Banalização do dano

TV Globo está livre de indenizar por atraso de show

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14 de julho de 2005, 12h19

A TV Globo e a Credicard estão livres de indenizar Jeferson Falchioni por causa do atraso de uma hora e dez minutos do show da dupla Sandy e Júnior, no estádio do Pacaembu. A decisão é do 2º Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de São Paulo.

A decisão derruba sentença de primeira instância, que havia condenado as empresas a pagar R$ 3,9 mil por danos morais. O fã alegou que a produção do espetáculo e a TV Globo decidiram atrasar o show para aumentar a audiência de um programa ao vivo. Ambas as partes recorreram da decisão. Falchioni insatisfeito com o valor concedido, e as empresas alegando, preliminarmente, ilegitimidade passiva, e, no mérito, inexistência de dano moral.

Para o relator do recurso, juiz Francisco José Galvão Bruno, “nada do que ocorreu é de forma alguma surpreendente; tanto assim que não houve uma chuva de ações como esta, logo após o espetáculo”. Afirmou, ainda, que “trata-se de princípio básico: como regra geral, não se indeniza quem se coloca voluntariamente em situação que torne provável o dano sofrido”.

Segundo Galvão Bruno, não se deve permitir a banalização do instituto do dano moral, “tão importante e tão tardiamente reconhecido”. De acordo com o juiz para que se caracterize o dano moral é preciso que fique provado sofrimento ou humilhação.

A TV Globo foi representada pelos advogados Luiz de Camargo Aranha Neto e Luís Fernando Pereira Éllio, do escritório Camargo Aranha Advogados Associados.

Leia a íntegra do arcórdão

PODER JUDICIÁRIO

JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS

SEGUNDO COLÉGIO RECURSAL DA CAPITAL

Recurso nº 9.646 (Proc. Nº 006.02.018854-0 – Penha)

Recorrente: JEFERSON FALCHIONI

CREDICARD S.A.

TV GLOBO LTDA.

Recorridos: CREDICARD S.A.

TV GLOBO LTDA.

JEFERSON FALCHIONI

Juiz Relator: Francisco Bruno

Voto nº 678

A C Ó R D Ã O

INDENIZAÇÃO — Dano moral — Necessidade de que o íntimo do cidadão seja duramente atingido — Não ocorrência quando se trata de simples aborrecimento por fatos normais da vida que o homem sofre no dia-a-dia — Conceito de “normalidade” que varia, naturalmente, conforme a situação fática.

Quando se diz que o mero aborrecimento por fatos normais não basta a caracterizar dano moral, deve-se ter em conta, na aferição da normalidade dos fatos, a situação fática em que a vítima voluntariamente (não necessariamente intencionalmente) se coloca. Por exemplo, há evidente diferença entre o tratamento que se espera num espetáculo no Teatro Municipal e em outro num estádio de futebol.

Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas.

ACORDAM os MM. Juízes do Segundo Colégio Recursal da Capital, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso de JEFERSON FALCHIONI e, rejeitadas as preliminares, dar provimento aos recursos de CREDICARD S.A. e TV GLOBO LTDA., pelos seguintes fundamentos:

Ação de indenização de danos morais, sofridos em espetáculo da dupla musical “Sandy e Júnior”, realizada no Estádio do Pacaembu, que atrasou uma hora e dez minutos, porque, segundo o autor, a produção do espetáculo e a TV Globo decidiram utilizá-lo para aumentar a audiência de um programa ao vivo. Julgada procedente, sobrevieram recursos; o autor, insatisfeito com o valor deferido pela MMª Juíza (R$3.900,00); as empresas, alegando, preliminarmente, ilegitimidade passiva, e, no mérito, inexistência de dano moral.

É o relatório.

Rejeitam-se as preliminares. A da Credicard, porque o bilhete de ingresso consta, expressamente: “Credicard apresenta Sandy e Júnior” (fls. 8): foi ela, portanto, que prestou o serviço ao consumidor; nos termos do CDC, responde por defeitos por ele apresentados. A da TV Globo, porque o fundamento do pedido não é a participação da empresa na produção do espetáculo, mas o atraso que ela teria provocado no início dele, para atender a seus interesses de audiência, prejudicando o autor (e as demais pessoas presentes).

No mérito — respeitado o entendimento da culta Juíza —, o pedido é improcedente. É verdade que, em face da inversão do ônus da prova, todas as alegações do autor hão de ser tidas por verdadeiras. O relato factual, aliás, não oferece dúvidas; sob o aspecto jurídico, a responsabilidade da Credicard adviria do próprio bilhete de ingresso, já citado; a da TV Globo, da inversão do ônus da prova, já que ela não juntou o contrato que, segundo afirma, comprovaria ter sido ela, também, vítima do atraso, e não sua causadora. Mas, para que a responsabilidade exista, é necessário que os inconvenientes sofridos tenham extrapolado o limite do que seria de esperar, em situações semelhantes.

A resposta da r. sentença, já se sabe, foi positiva, e baseia-se, fundamentalmente, no fato de o autor ter sido obrigado a assistir a um espetáculo de televisão, contra a vontade e sem previsão contratual. O que é verdade; e, aqui, talvez não se possa falar de inconveniente esperado, especificamente. Mas não se ignora que, nessas ocasiões, os telões onipresentes exibem coisas as mais inesperadas; e, a bem da verdade, quem vai a um espetáculo musical num campo de futebol deve estar preparado para ver (e ouvir) o que quer e, muitas vezes, também o que não quer. De qualquer forma, ainda que inesperado e não contratado, esse fato, isolado, justifica reconhecer sofrimento tal a justificar indenização?

