo documentos relativos à suposta(s) conta(s) mantida(s) no exterior (Processo n.º 2004.70. 00021778-1).

Os impetrantes arrimam-se no disposto pelo artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal, e nos artigos 647 e 648, inciso I, do Código de Processo Penal, bem como nos motivos de fato e de direito adiante articulados.

Nesses termos, do processamento,

Pedem deferimento.

São Paulo, 12 de junho de 2.005.

ALBERTO ZACHARIAS TORON

O.A.B./SP n.º 65.371

CARLA VANESSA T.H. DE DOMENICO

O.A.B./SP n.º 146.100

EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL:

COLENDA TURMA:

EMINENTE RELATOR:

DOUTO PROCURADOR REGIONAL DA REPÚBLICA:

“O direito à não auto-incriminação constitui uma barreira intransponível ao direito à prova de acusação; sua denegação, sob qualquer disfarce, representará um indesejável retorno às formas mais abomináveis da repressão, comprometendo o caráter ético-político do processo e a própria correção no exercício da função jurisdicional” (Antonio Magalhães Gomes Filho, “Direito à prova no processo penal”, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 114).


I – DO CONSTRANGIMENTO ILEGAL:

1. Exibindo grande cultura jurídica, sobretudo no que diz com o conhecimento do direito comparado, o d. juiz federal apontado como coator, com base no art. 234 do Código de Processo Penal, exarou decisão na qual determina que os pacientes sejam intimados “para, em 15 dias, trazerem aos autos a identificação de suas contas mantidas ou por eles controladas no exterior no Bank Leumi USA e no Commercial Bank of New York, a que se referem os documentos de fls. 45, 47, 48 e 50 do apenso III, vol. I, bem como os extratos dos últimos doze meses de movimentação. (…). Em caso de desobediência à ordem judicial, o Juízo tomará as providências que reputar pertinentes” (grifamos, doc. 1, item 6, fl. 522 da numeração original).

Para a d. autoridade coatora, que expressamente diz identificar indícios de crimes na conduta dos pacientes, a quebra dos seus sigilos nas referidas contas não basta. É que “o cumprimento da quebra depende do atendimento de solicitação de cooperação judiciária internacional, o que é, além de incerto, demorado” (doc. 1, item 6, fl. 519). Por isso, S. Exa. afirma no decisório que faz uma “leitura crítica” do “nemo tenetur se detegere”, entendendo que a Constituição proíbe apenas que se extraia “compulsoriamente do acusado informações verbais de fatos que possam incriminá-lo” (idem, fls. 520). Assim, resumidamente, sustenta ser perfeitamente viável obter as informações que pretende mediante intimação.

2. Apenas para recordar, pois este não é o primeiro habeas corpus que esta E. Corte Regional examina em relação à ação penal a que os pacientes respondem, a acusação que eles sofrem atina com a suposta prática dos delitos previstos nos artigos 4º (gestão fraudulenta de administração financeira), 16 (operar sem a devida autorização casa de câmbio) e 22, parágrafo único (remessa de divisas ao exterior sem autorização legal ou manutenção de depósitos não declarados no exterior), todos da Lei n.º 7.492/96 e artigo 1º e 2º, da Lei n.º 9.613/98, tendo sido a denúncia parcialmente rejeitada apenas quanto ao crime de lavagem de dinheiro, pois, entre outras coisas, faltou-lhe descrever “com maior clareza os crimes antecedentes e o apontamento dos indícios suficientes de sua existência” (docs. 2 e 3).

3. A decisão questionada, eminentes desembargadores, não se sustenta à luz do que dispõe o nosso direito positivo, dos ensinamentos doutrinários e, tampouco, da pacífica orientação jurisprudencial. Representa unicamente um ponto de vista, pesa dizê-lo, distorcido e isolado de um juiz que procura, como um inquisidor, a ferro e fogo, obter provas para a condenação.

