Profissão perigo

Entregador pode recusar entrega em local perigoso

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5 de julho de 2005, 13h18

O trabalhador tem o direito de recusar ordens que impliquem em perigo considerável à sua integridade física, como está previsto na CLT — Consolidação das Leis do Trabalho. O entendimento é da 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ao reconhecer vínculo entre entregador de pizza e pizzaria, mesmo que ele se recusasse a entregar o pedido em local perigoso.

Para o relator do recurso no tribunal, juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros “a situação de risco dos trabalhadores em empresas de delivery é notória. Recentemente, a própria secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, com o crescimento dos seqüestros e com o objetivo de identificar possíveis locais de cativeiro, divulgou por todos os meios de comunicação, amplo alerta à população no sentido de observar e comunicar às autoridades, se na vizinhança os imóveis permanecem fechados e se são solicitados constantemente alimentos através do sistema de delivery”.

Um motoboy, que utilizava sua motocicleta no serviço, entrou com processo na 60ª Vara do Trabalho de São Paulo pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício com a Lancelotti Pizza Delivery. De acordo com a ação, o entregador trabalhou para a pizzaria por sete meses, sem a anotação do contrato na carteira de trabalho e sem receber direitos como férias e FGTS, entre outros.

A Lancelotti reconheceu que o entregador prestava os serviços, mas “de forma totalmente esporádica e eventual e sem subordinação”, descaracterizando o vínculo empregatício. Alegou também que, se o local da entrega fosse perigoso, o reclamante “poderia recusar a entrega ou ir junto com outro motoboy”. A vara negou o pedido do entregador, que recorreu da sentença.

Para o juiz Ricardo Trigueiros, “qualquer trabalhador, com pleno respaldo legal, pode recusar ordens ou até mesmo pleitear a rescisão indireta do contrato de trabalho quando lhe forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, alheios ao contrato ou que implicarem perigo manifesto de mal considerável”.

Segundo o relator “tratando-se de empresa que produz e comercializa alimentação pronta para entrega rápida em domicílio, não se concebe seu funcionamento sem o aporte de empregados que realizem o ofício da entrega, haja vista que diretamente ligado à atividade-fim do empreendimento econômico que explora. Também nesse sentido os autos mostram nitidamente a relação de emprego, não havendo que se cogitar da realização de simples ‘bicos’ pelo reclamante”.

Por unanimidade, o tribunal de São Paulo reconheceu o vínculo empregatício do entregador com a pizzaria, determinando que a vara julgue os direitos do contrato de trabalho.

RO 02311.2004.060.02.00-8

Leia a íntegra da decisão

4ª TURMA

PROCESSO TRT/SP Nº: 02311200406002008 (20050290759)

RECURSO: RECURSO ORDINÁRIO

RECORRENTE: EVALTO ARAÚJO SILVA

RECORRIDO: LANCELOTTI PIZZA DELIVERY LTDA.

ORIGEM: 60ª VT DE SÃO PAULO

EMENTA: ENTREGADOR DE PIZZA. SISTEMA DELIVERY. VÍNCULO. POSSIBILIDADE DE RECUSA DE SERVIÇO EM LOCAL PERIGOSO. Tratando-se de empresa que produz e comercializa alimentação pronta para entrega em domicílio, não se concebe seu funcionamento sem o aporte de empregados que realizem o ofício da entrega, haja vista que diretamente ligado à atividade-fim do empreendimento econômico. A possibilidade de recusa de cumprimento da tarefa em lugar perigoso, por constituir situação de excepcionalidade, não obsta, in casu, a configuração do vínculo de emprego. Qualquer trabalhador, com pleno respaldo legal, pode recusar ordens ou até mesmo pleitear a rescisão indireta do contrato de trabalho quando lhe forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, alheios ao contrato ou que implicarem perigo manifesto de mal considerável (art.483, CLT). Trata-se de exercício legítimo do jus resistentiae que não autoriza ilação quanto à inexistência do vínculo empregatício. Tampouco compromete a pessoalidade da relação, a possibilidade de o entregador fazer-se substituir por outro, se a circunstância se dava de forma eventual e sem qualquer oposição da reclamada. Assim, estando presentes os elementos da pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade, com engajamento do trabalhador na atividade essencial da empresa, é de se reconhecer o vínculo pretendido.

RITO SUMARÍSSIMO

Dispensado o relatório, por força do disposto no artigo 852, inciso I, da CLT, com redação dada pela Lei nº 9.957/2000.

