A elite incomodada

A luta contra a corrupção ameaça o Estado de Direito?

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20 de julho de 2005, 9h31

De um lado estão os que acham que ruidosas operações da Polícia Federal são exageradas, violam os direitos fundamentais dos cidadãos e têm caráter político-partidário, com o objetivo de desviar as atenções das denúncias de corrupção contra o governo federal. De outro, os que garantem que as reações é que são exageradas e só ocorreram pelo fato de as investigações atingirem representantes da elite sócio-econômica que se consideravam acima de qualquer suspeita. Deste ponto de vista,portanto, não há porque se falar em ameaça ao Estado democrático de Direito ou em crise institucional.

O paradoxo tem como pano de fundo as prisões temporárias de empresários como os donos da Schincariol e da megabutique Daslu, as invasões de escritórios de advocacia, e a enxurrada de quebras de sigilos bancários, fiscais e telefônicos para investigar supostas fraudes, que acabam tornando-se públicos. E, se o afã de coibir ilícitos e preservar os interesses públicos é positivo, fica a questão: as ações comandadas pela PF com o respaldo do Judiciário são revestidas de suficiente razoabilidade para que não seja violada a dignidade humana, garantida constitucionalmente?

Matemática

A primeira resposta, de acordo com especialistas ouvidos pela revista Consultor Jurídico, está no conceito da proporcionalidade dos atos. A ele, são intrínsecos três valores: a necessidade da medida, a adequação dos meios aos fins almejados, e a restrição ao que for imprescindível fazer tendo-se em conta o resultado obtido. “É crucial levar em consideração se cada operação tem base no campo investigativo que a justifique”, diz a procuradora do Ministério Público estadual de São Paulo, Flávia Piovesan.

Ou seja, era necessário, por exemplo, manter Eliana Tranchesi, da Daslu, durante dez horas na Superintendência da Polícia Federal e manter sob sigilo que a mais luxuosa butique da América Latina estava sendo investigada por sonegação fiscal e contrabando desde 2004? Para o professor da USP e advogado do escritório Lacaz Martins, Halembeck, Pereira Neto, Gurevich & Shoueri Advogados Luis Eduardo Schoueri, não.

Segundo ele, a prisão só se justifica se houver risco de fuga ou de prejuízo às investigações. “Hipóteses que no caso são muito difíceis de se concretizar. As operações foram feitas simultaneamente em vários ambientes, não havia como destruir documentos e a acusada tem endereço certo, não iria sumir”, diz. Assim, afirma, a necessidade da detenção temporária desaparece. “O efeito é apenas intimidador, fruto do desvirtuamento da finalidade. Todo poder tem uma motivação, existe para uma finalidade. Quando ocorre o desvio ele se torna arbitrário, que é a grande tentação da autoridade”.

Alvoroço

Já para o juiz Nino de Oliveira Toldo, titular da 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo, se o juiz decretou a prisão é porque se convenceu da necessidade de restringir a liberdade do cidadão temporariamente. Tanto que a medida está prevista na lei 7.960 de 1989, que regulamenta o instituto. “Não se pode dizer que houve irregularidade só porque a pessoa foi liberada dez horas depois”, afirma. Ademais, para ele, se a ordem é excessiva há meios previstos na legislação processual para que se busque a correção do exagero. “O que tem acontecido é que os objetos das prisões são pessoas que normalmente não seriam atingidas. Mandados de busca e apreensão são expedidos todos os dias e ninguém se insurge”.

Também para o juiz federal de Campinas Fernando Moreira Gonçalves, em todos os casos havia indícios que justificavam as ações da Polícia Federal. “Quem deve ter medo é quem fez algo errado. Ninguém está acima da ação da polícia e da justiça. Quem não está envolvido em nenhum ilícito não tem porque temer”, afirma. Assim como Oliveira Toldo, para quem “nessa fase não há de se falar em contraditório (a necessidade de o investigado ter conhecimento da investigação) porque ainda nem existe processo contra ele [no caso, Eliana Tranchesi]”, Moreira Gonçalves afasta a necessidade de a apuração ser aberta. “Do contrário, há o risco de as provas ou documentos desaparecerem no curso das investigações”.

