Na contramão

A resolução 168 é inconstitucional e uma violação ao cidadão

Autores

19 de janeiro de 2005, 20h20

Às vésperas do Natal do ano passado, reservou o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) um presente para os motoristas brasileiros. Seguindo os passos do Papai Noel, mas sem a observação do princípio da isonomia (já diz a música que o bom velhinho “não esquece de ninguém”), publicou a Resolução nº 168, em 22 de dezembro de 2004, obrigando os motoristas que tiraram Carteira Nacional de Habilitação antes da alteração da Lei decorrente da entrada em vigor do Código de Trânsito Nacional a realizar cursos de direção defensiva e de primeiros socorros, quando for a hora da renovação.

Agora, então, para renovar a CNH não basta ficar em três filas diferentes – do cadastro, do banco e da foto – e perder a manhã inteira de trabalho; deve ainda o motorista gastar mais tempo e dinheiro e fazer cursos oferecidos pelos Detrans ou pelos Centros de Formação de Condutores, a um custo estimado em R$ 50, no mínimo. O curso oferecido pode ser feito à distância (é o futuro chegando!), desde que se pague por ele, obviamente.

O texto da regra é o seguinte:

“Art. 6º, § 1º Por ocasião da renovação da CNH o condutor que ainda não tenha freqüentado o curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros, deverá cumprir o previsto no item 4 do anexo II desta resolução”.

Com efeito, no Anexo II, item 4, pode-se encontrar as minúcias do curso a ser ministrado, aliás, muito parecido com o curso de reciclagem dos motoristas infratores, este sim, necessário e constitucional. Aquele, no entanto, mostra-se completamente fora da realidade, pois além de ser aplicado para motoristas não infratores parece funcionar apenas como máquina arrecadadora de dinheiro e lesiva aos direitos constitucionais dos cidadãos.

Ora, salta aos olhos as inconstitucionalidades contidas na referida Resolução, reclamando pronta intervenção do Poder Judiciário, antes que se consolide a situação e a excrescência vire matéria intocável seja pelo “interesse público” que se falsifica, seja pelos interesses privados, isto é, daqueles que lucrarão com o presente natalino. Por primário, não precisa nenhum esforço para se perceber que a principal das violações diz respeito à ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e razoabilidade.

Como é do conhecimento geral e primário, a Administração Pública é regida pelos princípios constantes no art. 37, caput, da Constituição da República: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A legalidade, para a Administração Pública – também chamada de conformidade – determina que somente poderá ela fazer aquilo que estiver expressamente previsto em lei. O modo de agir da Administração Pública está atrelado “à lei em todos os momentos lógicos e temporais da própria atividade”. (1)

Não pode, então, impor aos administrados comportamentos não delineados em lei ou que não tenham guarida nos fundamentos do ordenamento jurídico. Por isto, não poderia editar dita Resolução, porque carente de embasamento legal.

Pois bem, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, art. 12, X, compete ao Contran: “normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos”, ou seja, tem ele competência para normatizar os supracitados procedimentos, todos de acordo com o que rege o CTB. Não se pode, assim, ignorar as normas estabelecidas por ele.

Neste viés, os arts. 140 e seguintes, do CTB, determinam os procedimentos obrigatórios para a Habilitação dos condutores interessados a dirigir. Mais exatamente sobre a renovação da Habilitação, o art. 150, caput, dispõe: “ao renovar os exames previstos no artigo anterior, o condutor que não tenha curso de direção defensiva e primeiros socorros deverá a eles ser submetido, conforme normatização do Contran” .

Poder-se-ia tentar justificar, assim, a legalidade da Resolução 168. No entanto, não há exames previstos no artigo anterior, porque não há artigo anterior. Tal dispositivo foi vetado, não podendo ser dele extraído qualquer efeito. Destarte, a remissão do art. 150 ao vetado art. 149, bem como seu texto, que condiciona a realização do curso de direção defensiva e primeiros socorros ao momento de renovação dos exames vetados, retira por completo a legalidade da imposição do art. 6º, § 1º, da Resolução em questão.

Por outro lado, tal dispositivo, ora questionado, é caso típico de ofensa ao princípio da razoabilidade.

O princípio da razoabilidade, segundo Luís Roberto Barroso(2): “permite ao Judiciário invalidar os atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha”.


