Ultraje a rigor

Uso de algemas pela PF levanta clamores na sociedade

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17 de julho de 2005, 11h20

“O uso da algema é uma tradição. É um instrumento da Polícia Federal. Não sabemos qual vai ser a reação das pessoas. As algemas podem e devem ser usadas em toda e qualquer prisão, é uma medida de segurança”. A declaração é do superintendente da Polícia Federal em São Paulo, José Ivan Guimarães Lobato, ao prestar esclarecimento em mais uma das muitas operações da Polícia Federal, desta vez contra a Daslu, a mais luxuosa butique da América Latina.

No desenrolar de suas inúmeras operações, a Polícia Federal arrancou aplausos de um lado e críticas de outro. Os aplausos são pela eficiência e harmonia no trabalho em conjunto com o Ministério Público Federal e Receita Federal, e no combate implacável à corrupção e ao crime organizado. As críticas se referem a abusos, e ao cerceamento dos direitos fundamentais. Apontam-se como desnecessárias as prisões cautelares, o aparato bélico a quantidade de agentes envolvidos. A repulsa à agressividade invasiva da Polícia Federal pode ser resumida em um único gesto: o uso ostensivo de algemas para prender pessoas aparentemente inofensivas.

Para Francisco Carlos Garisto, presidente da Fenapef — Federação Nacional dos Policiais Federais, o brasileiro tem atualmente muito mais com que se preocupar do que com a questão, a seu ver periférica, do uso das algemas. “É mala de dinheiro voando para todo lugar e querem vir criticar o uso de algemas? O país está podre.”, desabafou Garisto, que serve a polícia federal há mais de 30 anos, quase todo o tempo como agente especial de combate ao narcotráfico.

O presidente da Fenapef rememora as 123 grandes operações deflagradas nos últimos três anos e se enche de orgulho para contar que não foi disparado um só tiro, que nenhum policial ou suspeito sequer sofreram um arranhão. “Essa é a justificativa das medidas utilizadas, garantir a segurança e a ordem de todos. A algema é uma segurança”, afirma.

A opinião pública e a imprensa questionaram e criticaram o uso de algemas em outros momentos da história do país. Como no caso da prisão do então senador Jader Barbalho (PMDB-PA), principalmente por se tratar de um senador. Barbalho foi acusado, em 2002, de envolvimento no desvio de R$ 1,7 bilhão da Sudam — Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. Preso, foi exibido algemado perante as câmaras de televisão. Garisto conta que Jader foi algemado porque tentou agredir um agente da polícia no Pará, na ocasião de sua prisão.

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal arquivou o inquérito contra Barbalho. O ministro Gilmar Mendes reconheceu a incompetência da Justiça Federal de primeira instância que recebeu a denúncia contra o ex-senador. Atualmente Jader Barbalho é deputado e presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados.

“A policia vai continuar do jeito que está, ela é escrava da lei. Munida de mandado prisão, amparada pela Justiça e pelo Ministério Público, ou em caso de prisão em flagrante, o policial tem toda a liberdade de algemar, se julgar necessário. Essa questão do uso da algema deve ser analisada sem paixão”, afirmou Garisto.

Limites para as algemas

O deputado Wagner Rubinelli (PT-SP) apresentou projeto à Câmara dos Deputados para regulamentar o uso das algemas. Pela proposta fica dispensado o uso das algemas nos casos de réu primário, de bons antecedentes, que não resistir à prisão, não tentar a fuga ou se não se tratar de prisão em flagrante. O projeto prevê que a autoridade judicial, analisando o caso concreto, poderá determinar ou não o uso de algemas.

Garisto deixa clara sua indignação com o que julga uma usurpação de atribuição. “Como um deputado pode querer julgar e definir quando um policial precisa usar algema? É a coisa mais absurda que já vi”.

Segundo Garisto, o estardalhaço da última operação se deu por envolver uma pessoa de destaque na elite paulista. “Gostaria de saber da OAB e da Fiesp porque não intervieram quando uma mulher recentemente ficou presa por 120 dias por causa de um vidro de xampu? Não tenho nada contra rico, até gostaria de ser também”. O presidente da Fenapef garantiu que o brasileiro tem de se acostumar com esse tipo de operação porque “ela veio pra ficar”.

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivan Sartori, afirma que o projeto do deputado Rubinelli, é um pouco arriscado. Para ele, quem pode analisar a necessidade das algemas é o próprio policial no momento da prisão. “Dependendo do caso, o próprio policial pode sofrer as conseqüências dessa normatização”, ponderou.

Sartori defende que é muito difícil regulamentar a questão de forma detalhada, objetiva e fria. “Depende da natureza do crime, do momento de cada caso, da possibilidade de fuga, da periculosidade do alvo. Se não houver riscos e perigos observados esses itens, é obrigatória a dispensa do uso”, afirmou o desembargador, para quem, a regra deveria prever excessos e abusos.