Execração pública

O risco, porém, advertem especialistas, é a exposição do nome e das imagens de pessoas sem que existam provas irrefutáveis de envolvimento nos crimes dos quais são suspeitas. “Não basta apresentar provas do ilícito. Há de se analisar a qualidade delas. Se elas não forem consistentes, caracteriza-se o abuso do Ministério Público e do Poder Judiciário, o que pode resultar numa enxurrada de ações por dano moral ou abuso do Estado”, afirma o professor de pós-graduação em Direito Constitucional do Mackenzie João Antonio Wiegerinck. Em tese, sustenta ele, em vez de ser presa, Eliana poderia ter sido convocada a depor.

Assim, se por um lado há a preocupação em preservar o interesse público, investigar os supostos ilícitos, e manter a população informada — o que reverte em benefício da sociedade que assiste à busca em punir os cidadãos que não pagam devidamente seus tributos, sem distinção de classe —, deve ser levado em conta o direito à privacidade, uma das garantias fundamentais da Constituição Federal. “É um conflito permanente que não tem solução, mas que pode ser administrado”, diz Wiegerink. Em outras palavras, para que um direito fundamental seja preterido deve existir também na Constituição outra norma que justifique a ação.

Atropelo

Ainda no caso da dona da Daslu, discute-se a razoabilidade em iniciar um processo criminal por crime contra o sistema financeiro antes de encerrado o assunto na esfera administrativa. De acordo com entendimento da vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, em julgamento do Habeas Corpus 85.949, a tese de que a instauração de processo para apurar sonegação depende de prévio procedimento administrativo é discutível.

Para o juiz Oliveira Toldo, a ação penal por crime contra ordem financeira não necessita de procedimento administrativo prévio da Receita Federal, mesmo porque a legislação é “bem favorável ao contribuinte”. Segundo ele, uma coisa é deixar de pagar impostos, outra é omitir ou fraudar informações com o objetivo de diminuir o valor do tributo.

Em outro entendimento, no entanto, o Supremo estabeleceu que a materialidade da sonegação só existe se houver tributo devido. “A comprovação do débito só se dá quando encerrado o processo administrativo”, afirma o professor Schoueri. “Tanto que o prazo de prescrição só começa ao fim do processo administrativo. Além do mais, a autoridade tributaria não pode comunicar autoridade penal antes de encerrado processo administrativo”.

Com Schoueri concorda o advogado Luiz Henrique Barros de Arruda, do Gouvêa Vieira Advogados. Segundo ele, para que seja configurado crime contra a ordem tributária é necessária a constituição prévia de auto de infração. “Antes de se concluir o julgamento de seus recursos não é possível a propositura de ação criminal”, afirma. “O que se vê hoje é comparável ao que se via no Coliseu. Não estou dizendo que os acusados são cristãos puros jogados aos leões, mas não vi fundamentação na imprensa que justificasse as prisões”.

Invasão de escritórios

Também os mandados de busca e apreensão em escritórios de advocacia têm despertado argumentos de ambos os lados entre os membros da comunidade jurídica brasileira. Para Wiegerink, as invasões a escritórios equivalem a invadir um hospital psiquiátrico em busca de prontuários que não podem ser divulgados. “Quando procuro um advogado é porque estou com problemas. Com certeza você vai encontrar documentos de pessoas que estão procurando se adequar à lei”, diz. O problema, para ele, está na possibilidade de as investigações começarem pelo escritório. “A investigação em escritórios deve ser conseqüência da investigação, caso existam evidências que ele está em conluio com o criminoso”, afirma.