EMINENTES DESEMBARGADORES:

4. Tratando do tema objeto desta impetração ___ o privilege against self-incrimination — o eminente constitucionalista UADI LAMMÊGO BULOS adverte para que esse privilégio “retrata o princípio de que ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo” (“Constituição Federal Anotada, 4ª ed., São Paulo, ed. Saraiva, 2002, p. 273).

Trata-se, prossegue o autor, de matéria consubstanciada em convenções ratificadas pelo Brasil e em normas constitucionais. Aliás, segundo o art. 8º, §2º, g, do Decreto 676, de 6 de novembro de 1992, “toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Daí porque, na dicção do mestre baiano, que é professor da Universidade Federal da Bahia, o privilégio contra a auto-incriminação — nemo tenetur se detegere — é uma manifestação eloqüente:

1º) “da cláusula da ampla defesa (CF, art. 5º, LV)”;

2º) “do direito de permanecer calado (CF, art. 5º, LXIII)”; e

3º) “da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII)”.

5. No que diz com a projeção do referido privilégio na garantia da ampla defesa, registra-se que “possibilita ao réu, ao indiciado e à testemunha não se auto-incriminarem. Significa que eles podem recusar-se a produzir provas que lhes sejam desfavoráveis, sem que isso constitua crime de desobediência” (ob. cit., p. 273). E arremata o comentarista: “É o que tem declarado, em diversas assentadas, o Supremo Tribunal Federal, pois não se pode obrigar acusados, suspeitos ou testemunhas a fornecerem base probatória para caracterizar sua própria culpa (STF, HC 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, Informativo STF, n.º 122, HC 75.527, rel. Min. Moreira Alves, j. 17/6/97; HC 68.929, rel. Min. Celso de Mello, j. 22/10/91)” (ob. cit. p. 273, grifamos).

5.1. Não por acaso ANTONIO SCARANCE FERNANDES, professor da USP, salienta que a proteção contra a auto-incriminação significa, de forma geral, “a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma”, sendo o direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII) uma derivação do de não se auto-incriminar. Por fim, como decorrência desse direito do réu, anota que “não se admite que a eventual recusa de colaboração para produção de prova contra a sua pessoa possa configurar crime de desobediência” (“Processo penal constitucional”, São Paulo, ed. Rev. dos Tribunais, 1999, p. 261).


5.2. No campo doutrinário, tanto quanto no jurisprudencial, o escólio é indiscrepante no sentido da impossibilidade de se compelir o acusado a fornecer dados que possam incriminá-lo (cf. ANTONIO MAGALHÃES FILHO, “Direito à prova no processo penal”, ob. cit., pp. 98 e ss.; EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO, “O direito à defesa na Constituição”, São Paulo, ed. Saraiva, 1994, p. 71; ANTONIO CARLOS DA GAMA BARANDIER, “As garantias fundamentais e a prova”, Rio de Janeiro, ed. Lúmen Juris, 1997, p. 19; ADAUTO SUANNES, “Os fundamentos éticos do devido processo penal”, São Paulo, ed. Rev. dos Tribunais, 1999, pp. 273/4 e, entre muitos outros, ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro”, 2ª ed., São Paulo, ed. Rev. dos Tribunais, 2004, pp. 365 e ss.; ).

6. A despeito da pletora de autores citados, há um estudo específico sobre o tema, intitulado “O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal)”, apresentado como tese de doutoramento perante a Universidade de São Paulo em banca presidida pela Profª ADA PELLEGRINI. No trabalho em foco, destaca a sua ilustre autora, Drª. MARIA ELIZABETH QUEIJO, que o princípio “nemo tenetur” está relacionado ao modelo acusatório, no qual já não se considera o acusado como objeto de prova. O princípio em questão integra as assim chamadas liberdades negativas: por meio dele se assegura esfera de liberdade ao indivíduo, que não deve sofrer vulnerações por parte do Estado. Como corolário do regramento constitucional, afirma a prestigiosa autora que “não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para compeli-lo a cooperar na produção das provas; a recusa do réu não configura crime de desobediência; e não se permite extrair da sua recusa a veracidade da imputação, nem presunção de culpabilidade” (ob. cit, São Paulo, ed. Rev. dos Tribunais, 2003, p. 268).