Nos casos de crimes de colarinho branco, acredita Sartori, se não houver tentativa de fuga ou reação violenta, não há necessidade do uso de algema. Ele explicou que esse tipo de crime é intelectual e não implica violência. “O que deve valer é uma necessidade real da algema, que as circunstâncias devem indicar”.

O advogado criminal Antonio Ruiz Filho, também 1º Secretário da Aasp — Associação dos Advogados de São Paulo, esclareceu que não há legislação específica para o uso de algemas. Alguns artigos do Código de Processo Penal fazem restrições a abusos. O artigo 284 prevê que não é permitido o emprego de força, salvo em caso de resistência e tentativa de fuga.

“Quando a pessoa a ser detida não oferece risco, não há necessidade de se usar algema, como tem ocorrido em alguns casos”. Já o artigo 292, prevê que se houver resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência.

O artigo 199 da Lei de Excussão Penal determina que o emprego de algema será disciplinado por decreto federal, embora não seja matéria passível de decreto. Segundo Ruiz a falta de regulamentação dificulta o controle da ação policial. Ele ressaltou que o emprego de algema em casos desnecessários é um desrespeito aos direitos fundamentais, além de ser humilhante. Afirmou, ainda, que as recentes prisões nas operações da PF são temporárias e que o principio da presunção de inocência está sendo mitigado.

Segundo Ruiz, também não faz sentido prender alguém por causa de sonegação fiscal, embora o artigo 1º da Lei 7.960/89 preveja prisão temporária para o caso dos crimes contra o sistema financeiro e formação de quadrilha. O advogado não concorda com este dispositivo da Lei: “Não são crimes violentos, como a sonegação fiscal também não é. Isso precisa ser revisto”. De acordo com o advogado, nesses casos, o principal meio de investigação é o documental, não havendo necessidade de decretar prisão.

O advogado criminalista, Ronaldo Marzagão, que está há mais de 40 anos na estrada da profissão, afirma que é necessário avaliar a situação da prisão, a periculosidade do alvo, possíveis tentativas de fuga e possibilidade de reação violenta. Se não houver nenhum desses elementos, “não tem sentido a banalização da algema”.

Na opinião do advogado, a pessoa que assiste uma prisão com o uso de algema logo associa o detido a uma pessoa violenta, que oferece grande perigo. “Em alguns casos fazem-se verdadeiros espetáculos. Existe uma regulamentação no CPP contra abusos e o emprego de algema deve estar ligado ao espírito do Código. As autoridades devem agir com bom senso, guiadas pelas circunstâncias”.

Marzagão analisa que o país vive um movimento pendular. “O pêndulo da Justiça ora vai para um lado, ora para outro. Criou-se um clima de impunidade, com a sociedade cobrando a punição dos culpados. Em reação a este sentimento, autoridades que têm o dever de combater a criminalidade e a impunidade, acabam agredindo também o direito”

Para o advogado, o Judiciário é uma caixa de ressonância dos anseios da população. “Chegamos ao ponto máximo de tolerância, passando esse limite não estaremos mais no estado de democrático de direito. Está na hora deste pêndulo voltar ao seu ponto de equilíbrio. O poder Judiciário é fundamental para fazer essa mudança”.

Eduardo Muylaert, advogado criminalista acredita que em alguns casos está havendo abuso por parte da Polícia Federal, mas não vê necessidade de uma Lei para regulamentar o uso de algemas. “O bom senso indica os limites e a necessidade da algema”. Para Muylaert, a Lei será necessária apenas se o abuso persistir, estabelecendo, de forma genérica, os casos em que não se pode empregar o instrumento.

Para o advogado Eduardo Mahon, de Mato Grosso, está clara a finalidade do uso de algema. “Na fogueira das vaidades em que se chamuscam Ministério Público e Polícia Federal, o uso de algemas é mais um elemento de espetáculo para a mídia”. Mahon afirma, ainda, que o acusado que não oferece risco ou demanda resistência, não poderá jamais ser tratado como um delinqüente. “É preciso bom senso, e infelizmente não há lei que discipline postura sensata, a não ser a resistência aguerrida dos advogados que são, em último caso, os verdadeiros fiscais da lei”, concluiu.

Conheça o Projeto de Lei do deputado Rubinelli

PROJETO DE LEI Nº

(Do Sr. Rubinelli)

Altera o art. 199, da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a lei de execução penal.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º O art. 199, da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, passa a vigorar com a seguinte redação:


“Art. 199. No cumprimento dos mandados de prisão será dispensado o uso de algemas quando o agente:

I — for réu primário e ter bons antecedentes;

II — não resistir à prisão;

III — não se tratar de prisão em flagrante;

IV — não empreender em fuga.

