Juízes rebeldes

Juízes reunidos em Porto Alegre criticam súmula vinculante

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25 de janeiro de 2005, 19h03

A aplicação da súmula vinculante ganhou o repúdio de um grupo de juízes reunidos em Porto Alegre. O dispositivo aprovado na reforma do Judiciário estabelece que os juízes de primeira e segunda instâncias deverão seguir sentença já proferida pelo Supremo Tribunal Federal quando se tratar de um tema idêntico. A idéia é diminuir drasticamente a possibilidade de recursos, que acabam provocando boa parte da morosidade do sistema.

A medida, que já foi alvo de uma saraivada de críticas da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, agora ganhou até um manifesto assinado pelo Núcleo de Estudos Críticos de Direito. O Núcleo é formado por dezenas de juízes que realizam em Porto Alegre o Fórum Mundial dos Juízes — um evento paralelo ao Fórum Social Mundial.

Eles sugerem que os juízes de instâncias inferiores em todo o país não sigam a súmula vinculante, considerada, por eles, inconstitucional. “É uma medida provisória do STF, quando quem tem de legislar é o Congresso”, avalia o juiz João Ricardo Costa dos Santos, um dos coordenadores do evento.

Leia o manifesto

MANIFESTO SOBRE AS SÚMULAS VINCULANTES

A positivação no ordenamento jurídico brasileiro do instrumento denominado súmula vinculante estabelece inaceitável retrocesso na forma de soluções dos conflitos, porque agrega inquestionável crise de legitimidade à atividade jurisdicional. A dinâmica histórica do fenômeno judicial denuncia que as contradições impostas pela noção liberal-individualista levaram ao favorecimento de um ambiente propício aos conceitos mais críticos do direito, valorizando o pluralismo jurídico como novo paradigma, percebido a partir do movimento de novos atores coletivos que buscam direitos fundamentais.

Os antigos mitos da linguagem do direito já não mais atendem os anseios sociais. A superação dessas insuficiências aparece como possível pelo reconhecimento da pluralidade como valor intrínseco à atividade jurisdicional. Uma supressão ou mesmo redução do controle difuso de constitucionalidade atinge a pluralidade jurisdicional e por conseqüência a democracia.

Concluímos, em razão disso, que a súmula vinculante:

a) Enseja em violação da separação dos poderes garantida como cláusula pétrea, por força do art. 60, § 4º, inc. III, da CF. No momento em que uma interpretação de texto normativo tenha eficácia geral, abstrata e vinculante, passará o Poder Judiciário a atuar como um legislador sem controle. Mais grave ainda é que o órgão a editar as súmulas vinculantes é o STF, responsável pelo julgamento de matérias constitucionais, ensejando desta forma na edição de súmulas com força de norma constitucional, acarretando por conseguinte que uma interpretação da norma, converta-se em verdadeira reforma constitucional.

b) Viola o princípio da tipicidade das leis (art. 59, da CF), que deve supor um processo legislativo, alicerçado na vontade popular manifestada através do voto;

c) Põe por terra a independência do Poder Judiciário garantida no art. 2º da CF, que na verdade também é a independência da cada juiz, no momento que a súmula vinculante induz em uma decisão hierarquicamente imposta;

d) Desrespeita o princípio do pluralismo político, contido nos fundamentos do Estado Brasileiro (CF, art. 1º, V), ao impor a sociedade o pensamento único em matéria de interpretação legislativa, em detrimento de outros entendimentos, levando em conta que a democracia supõe a diversidade de idéias, de ideologias e de pensamentos;

e) Viola o princípio do juízo natural, preconizado no art. 5º, incs. LIII e XXXVII, da CF reforçado pela necessária imparcialidade do juiz, como direito universalmente reconhecido (art. 10, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; e art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos);

f) Também viola o princípio da tutela ordinária dos direitos fundamentais, amparado pelo art. 5º, § 1º da CF, que garante eficácia imediata aos direitos e garantias fundamentais. Gize-se que tais direitos, por força do art. 60, § 2º, IV, da CF, são cláusulas pétreas;

g) Atinge dispositivos contidos no art. 5º, da CF, como o acesso ao judiciário (inc. XXXV), impede o duplo grau de jurisdição, desrespeitando a garantia da ampla defesa (inc. LV) e o princípio de devido processo legal (LIV) e, ao preconizar força de lei, a súmula viola o princípio da legalidade contido no inciso II, do referido art. 5º;

h) Desatende o modelo constitucional brasileiro de criação do direito que garante uma participação ativa da cidadania (CF art. 14, III e 61, § 2º), de forma direta, ou por representantes eleitos.

Assim, nós, Juízes integrantes do Núcleo de Estudos Críticos de Direito (NEC), denunciamos que a súmula de efeito vinculante representa um controle sobre as instâncias inferiores do Poder Judiciário e pretende ser uma tentativa de universalização conceitual que desconsidera a singularidade dos casos e impede a necessária alteridade hermenêutica, implicando na eliminação do pluralismo e da vitalidade do direito enquanto instrumento de mediação entre a dominação e a liberdade.

Neste cenário de descompasso com os anseios populares, o que inclusive coloca em cheque a legitimidade da reforma, propomos, desde já, no exercício da autonomia que ainda não nos foi subtraída, a declaração expressa e pública de que não nos curvaremos às vinculações que o STF venha a estabelecer e que cada um, no seu espaço próprio de jurisdição, compreender que não se constitui na melhor JUSTIÇA.

A coordenação do NEC.

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