7. A jurisprudência da Col. Suprema Corte assentou em vários julgados a mesma intelecção, vale a propósito, citar a memorável decisão do eminente Min. SEPÚLVEDA PERTENCE no HC n.º 79.244 (DJ 6/5/99), quando se assentou o seguinte:

“nos processos judiciais, o Supremo Tribunal Federal tem sido particularmente rigoroso na salvaguarda do direito do réu ou do indiciado a permanecer calado, OU RECUSAR-SE A FORNECER, DE QUALQUER MODO, PROVA QUE O POSSA INCRIMINAR v.g. HC 77.135, Galvão, 8.9.98; HC 75.527, Moreira, 17.6.97; HC 68.929, Celso, 22.10.91, RTJ 149/494; RE 199.570, M. Aurelio; HC 78.708, 9.3.99).

7.1. Sim, porque como bem sublinhou o ilustre Min. Celso de Mello (HC n.º 77.704) aludindo ao princípio nemo tenetur se detegere, trata-se de “direito público subjetivo revestido de expressiva significação político-jurídica que impõe limites bem definidos à própria atividade persecutória exercida pelo Estado. Essa prerrogativa jurídica, na realidade, institui um circulo de imunidade que confere, tanto ao indiciado quanto ao próprio acusado, proteção efetiva contra a ação eventualmente arbitrária do poder estatal e de seus agentes oficiais” (despacho liminar, DJ 19/8/98)

7.2. Mais recentemente, embora para situação análoga, a Col. Suprema Corte voltou a reafirmar a impossibilidade de se pretender a produção de prova obrigando o acusado “a fornecer os padrões gráficos vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável” (HC n.º 83.096, rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 12/12/03).

8. Assentadas tais premissas, percebe-se claramente que a d. autoridade coatora, invocando o direito comparado, ou uma superioridade crítica que supõe deter sobre toda a doutrina e jurisprudência (inclusive da Suprema Corte) quer conseguir por via transversa o que lhe é vedado no interrogatório: obter documentos.

8.1. Ora, se os acusados não estavam obrigados nos seus interrogatórios a declinar se possuíam contas no exterior, quais e quantas, soa extravagante, para não dizer pueril, que se queira fazê-lo invocando a regra do art. 234 do Código de Processo Penal. Elementar processo de exegese, que a d. autoridade coatora não deveria ignorar, Mestre em Direito que é, leva o intérprete a perceber que a faculdade inscrita no referido dispositivo não pode colidir com o privilégio que assegura aos acusados no processo penal o direito de não se auto-incriminar. A regra em questão pode até facultar o juiz providenciar a intimação das mais diferentes entidades, mas nunca a do imputado sob pena de desobediência. Outra intelecção representa a própria negação da garantia constitucionalmente assegurada aos acusados. Aliás, convém lembrar que as leis processuais devem ser lidas de acordo com a Constituição e não o contrário. A busca de eficiência repressiva, como é de comezinha sabença, há de respeitar os limites que o Legislador Maior traçou para os órgãos estatais.


8.2. Bem por isso, o saudoso Prof. CELSO RIBEIRO BASTOS, cujas luzes ainda nos iluminam, acentuava que o art. 5º, inc. LXIII, “significa um retorno à tradição de máximo respeito à inviolabilidade do direito de defesa do ordenamento processual penal brasileiro (…) descaracterizado pelo cunho autoritário que foi impresso ao Decreto-lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal)” (“Comentários à Constituição do Brasil”, São Paulo, ed. Saraiva, 1989, II/296, grifamos).