A simples leitura do art. 6º, § 1º, da Resolução nº 168 – somada com bom senso e conhecimentos gerais sobre o trânsito brasileiro – traz à tona uma só realidade: a necessidade de invalidação do ato por preencher as três hipóteses acima enumeradas.

Ora, não há qualquer adequação entre o fim perseguido – que se poderia enumerar como a melhora do trânsito brasileiro e a conscientização dos condutores – e a realização de cursos de direção defensiva e primeiros socorros para todos os condutores que desejem renovar sua CNH, a não ser na invencionice de quem não respeita os cidadãos. A melhora do trânsito brasileiro, por elementar, apenas ocorrerá com investimentos sérios em sinalização, planejamento, organização e manutenção das vias de rolamento, bem como no aumento da fiscalização (frise-se: humana e não por radares inconstitucionais) sobre as infrações, que se não resumem a excesso de velocidade.

Um curso ministrado à distância (que sequer se sabe se será presenciado e não há como controlar!) ou com apenas 15 horas-aula não garante a melhora dos condutores infratores que, por exemplo, ingerem bebidas alcoólicas e dirigem logo após, bem como não trazem qualquer responsabilidade para aqueles que abusam da velocidade, entregam carros a menores de idade, dentre outras condutas reprováveis.

A garantia dos cidadãos (eles são o fim último do Estado, não se pode esquecer!), por elementar, está na cultura. Para disto saber, basta acompanhar um motorista europeu e se sabe do que se está falando. Só que cultura não vem em 15 horas, mas em educação no ensino infantil, médio e fundamental, para que se formem motoristas e pedestres conscientes que, um dia, ensinarão seus descendentes.

Em suma, o único fim que se pode atingir com o instrumento empregado é tirar dinheiro dos condutores e transferi-lo para as mãos dos Detrans ou dos Centros de Formação de Condutores. O pior, sem dúvida, é que aqui, mais uma vez, o cidadão paga a conta amarga do seu vilipêndio, muitos dos quais sem condições econômicas para tanto. As medidas neoliberais estão chegando, como se vê, à sem-vergonhice, ao máximo do desprezo possível que é aquele do menosprezo pela inteligência mínima, no fundo a marca do homem cegado pelas falsas premissas que o regem.

Nota-se, assim, que a medida é de todo desnecessária (além de ineficaz), pois há diversos meios alternativos para se chegar ao resultado almejado, sendo que todos começam bem antes da renovação das CNHs. O direito do condutor de renovar a sua CNH apenas com a realização de exame médico, desde que se não encaixe nas hipóteses de suspensão do seu direito de dirigir (condutores infratores, por exemplo), deve ser respeitado pelos órgãos públicos brasileiros. Há, aqui, visível direito adquirido dos condutores, habilitados conforme aprovação diante do cumprimento de todas as regras pertinentes. Renovação, portanto, só conforme a lei; nos seus restritos limites; e neles não estão, por certo, o que se pretende com a malfadada Resolução. Em casos assim, a liberdade escraviza e a lei liberta, dizia o abade Lacordaire.

É por isso que, aos neoliberais, o Estado (com suas amarras à legalidade) e a lei foram sempre os grandes empecilhos. Sem eles, porém, na atual conjuntura, a cada dia um novo bruxo apareceria com mágicas para escravizar os cidadãos, esquecendo os muitos que morreram para se ter tal status.

Por fim, a Administração Pública e os administrados só têm a perder com a medida. O que se ganha – se é que se ganha alguma coisa – é desproporcional com o que se perde. Perde-se dinheiro em investimento, tempo dos servidores públicos para orientar, ministrar os cursos, aplicar provas, juntar requerimentos, resolver os casos omissos, etc.; tempo dos condutores (que poderão até dormir nas aulas, desde que nelas estejam), inclusive com a burocratização da máquina estatal.

Pode-se, enfim, até pensar que se trata de uma grande ofensa ao princípio da eficiência, tão em voga nos dias de hoje, mas, em sendo ele o ferrete do neoliberalismo de Hayek na Constituição da República, vira palavra que serve a qualquer senhor, aqui, ao que tudo indica, àqueles que usam o Estado para esgotar o cidadão de todas as formas possíveis.

O que se pode, então, concluir da precitada Resolução? Depende do respeito que se tem pela Constituição da República. Se se está, realmente, num Estado Democrático de Direito, onde a Carta Magna é regra primordial, deve-se concluir que ela tem seus dias contados e, para tanto, faz-se mister a força do Poder Judiciário, porque se não pode esperar de um Executivo que opera produzindo algo do gênero tenha inteligência(s) suficiente(s) para voltar atrás sponte própria.