Afinal, ao que consta, nada se exibiu de pornográfico, ou de não apropriado para as pessoas presentes; ainda que duvidosos o “cunho cultural e a ludicidade” do programa, para usar as palavras do autor (fls. 4), seria realmente o caso de indenizar quem se colocou, voluntariamente, numa situação em que se viu obrigado a assistir a ele? É certo, para repetir Jean Carbonnier, que o Código de Defesa do Consumidor possui “l’espirit de tutelle em réponse à l’espirit d’efance: lê consommateur est um majeur que son contrat replace em état de minorité”(1), porém, ser equipado ao menor não equivale a ser transformado em (para usar a expressão politicamente correta) “intelectualmente prejudicado”.

E, de qualquer sorte, não se deve permitir a banalização do instituto do dano moral, tão importante e tão tardiamente reconhecido, legislativamente, entre nós; nem se há de, desnaturando sua finalidade, utilizá-lo para impedir condutas inconvenientes (ou, se se quiser, arrogantes), mas de todo compatíveis com a economia de mercado. Se, como afirma o autor, “nenhum jogo de futebol começa antes de acabar a novela da TV Globo”, a solução por certo não é proibir a empresa ou os clubes de contratar; afinal, se a situação existe, é porque o público — que, afinal, sustenta clubes, TVs, patrocinadores, federações etc. (e, por que não acrescentar, promotores de espetáculos ao vivo em estádios de futebol) — assim o deseja.

Independentemente dessas considerações, todavia — que só vêm a ponto em face da fundamentação trazida pelo autor —, é de ver que, para a caracterização do dano moral, há necessidade de sofrimento, ou humilhação; ou seja: há necessidade de dano.

Admitir a indenização pela só conduta ilícita de uma das partes, sem prejuízo da outra, seria desvirtuar o instituto em causa, dando-lhe cunho exclusivamente punitivo. Exclusivamente, frise-se; porque, sem dúvida, a punição da conduta desconforme com o Direito é parte da finalidade do instituto. Mas, a punição, sem dano individualizado — ou seja, quando o prejuízo é social —, por certo não cabe à obrigação por dano moral; para tanto, outros institutos há, penais, administrativos e mesmo civis.

Mais: a circunstância constrangedora por que passa a vítima há de ser acima do normal; os meros inconvenientes da vida moderna, dos quais se espera fugir mas, não causam surpresa, não bastam a configurá-lo. Não foi o que ocorreu; senão vejamos.

É inegável que o conceito de “mero inconveniente” varia, conforme as circunstâncias. Uma coisa é receber um empurrão pelas costas quando se está andando na rua; outra, quando se está participando de uma pelada com o amigos. Uma coisa seria encontrar um inseto num prato do Maxim’s; outra, no bandejão da faculdade (se é que essa instituição, dos tempos de estudante do Relator, ainda existe). Uma coisa seria comprar um livro com páginas faltando na Livraria Cultura; outra, num sebo.

E uma coisa é um espetáculo no Teatro Municipal atrasar mais de uma hora (o que, aliás, nem por isso deixa de acontecer); outra coisa, naturalmente, é a demora ocorrer num estádio de futebol.

Este Relator não iria a um espetáculo num local destes nem para assistir à Filarmônica de Berlim nos tempos de Von Karajan; nem por isso, porém, deixa de simpatizar com o sofrimento do autor. Convenhamos, porém, existem algum lugar, em todo o mundo, onde espetáculos como esse, cujo gigantismo seria inimaginável há algumas décadas, comecem no horário marcado? É provável que nem na Suíça, ou na Alemanha, isso ocorra; pode alguém razoavelmente entreter a expectativa de que aconteça no Brasil?

É dizer: quem se dispõe a assistir a um espetáculo num campo de futebol sabe, ou deveria saber, o que o espera: trânsito ruim na chegada e na saída; péssima acomodação; atraso; “alimentos indigeríveis” e — se for verão — “um calor de trinta graus” (sic, fls. 3); se não se chegar extremamente cedo, mal ver os artistas (ouvir, infelizmente, em geral nem a vizinhança consegue evitar); etc. Neste “etc.” estão, sempre ou quase sempre, incluídas atrações não do agrado de todos os presentes, seja apresentadas nos telões, seja ao vivo, por artistas que “abrem” o espetáculo, ou, como se costuma dizer — com otimismo nem sempre justificado —, “esquentam” o público para a atração principal.

Em síntese: simpatiza-se, sinceramente, com o autor, cujo sofrimento foi sem dúvida exacerbado pelo fato de mesmo a atração principal não ser do seu agrado. Congratula-se com ele por sua disposição de contentar a enteada, para a qual, pelo menos, o programa — espera-se — não foi de todo ruim. Mas nada do que ocorreu é de forma alguma surpreendente; tanto assim que não houve — o que seria de esperar, fosse esse o caso — uma chuva de ações como esta, logo após o espetáculo. E trata-se de princípio básico: como regra geral, não se indeniza quem se coloca voluntariamente (voluntariamente, repita-se; não intencionalmente) em situação que torne provável o dano sofrido.

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso de JEFERSON FALCHIONI e, rejeitadas as preliminares, dar provimento aos recursos da CREDICARD S.A. e da TV GLOBO LTDA., para julgar improcedente a ação. A parte vencida pagará custas e despesas, bem como honorários de advogados de 10% do valor do pedido, para cada uma das partes vencedoras.

Participaram do julgamento os MM. Juízes CECÍLIA FRAZÃO e GENOFRE MARTINS.

São Paulo, 13 de abril de 2005.

FRANCISCO JOSÉ GALVÃO BRUNO

Juiz Relator

Notas de rodapé

(1)JEAN CARBONNIER, Droit Civil, Tome 4 – Lês Obligations, Presses Universitaires de France, Paris, 21ª ed., 1998, p. 19.

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