9. Curioso é que nem mesmo JOÃO CLÁUDIO COUCEIRO, ilustre Promotor de Justiça em São Paulo e ex-colega de classe do primeiro impetrante na Pós-Graduação, tantas vezes invocado na decisão da il. autoridade coatora, o socorre. É que o jurista paulista, quando alude à possibilidade de se requisitarem documentos do réu, o faz com relação a livros fiscais “na qual o comerciante é depositário de bem que pertence à Fazenda Pública”. Todavia — prossegue o autor — “nos casos em que o bem é de propriedade exclusiva do acusado, deve-se seguir o mesmo princípio acima sustentado: a negativa de exibir o documento constitui indício de culpabilidade, o qual deve ser cotejado com as demais provas produzidas, podendo, eventualmente, representar inversão do ônus da prova. A não-exibição de tais livros — arremata — não configura, porém, o crime de desobediência (art. 330 do CP)” (“A garantia constitucional do direito ao silêncio”, São Paulo, ed. Rev. dos Tribunais, 2004, p. 349, grifamos).

9.1. A decisão hostilizada, embora faça reiteradas invocações do pensamento de COUCEIRO, não lhe foi fidedigna, pois deixou de declinar a parte que lhe é adversa. A propósito, em matéria de ética, se o entendimento de COUCEIRO prevalecer quanto à presunção de culpa e inversão do ônus da prova, convém registrar que a decisão ora questionada traz consigo uma armadilha para os pacientes: afirma que eles possuem contas no exterior, fato definido como crime, quer a prova documental disto e, de outro lado, espezinhando a garantia do “privilege against self-incrimination” ou, na versão latina, “nemo tenetur se detegere”, adverte para as conseqüências da falta de colaboração… De um jeito ou de outro, a decisão aqui combatida traz ínsita a idéia de que são culpados porque ao invocarem e exercerem o privilégio constitucional de não se auto-incriminar estarão, aos olhos da autoridade coatora, “confessando” o crime cujas provas querem “esconder”. Os pacientes, parece ocioso afirmá-lo, não estão num processo penal regido pelo modelo acusatório, sentem-se como cera mole nas mãos da poderosa autoridade judicial ou, mais exatamente, numa verdadeira ratoeira!

10. Conquanto procure escorar sua decisão na regra do art. 234 do CPP, a d. autoridade coatora afirma sua pretensão à prova numa espécie de ética que o exime da interpretação literal da lei ou da Constituição (doc. 1, item 6, fls. 520). Mais à frente, invoca o caso do estupro seguido de morte e refere a inexistência de problema na violação do corpo do acusado (“uma espetada no dedo”). Aqui três coisas precisam ficar claras:

i) interpretar a lei, por mais construtivista que o exegeta seja, não se confunde com ignorá-la. Lembremo-nos aqui de uma antiga advertência do saudoso Min. MÁRIO GUIMARÃES quando assinalava que “seria o império da desordem se cada qual pudesse, a seu arbítrio, suspender a execução da norma votada pelos representantes da nação”. Em outras palavras, “o juiz não pode ir para o norte quando o texto legal, certa ou erradamente, lhe haja indicado o sul” (“O juiz e a função jurisdicional”, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1958, pp. 330 e 332);

ii) Os preceitos alienígenas ainda não são fonte para o direito penal pátrio, malgrado de lege ferenda se possa dizer que tenhamos muito a incorporar e, por fim;

iii) As experiências do século XX, do nazi-fascismo aos diferentes regimes comunistas, foram mais do que suficientes, extraordinariamente violentas, para que a humanidade percebesse e compreendesse que os ideais de construção de uma sociedade que se reputa melhor e mais justa, dentro da qual as desigualdades sociais pudessem ser uma lembrança do passado, não podem prescindir de limites à ação do poder estatal, isto é, das leis e da própria Constituição demarcando fronteiras intransponíveis que, uma vez ultrapassadas, fazem com que a dignidade humana fique reduzida a nada. Aludindo ao Estado de Justiça, tomada esta como um conceito absoluto, abstrato e idealista, cuja matriz pode ser encontrada no conceito hegeliano do Estado Ético, JOSÉ AFONSO DA SILVA chama a atenção para o fato de que esta concepção fundamentou o Estado fascista , qualificado na expressiva síntese de Elias Diaz, como “totalitário y dictatorial donde los derechos y libertades humanas quedan practicamente anulados y totalmente sometidos al arbítrio de um poder político omnipotente e incontrolado…” . A propósito, segundo esse autor, o Estado Ético era apresentado “como algo superior ao Direito, algo que pode inclusive atuar contra o direito” . Definitivamente não é este o Estado que a Constituição brasileira de 1988 instaura!