Schoueri vai além. “Invadir um escritório é como invadir um consultório para tentar pegar o perfil psicológico do Fernandinho Beira-Mar, ainda que se revele um perfil criminoso”. Ainda segundo ele, não significa que o fato de o juiz não ter limitado a busca no mandado — os chamados mandados genéricos, que não definem o objeto da busca, uma das principais queixas dos advogados — essa limitação não exista. “Caberia ao juiz limitar, mas sua omissão não significa que a autoridade policial possa tudo. Ela também está submetida à Constituição Federal e à preservação dos direitos fundamentais”.

De acordo com o juiz Oliveira Toldo, no entanto, as prerrogativas dos advogados, que garantem a inviolabilidade da relação com seus clientes, não são absolutas. “Nem mesmo os juizes tem inviolabilidade absoluta, vide a busca e apreensão feita na casa do [João Carlos da] Rocha Mattos [condenado por vender sentenças judiciais]”. Do contrário ficaria fácil para o criminoso entregar a prova ao advogado porque ali ninguém mexe. Por outro lado, ele admite que os mandados devem ser o mais específicos e restritos possíveis. “Não se deve apreender o computador inteiro, por exemplo. Deve-se buscar apenas os arquivos relacionados aos investigados”.

Livro aberto

A tênue linha que separa os direitos dos deveres constitucionais passa ainda pela quebra de sigilos fiscal, bancário e telefônico dos investigados. Nesse caso, a posição é unânime: não há porque fazer uma devassa na vida do suspeito de crime, todos eles devem ser específicos, compreendidos num determinado espaço de tempo. “O abuso não está no instituto em si, mas na forma como ele é usado. A quebra deve ser feita na medida que existirem indícios consistentes e motivos muito bons para solicitá-lo”, afirma Wiegerink. “Só posso falar em quebra de sigilo bancário, por exemplo, quando há deslocamento monetário estranho na conta-corrente”.

Além disso, para o juiz Oliveira Toldo, as informações obtidas com a quebra do sigilo devem ser encaminhadas para o procedimento investigativo e não deixar que se tornem públicas. “Isso é um erro, passível de investigação e punição”, afirma ele. Por outro lado, segundo o juiz Moreira Gonçalves, “não se pode sacralizar o sigilo, principalmente quando o investigado exerce função pública. Na Finlândia, por exemplo, um dos países com menor grau de corrupção do mundo, a declaração de renda de todos os cidadãos fica exposta na internet”.

Desvio

A tese de que o objetivo da repentina produtividade da Polícia Federal seja desviar o foco das atenções das denúncias de corrupção envolvendo o governo federal e o PT é corroborada pela procuradora Flávia Piovesan. “Há algo de político-partidário nas ações”, afirma. A conotação estaria no fato de que a megabutique está ligada à imagem do governador Geraldo Alckmin, que inclusive tem uma filha que trabalha lá. “O problema não é ter acontecido com ela, mas não acontecer com os outros. Houve seletividade. A ação não foi aleatória, houve um componente político”, diz.

Ações desta magnitude provocaram a liberação de faíscas entre entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e os juízes federais e, mais recentemente, entre a Fiesp — Federação das Indústrias de São Paulo e a Polícia Federal. Para o juiz Toldo, no entanto, não se pode falar em crise institucional. “Elas são entidades que trabalham juntas e o desentendimento não pode abalar os pilares da democracia. As instituições devem ser preservadas”, afirma. Segundo ele, dizer que as ações atentam contra o Estado Democrático de Direito é diminuir o Judiciário e as instituições que são a base da democracia.

Apesar de todos os pesares, as operações têm seu saldo positivo, segundo Flávia Piovesan. “Temos de lembrar que vivemos em um regime Republicano e que a lei se aplica a toda e qualquer pessoa independentemente de quem seja. O Brasil ainda se assusta quando a lei é aplicada rompendo blindagens sociais”, afirma. “Temos de passar por uma mudança cultural”, afirma o professor Wiegerinck. “no sentido dos brasileiros começarem a arcar com suas responsabilidades. A acusação em relação ao pobre e ao rico é a mesma. Não é o caso de dizer que há uma campanha para pegar a elite”.

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