Papéis da ditadura

MP não tem medo algum da abertura dos arquivos da ditadura

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21 de janeiro de 2005, 21h47

No dia 19 de janeiro último, a ConJur publicou um artigo do advogado e ex-ministro da Justiça Saulo Ramos sobre os arquivos da ditadura militar. Comentou o articulista que, de toda a polêmica gerada pela resistência do governo em franquear ao público os registros existentes do nosso mais recente período de repressão política, ninguém ainda havia falado “sobre o que de mais terrível tivemos naqueles anos de chumbo, segundo a definição de um historiador: o Ministério Público”.

Ainda segundo entendimento do ilustre advogado, o Ministério Público não deve desejar que remexam no passado, porque muitos de seus membros teriam sido, na época, “inquisidores fanáticos, arbitrários, subservientes, submissos à ditadura, terríveis”.

Sem embargo da credibilidade de que goza doutor Saulo, deixou ele de considerar alguns aspectos fundamentais para o amplo entendimento da matéria. Ninguém duvida de que certos membros do Ministério Público tenham sido coniventes com abusos praticados pelo regime ditatorial, mas grande parte da sociedade brasileira o foi. Se determinados membros de todas as Instituições, por medo ou ideologia, não tivessem apoiado decisivamente as medidas de exceção, a ditadura não teria conseguido se impor.

As Forças Armadas, logo de início, tomaram a providência de neutralizar o Congresso Nacional, cassando, exilando e prendendo parlamentares e desfigurando os partidos políticos. Ao mesmo tempo, as polícias e a Justiça, de maneira geral, foram transformadas em braços políticos da repressão e tiveram de “dançar conforme a música”. No Ministério Público, não foi diferente. Poderia ter havido resistência? Sim, claro, e de fato houve, mas aqueles que se insurgiram na defesa dos direitos democráticos foram presos, exilados, ou, quando menos, perderam seus cargos de promotores e procuradores de Justiça.

No caso do Ministério Público de São Paulo, vários de seus membros foram perseguidos e punidos pela ditadura. Podemos citar Darcy Passos, Plínio de Arruda Sampaio, Chopin Tavares de Lima, Pacheco Mercier, Luiz Carlos Alves de Souza e Hélio Bicudo, dentre outros. No Rio Grande do Sul, dois ex-procuradores-gerais de justiça foram cassados, Floriano Maia D´Ávila e Ajadil de Lemos. Ainda naquele estado, o promotor de Justiça Paulo Cláudio Tovo, em 1966, iniciou uma das primeiras investigações instauradas para a apuração de tortura, que ficou conhecida como “o caso das mãos amarradas”, porque a vítima, um sargento do Exército, morreu afogado de mãos atadas. Tovo ofereceu denúncia contra um coronel do Exército e o fato ficou famoso em todo o Brasil.

É preciso lembrar, ainda, que o Ministério Público de São Paulo teve a coragem de combater um dos frutos mais nefastos da ditadura militar, o “esquadrão da morte”, pondo em risco a integridade física de alguns de seus membros, bem como de seus familiares.

A Justiça esteve, de fato e durante algum tempo, subjugada pela ditadura militar e certos pedidos de arquivamento de inquérito, formulados pelo Ministério Público e deferidos pelos juízes, não deveriam ter ocorrido. Nem por isso os promotores e procuradores podem ser apontados como “o que de mais terrível tivemos naqueles anos de chumbo”, conforme opinião do doutor Saulo que invoca, para respaldá-lo, um “historiador” não identificado — e claramente equivocado. Tal exagero conceitual do articulista é despropositado e evidencia passionalidade incompatível com uma análise ponderada do que realmente se passou no país.

Se, em razão da conivência ou mesmo da colaboração ativa de alguns membros de determinada carreira se pudesse, automaticamente, fixar responsabilidades institucionais, o que não iria acontecer com a nobre profissão de advogado? A ditadura militar contou com a colaboração imprescindível de alguns causídicos renomados, como Armando Falcão, Alfredo Buzaid, Luiz Antônio da Gama e Silva e Ibrahim Abi Ackel, que foram ministros da Justiça e deram respaldo jurídico aos atos da repressão. Nem por isso, a Ordem dos Advogados do Brasil viu-se comprometida, como Instituição.

Com relação ao caso Herzog, também mencionado pelo doutor Saulo, é preciso lembrar que não havia sido aberto inquérito no âmbito da Justiça Estadual até que, em decorrência de uma reportagem da revista Isto É, em 1990, o então promotor de Justiça Luiz Antônio Marrey requisitou a abertura de inquérito para apurar a morte suspeita do jornalista. As investigações evoluíam com promissora colheita de provas quando um Habeas Corpus impediu o seu prosseguimento, trancando o inquérito com base na Lei da Anistia.

Doutor Saulo acha que o Ministério Público, atualmente, “melhorou muito, aprendeu um pouco de democracia, acabou entendendo o que é Estado de Direito, tem se conduzido com austeridade no combate ao crime”. Podemos concordar com essa observação, acrescentando que toda a sociedade brasileira encontra-se em processo de aprendizado democrático, fato que se refletirá cada vez mais em todas as Instituições. Mas devemos ir muito além.

O Ministério Público tem recebido amplo reconhecimento social pelo desempenho sério e responsável de suas funções constitucionais e é hoje um dos maiores baluartes da democracia e da defesa dos direitos da cidadania. Seus membros tiveram a coragem de por em prática o princípio de que a lei é igual para todos e passaram a combater a criminalidade e a proteger os direitos difusos sem se intimidar com as condições financeiras ou políticas dos réus. Tal fato vem incomodando muita gente e gerando tentativas de dificultar ou mesmo impedir a investigação por promotores e procuradores, mas uma sociedade verdadeiramente democrática, como constatou o doutor Saulo, não é compatível com um Ministério Público manietado.

Por fim, é evidente que o Ministério Público não tem medo algum da abertura dos arquivos da ditadura. Muito pelo contrário, espera que essas informações históricas e de interesse geral sejam postas à disposição dos brasileiros o mais rápido possível. É o mínimo que se pode fazer como reparação às vítimas e a seus familiares, bem como a uma sociedade que padeceu injustificáveis anos de terror.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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