EMINENTES DESEMBARGADORES:

11. A decisão que, sob pena de desobediência, pretende que os pacientes forneçam prova contra si omite de forma vergonhosa toda a doutrina nacional sobre o tema. Quer apresentar-se como jurídica, justa e moralmente acertada, quando, na verdade, é contrária ao direito, incorreta e isolada. Mais grave ainda é citar um autor e omitir o seu posicionamento, contrário ao sustentado. Seria isso ético ou leal em termos processuais? A decisão omite também toda a jurisprudência que se ergue sobre o tema, seria isso ético? Mais que omitir, a decisão aqui vergastada apresenta e procura incorporar a doutrina e a legislação estrangeiras como se isso pudesse servir de suporte para a monstruosidade que se perpetra contra os pacientes. Será que o senso crítico do seu d. prolator permite tudo isso sem qualquer dor de consciência porque acredita estar fazendo justiça, mesmo que ao arrepio das garantias constitucionais? Se não se tratar de um sério equívoco, estamos seguramente diante de um caso de desmedida prepotência intelectual e jurisdicional que se espera, em qualquer caso, ver jugulada com a concessão da ordem para se impedir qualquer conseqüência em relação ao não atendimento da ordem judicial retratada no item 1 supra.

Decidindo dessa maneira, Vossas Excelências como é costumeiro, estarão realizando a melhor

J U S T I Ç A!

II- DO PEDIDO LIMINAR:

12. Os requisitos para a concessão do pedido liminar estão presentes e de forma retumbante: a fumaça do bom direito existe porque a pretensão de, mediante desobediência, obter dos pacientes documentos que possa incriminá-los violenta a garantia constitucional do nemo tenetur se detegere, tal como a interpreta toda a doutrina e toda a jurisprudência; já o periculum in mora decorre do fato de a d. autoridade coatora ter fixado prazo para a aplicação de conseqüências aos pacientes.

12.1. Assim, em caráter liminar, pede-se apenas que, até o julgamento deste writ, seja determinado a d. autoridade coatora que se abstenha de atingir os pacientes com a conseqüência da desobediência. O deferimento da providência cautelar não trará qualquer prejuízo ao processo, uma vez que o habeas corpus será julgado rapidamente e, de outro lado, não tolhe o juiz quanto ao normal andamento do processo em primeiro grau.

III- DO PEDIDO FINAL:

13. Aguarda-se, ao final, a concessão da ordem para se expungir toda e qualquer conseqüência decorrente do não atendimento da determinação judicial que reclama dos pacientes a entrega de documentos como medida da costumeira J U S T I Ç A!

São Paulo, 12 de junho de 2.005.

ALBERTO ZACHARIAS TORON

O.A.B./SP n.º 65.371

CARLA VANESSA T.H. DE DOMENICO

O.A.B./SP n.º 146.100

Notas

1 O autor traz ainda um expressivo julgado do extinto Tribunal de Alçada Criminal onde se salienta que é salvaguardado o direito do acusado ou indiciado a permanecer calado ou recusar-se a fornecer, de qualquer modo, prova que o possa incriminar (11ª Câm., HC n.º 455.282/9, rel. Juiz Wilson Barreira, j. em 10/11/03; apud: “A garantia constitucional do…”, p. 350).

2 “Corrupção e estado democrático de direito (o caso brasileiro) ” in: “Poder constituinte e poder popular”, São Paulo, ed. Malheiros, 2000, p. 116.

3 “Estado de derecho y sociedad democratica”, Madri, ed. Taurus, 1998, p. 85.

4 Idem, p. 78.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!