V O T O

Conheço porque preenchidos os requisitos de admissibilidade.

DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO

O reclamante sustenta ter trabalhado para a reclamada no período de 09.01.04 a 31.08.04 como entregador de pizzas, sem a anotação do contrato em sua carteira de trabalho, tampouco o pagamento dos títulos inerentes, tais como férias e FGTS, entre outros.


Opondo-se ao liame empregatício, a reclamada reconhece a prestação de serviços, porém afirma que estes se davam de forma totalmente esporádica e eventual e sem subordinação.

In casu, operou-se a inversão do ônus da prova, consoante o disposto no art. 333, II, do CPC. Competia, assim, à reclamada, comprovar os fatos modificativos e impeditivos alegados em contestação.

Que o reclamante trabalhou na reclamada, não há a menor dúvida. A reclamada admite o fato do trabalho, conferindo-lhe contudo, feição diversa.

É bem verdade que as testemunhas da ré tentaram confirmar os termos da defesa, procurando atestar a inexistência de pessoalidade na relação havida entre as partes, o mesmo se podendo afirmar quanto à eventualidade na prestação de serviços (fls. 19).

Todavia, entendo que o caso dos autos, os depoimentos das testemunhas da reclamada merecem análise mais criteriosa.

O depoimento da primeira testemunha da reclamada, Sr. Luiz Felipe (fls. 19), embora mencionando que o autor não ia todos os dias, apresenta-se frágil e inconsistente, quando se considera que o depoente somente laborou com o reclamante nos últimos dois meses de trabalho deste, posto que referida testemunha começou a trabalhar na reclamada em julho de 2004, sendo certo que o recorrente laborou na reclamada de janeiro a agosto de 2004. Ademais, referida testemunha claramente se contradiz, ora declarando que o autor “nem sempre ia todos os dias” para mais adiante dizer “(..)que o recte trabalhava de 3ª a 5ª- feira das 18:00 às 23:00 hs e, às 6ª-feiras, sábados e domingos, das 18:00 às 24:00h, sendo que sempre que via o recte chegando isso acontecia por volta das 18:00h. (..)”.

Quanto à alegação de recusa de serviços por parte do autor temos que não restou claramente confirmada, vez que as próprias testemunhas da reclamada limitaram-se a declarar, no condicional, que “o recte poderia recusar entrega de alguma pizza..”, sem precisar, todavia, em que condições isto poderia ocorrer, e ainda, se efetivamente ocorreu. Ademais, os depoimentos devem ser analisados conjuntamente, depreendendo-se que eventual recusa “poderia” ocorrer quando a entrega devesse ser feita em lugar perigoso e mesmo assim, facultar-se-ia ao recorrente fazer-se acompanhar por outro motoboy :- “(..) que se o lugar fosse perigoso o recte poderia recusar a entrega ou ir junto com outro motoboy”.(fls. 20).

O aspecto da possibilidade da recusa de serviço não pode ser descontextualizado no processo. Segundo a própria testemunha da empresa a entrega poderia ser recusada em se tratando de lugar perigoso, o que constitui situação de excepcionalidade que não obsta a configuração do vínculo de emprego.

Qualquer trabalhador, com pleno respaldo legal, pode recusar ordens ou até mesmo pleitear a rescisão indireta do contrato de trabalho quando lhe forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, alheios ao contrato ou que implicarem perigo manifesto de mal considerável. Trata-se de exercício legítimo do jus resistentiae que não autoriza qualquer ilação quanto à inexistência de vínculo empregatício.

A situação de risco dos trabalhadores em empresas de delivery é notória. Recentemente a própria secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, em face do vertiginoso crescimento dos crimes de seqüestro e no afã de identificar possíveis locais de cativeiro, divulgou por todos os meios de comunicação, amplo alerta à população no sentido de observar e comunicar às autoridades, se na vizinhança os imóveis permanecem fechados e se são solicitados constantemente alimentos através do sistema de delivery.

Já no tocante à pessoalidade, embora a segunda testemunha da reclamada tenha declarado que o autor podia fazer-se substituir, não soube precisar com que freqüência ocorreu esta circunstância, sendo razoável concluir que isto se deu de forma eventual e sem qualquer oposição da reclamada, não comprometendo a pessoalidade da relação.