§ 1º No Tribunal do Júri, sendo o réu primário e tendo bons antecedentes será dispensado o uso de algemas, salvo quando a autoridade judicial entender que o réu representa perigo.

§ 2º A autoridade judicial poderá, analisando o caso concreto, determinar ou não o uso de algemas.” (NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Justificação

Os jornais noticiaram recentemente a prisão de 05 membros da família Schincariol, por suposta sonegação fiscal. A empresa divulgou nota oficial com relação ao episódio ocorrido, decorrente de ação conjunta da Receita Federal e Polícia Federal, refutando as acusações feitas contra os dirigentes que foram vítimas dessa ação e lamentado a forma como foi conduzida a ação, pautada por um comportamento violento (uso de algemas) e sensacionalista contra cidadãos de bem, que não ofereceram qualquer resistência, com residência fixa e conhecida.

O uso de algemas no nosso país, ainda é um assunto tormentoso por falta de disciplina jurídica específica sobre o assunto. O art. 199 da Lei de Execução Penal sinalizou com seu regramento (art. 199: “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”). Mas até hoje não temos esse decreto federal que cuide da matéria.

Em dispositivo por demais divulgado pela mídia, pois é um discurso literariamente bonito, a Constituição Federal diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III).

O texto constitucional não é poesia, é algo para ser observado, especialmente pelos que exercem o poder, pois é o Contrato Social que lhes dá o poder e os seus estritos limites. A mesma Constituição insiste, ainda como garantia constitucional, que “é assegurado ao preso o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, XVII).

A propósito, todas as Constituições Republicanas foram expressas em vedar a humilhação do ser humano preso, mesmo do mais ignóbil. A República baniu as penas infamantes. (Ficou-nos o estigma da sentença que condenou os inconfidentes, o mais terrível documento público que se lavrou neste país, tão pouco tempo depois das deslumbradas linhas de Pero Vaz de Caminha.)

Foi tal a importância que o constituinte deu ao tema dos Direitos e Garantias Fundamentais que admitiu que outras, além daquelas do art. 5º, podem ser adotadas por via dos “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º). Foi o que se fez pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, onde está consignado, em nível de legislação supra nacional, o que já constava no Pacto Constituinte. Diz-se nesta Convenção, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.” (art. 5º, item 2º)

Na legislação infraconstitucional, o Código Penal, tratando das penas, é enfático ao dispor que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.” (art. 38)

A Lei de Execução Penal diz que impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios (art. 40) e estabelece, como direito do preso, a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo (art. 41, VIII). Ainda nas disposições finais, a LEP insiste que é defesa ao integrante dos órgãos da execução penal, e ao servidor a divulgação de ocorrência que … exponha o preso a inconveniente notoriedade durante o cumprimento da pena (art. 198). Estas disposições devem ser aplicadas ao preso provisório, por óbvio e por força do art. 42 da mesma LEP.

Ou seja, não faltam dispositivos legais prevendo a forma como o preso, provisório ou condenado, deve ser tratado e que o espalhafato jornalístico com a imagem de quem quer que tenha cometido delitos, mesmo do criminoso mais abjeto e por hediondo que seja seu crime, ofende um sem número de disposições legais de nosso sistema jurídico que, é bom dizer-se, trata-se de um sistema de direito civilizado.

Mais razoável seria não misturar a honra do governo com um assunto meramente policial. Já faz milênios que a humanidade ultrapassou o conceito da pena como vingança, privada ou pública, superado o olho por olho, a vindita, e estamos em regime de estrita legalidade, em que o agente do Estado só pode fazer o que a norma jurídica o autoriza de modo expresso e, de modo nenhum, pode fazer o que a lei explicitamente proíbe.

Dessa forma, a imposição de uso de algemas pelas autoridades policiais, deve possuir critérios, para que não haja abusos, e não infrinjam os dispositivos legais supra mencionados.

Outro ponto a ser salientado é a possibilidade de nulidade do processo no Tribunal do Júri, como demonstra a jurisprudência dos nossos Tribunais, quando o réu permanecer algemado durante o desenrolar dos trabalhos, eis que tal circunstância interfere no espírito dos jurados e, conseqüentemente, no resultado do julgamento, constituindo constrangimento ilegal que dá causa a nulidade. (RT 643/285)

A presente propositura pretende alterar o art. 199 da LEP, estabelecendo critérios para o uso de algemas pelas autoridades policiais, no momento do cumprimento de mandados de prisão e perante o Tribunal do Júri.

Desse modo, esperamos contar com o apoio de nossos ilustres Pares, com vistas à aprovação dessa proposta legislativa, que se reveste de inegável alcance social.

Deputado Rubinelli

PT/SP

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