Corrupção e democracia

Cabe a Lula mostrar se é líder ou se é apenas um símbolo

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4 de julho de 2005, 14h50

O noticiário das últimas semanas pegou de surpresa a maioria dos brasileiros. Não que corrupção seja coisa nova entre nós. O que choca, agora, é a gravidade das acusações, inéditas em nossa História em pelo menos dois aspectos: por adquirirem pela primeira vez uma dimensão quase sistêmica dentro de nossas instituições e por atingirem em cheio um partido que sempre se julgou e continua até hoje a se julgar o detentor do monopólio da virtude e da ética. Assisti de perto ao impeachment de um presidente acusado de ter sido conivente com o uso das ‘sobras de campanha’ para fins pessoais. Na época eu era senador e custou-me a aceitar que deveríamos partir para uma CPI, que daria, como deu, num impeachment. Até que os fatos foram mais fortes do que tudo e nos curvamos a eles e à necessidade da depuração, primeiro na Presidência, depois no Congresso. E a democracia resistiu galhardamente.

Já era suficientemente adulto em 1954 quando houve a tragédia do suicídio de Getúlio Vargas. Na época as oposições usaram o pretexto do ‘mar de lama’, que jamais atingiu a honradez pessoal do presidente, para tentar colocá-lo para fora do governo. Getúlio, talvez pego de surpresa e indignado com as ações ilícitas de seus guardas pessoais, deu um tiro no peito.

Ao pôr fim à sua vida, Getúlio pôs fim também às pretensões golpistas. Juscelino foi vítima de duas rebeliões e saiu do governo acusado pesadamente de corrupção. Vieram os militares em 1964 e nada comprovaram quanto à figura presidencial, embora pairasse no ar a sensação de corrupção no governo.

Em todos esses episódios, as acusações ou eram pretextos para uso político, ainda que contivessem elementos de verdade, ou quando fundamentadas, como ocorreu no caso do presidente Collor, se circunscreviam a algumas partes do aparelho de Estado e a algumas pessoas de dentro e de fora da máquina pública que se teriam beneficiado com a corrupção.

Mais recentemente, houve acusação de ‘compra de votos’ para aprovar a emenda da reeleição. Quando se lêem os jornais da época, entretanto, duas coisas ficam bem claras: primeiro, a escuta telefônica da conversa entre deputados do Acre deixa evidente que se alegava suborno no Estado, e não em Brasília. Para fazer a conexão com Brasília, isto é, com o governo federal, foi usada outra conversa, altamente suspeita, obtida por um ‘senhor X’ que todos diziam saber quem era (alguém ligado ao malufismo e comprometido com dívidas na Receita Federal, pressionando por uma ‘ajudazinha’ que o livrasse delas). Nesta segunda conversa se faziam vagas referências a um ‘Serjão’. Foi o que bastou para que a oposição, sob a liderança do PT, acusasse o governo de ter comprado votos.

A denúncia ocorreu em maio de 1997, quatro meses depois da aprovação da emenda da reeleição por larga vantagem, correspondendo aos anseios demonstrados em todas as pesquisas de opinião pública e nos editoriais de quase toda a mídia. Por que (se razões morais não houvesse de sobra) iria o governo federal ‘comprar’, mesmo se houvesse alguém disposto a vender, o que era oferecido sem custo, graças ao apoio generalizado da opinião pública à tese da reeleição? Não houve CPI, mas houve depoimento indignado e esclarecedor do então ministro Sérgio Motta à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, pondo por terra a alegação de que ele (com a suposta ajuda do deputado Luís Eduardo Magalhães, presidente da Câmara, que encaminharia os aflitos ao ministro) ‘solucionava’ problemas dos deputados. E houve mais: dos quatro ou cinco deputados acusados, os dois principais renunciaram ao mandato, esvaziando as razões para a CPI. Não obstante, setores políticos contrários à reeleição, sobretudo o petismo e seus arredores, inconformados com a derrota, ensaiaram logo a tese golpista do ‘fora FHC’ e tornaram ‘verdade’ a infâmia de dizer que eu ou meu governo compramos votos para aprovar a reeleição. Pode ter havido compra de votos, mas não por mim ou por minha ordem, nem pela ordem de meus colaboradores, e não foi graças a esse tipo de barganha que a emenda foi aprovada.

Por que a ressalva? Para reafirmar que não se deve aceitar gato por lebre: nem tudo é corrupção política, embora ela exista, e nem tudo o que ocorre é da responsabilidade do presidente, embora ele possa ter algo que ver com os casos de corrupção. Sobretudo quando se torna sistêmica e compromete o comando da máquina pública. Foi por isso que me apressei em dizer que até agora nada indica que o presidente Lula tenha diretamente algo que ver com tudo isso: não dá, sob pena de golpismo, para atirar logo pedras no presidente. Mas a ressalva aumenta a responsabilidade dele. Digo por quê.

Nos casos que mencionei acima não havia nada que pudesse indicar um ‘sistema’ montado para corromper. Talvez o caso Collor se aproxime desta situação. Ainda assim, entretanto, a ação do principal acusado de corruptor se fazia de fora da máquina do Estado e as acusações mais pesadas se referiam a ‘sobras de campanha’ ou a dinheiro privado obtido pela facilitação na liberação de recursos bloqueados pelo ‘confisco da poupança’. Agora, não: acusa-se um partido, o PT (e eu não endosso a acusação antes de ser comprovada, embora os indícios sejam veementes), de organizar não só a distribuição de cargos, mas também de dinheiro, para comprar apoios políticos. E quem acusa não é a oposição, mas gente de dentro da aliança governista que, além de acusar, confessa e incita os demais a confessarem. Pior ainda: quem denuncia está convencido de que foi vítima de uma manobra de órgãos de segurança do Estado para desmoralizá-lo. E tão fortes foram suas palavras que a muitos pareceu que revelavam um segredo de Polichinelo: os deputados que ouviram as declarações contundentes do deputado Jefferson no Conselho de Ética davam ao espectador a impressão de que ouviam uma ópera cujo enredo conheciam.

Estamos, portanto, diante de uma forma nova de corrupção, organizada supostamente sob a batuta do principal partido de sustentação do governo e que veio à luz não por denúncias da oposição, nem encontrou nela quem desse às denúncias qualquer eco ‘golpista’. Quem pariu Mateus que o embale. Cabe agora ao presidente Lula mostrar se é líder ou se ficará limitado a ser um símbolo. As bandeiras de sua história estão ameaçadas de se esfumar no vendaval de acusações sem resposta convincente por parte dos responsáveis. Cabe ao presidente mostrar que governa e que não é leniente com a corrupção. Nem em seu partido, se houver, muito menos na máquina pública. A inação presidencial levará seus adeptos à desilusão e suscitará nos que não o apóiam politicamente preocupação com as instituições democráticas.

(Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 3/7/2005

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