Nesse sentido vale citar a doutrina: “Há, contudo, situações ensejadoras de substituição do trabalhador sem que se veja suprimida a pessoalidade inerente à relação empregatícia. Em primeiro lugar, citem-se as situações de substituição propiciadas pelo tomador de serviços: uma eventual substituição consentida (seja mais longa, seja mais curta no tempo), por exemplo, não afasta, necessariamente, a pessoalidade com relação ao trabalhador original” (Maurício Godinho Delgado, in Curso de Direito do Trabalho, pp. 289/290).

A subordinação, por sua vez, restou provada, vez que o reclamante se submetia a horário e recebia ordens dos sócios da reclamada (Sr. Eduardo e Dna. Daniela) – 1ªtestemunha da reclamada – (..)que o recte trabalhava de 3ª a 5ª- feira das 18:00 às 23:00 hs e, às 6ª-feiras, sábados e domingos, das 18:00 às 24:00h, sendo que sempre que via o recte chegando isso acontecia por volta das 18:00h. (..) que presenciava o Sr. Eduardo e Dna. Daniela dando ordens para o recte(..)”.


Acrescente-se ainda que, dada a natureza de sua função (entregas em domicílio), o volume de ordens recebidas pelo autor para a realização de seu mister era reduzido. Ainda assim, a primeira testemunha presenciava as determinações, evidenciando que os sócios da reclamada efetivamente dirigiam a prestação de serviços do autor que, em conseqüência, a eles se subordinava.

Por outro lado, trata-se a reclamada de pizzaria em sistema delivery. Assim, tratando-se de empresa que produz e comercializa alimentação pronta para entrega rápida em domicílio, não se concebe seu funcionamento sem o aporte de empregados que realizem o ofício da entrega, haja vista que diretamente ligado à atividade-fim do empreendimento econômico que explora. Também nesse sentido os autos mostram nitidamente a relação de emprego, não havendo que se cogitar da realização de simples “bicos” pelo reclamante.

A relação de emprego compõe-se das figuras do empregador e empregado, tais como definidas nos artigos 2º e 3º ambos da Consolidação das Leis do Trabalho, observados os pressupostos ali insertos.

Com efeito, a existência do liame de emprego independe da vontade ou interpretação negocial do prestador ou credor dos serviços, mas do conjunto de atos-fatos por eles desenvolvidos em razão daquela prestação. Em suma, o vínculo emerge da realidade fática do desenvolvimento da atividade laboral, e não do nomen juris ou revestimento formal dado pelas partes à relação.

Considera-se empregador, a pessoa física ou jurídica que exerça atividade econômica ou a exploração de um negócio e que para a realização desses fins, contrate, assalarie e comande a prestação pessoal de serviços. É o que emerge do artigo 2º, da CLT.

Desse modo, a subordinação do reclamante também aflora do próprio engajamento à estrutura da reclamada e da execução de misteres peculiares à atividade-fim da empresa, que implicava sujeição às rotinas e horário de trabalho por ela estabelecido e, ainda, ao recebimento de ordens emanadas de seus sócios, consoante a prova oral produzida.

Incompatível assim, a versão da defesa, no cotejo com a realidade fática informada pela prova dos autos.

O relacionamento entre as partes revela o aspecto subjetivo (animus contrahendi), a pessoalidade (relação intuitu personae), aliado aos elementos da permanência e habitualidade na prestação de serviços em prol da reclamada.

Restando presentes na relação encetada entre as partes os requisitos da vinculação empregatícia, contidos nos artigos 2º e 3º consolidados, notadamente a pessoalidade, continuidade, permanência, onerosidade, e a subordinação jurídica e hierárquica que se verifica em face do engajamento, é de se reconhecer o liame empregatício.

Assim, reformo a decisão de primeiro grau para reconhecer o vínculo empregatício entre as partes, no período alegado na inicial (09.01.04 a 31.08.04), que deverá ser anotado na CTPS. Como não houve pronunciamento do Juízo a quo sobre os demais títulos vindicados e para que não haja supressão de instância, determino a baixa dos autos ao D. Juízo de primeiro grau para que aprecie os pleitos da inicial.

Do exposto, conheço do recurso ordinário e, no mérito, DOU-LHE PROVIMENTO PARCIAL para reconhecer o vínculo empregatício entre o autor e a reclamada no período de 09.01.04 a 31.08.04, na forma da fundamentação supra, que integra e complementa este dispositivo. Como não houve pronunciamento do Juízo de origem sobre os demais títulos vindicados e para que não haja supressão de instância, determino a baixa dos autos ao D. Juízo de primeiro grau para que aprecie os pleitos da inicial. Mantenho o valor da causa.

RICARDO ARTUR COSTA E TRIGUEIROS

Juiz Relator

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