Pelo contrário, tenta o Executivo, agora, por outro órgão, construir uma versão soft, falando em mal-entendido mas, no fundo, mantendo a mesma situação, por conta da premissa, que segue sendo falsa. Ora, a inconstitucionalidade, mantida a exigência absurda à renovação, continua intacta, agora com a agravante ligada ao reconhecimento do defeito anterior que, em nada, vai superado. Há, em definitivo, que entender que se trata de ato administrativo; e ele deve ser observado, antes de tudo, pela dicotomia constitucionalidade/legalidade.


Assim, em 19 de janeiro de 2005 o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), interpretando a Resolução do Contran – para não se saber direito quem está com a palavra quando a questão é esta – tentou girar o discurso para, quem sabe, num grito de desespero, salvar, por mais um tempo (até a castração que promoverá, por certo, o Poder Judiciário, para vergonha do Executivo federal), a posição assumida e, aparentando ingenuidade, atropelar os incautos. Neste dia, os meios de comunicação nacional divulgaram a manifestação do Denatran, como fez o jornal O Globo, sob o título “Curso de direção defensiva não é obrigatório para renovar habilitação”:

“RIO – A assessoria jurídica do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) informou nesta quarta-feira que os cursos de primeiros-socorros e direção defensiva não serão obrigatórios para os motoristas que quiserem renovar a carteira de habilitação a partir de 22 de março. Segundo o Denatran, não houve um recuo em relação ao que determina a resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), mas, sim, um mal-entendido. O departamento alega que a resolução já previa alternativas para quem não quisesse fazer o curso, de 15 horas de duração e preço médio de R$ 50.

Para renovar a carteira, os motoristas terão duas opções: fazer o curso em alguma auto-escola e apresentar o certificado de conclusão ao pedir o novo documento de habilitação; ou estudar em casa, por conta própria, e fazer uma prova com mínimo de 70% de acerto. Isso está na resolução do Contran, numa brecha para “cursos realizados a distância”. A prova tem 30 questões de múltipla escolha – para passar, o motorista precisará acertar pelo menos 21 delas. Além disso, quem já tiver feito um curso técnico de primeiros-socorros (na faculdade, por exemplo), só precisará apresentar um comprovante para ser dispensado dessa matéria.(…)”.

Como parece sintomático, não se andou bem na exegese a discutida Resolução. Ora, ela, inconstitucionalmente, cria um requisito à renovação da CNH que não podia ser criado; e os ditos cursos são antecedentes lógicos – e econômicos, por que não? – à prova, que se não poderia ter criado, em face, sobretudo, no plano infraconstitucional, do veto que se apôs ao art. 149, do CTN, retirando-se o suporte à criação, por sinal, como decidiu o e. TJ/SC, em decisão unânime da sua 6ª Câmara, na Apelação cível em mandado de segurança (nº 2000.007551-5), relator o brilhante Desembargador Newton Trisotto.

A exegese divulgada, por outro lado, é infeliz (muito!), quando, para falar em mal-entendido, conforme divulgado, sustenta que a Resolução já previa como alternativa a não realização dos cursos. Há, aqui, algo em dissintonia entre Contran e Denatran; ou não se sabe direito o que é um curso realizado à distância, presente na legislação federal e reconhecido por todos; nunca, porém, como uma pantomima. Neste caso, bastaria aos doutos órgãos de Trânsito consultar o MEC – ou a CAPES –, onde existem servidores com pleno domínio jurídico da situação.

Enfim, como parece primário, as regras não foram criadas para não serem cumpridas; e os cursos não foram criados para não serem assistidos (como se pode presumir que ocorrerá, mantida a barbárie legal que representa a Resolução), aí sim o supra-sumo do absurdo. O problema, enfim, é de outra ordem; e é em relação a ela que é preciso estar atento, sob pena de se seguir discursando ad nauseam à margem da CR e do CTN.

A hermenêutica atual – é do conhecimento corriqueiro – é condição de possibilidade e, por ela, na esteira de Heidegger e Gadamer, dá-se um sentido ao texto legal. Foi-se, portanto, o tempo em que se dizia a verdade do objeto, dando-se “o” sentido. O texto, agora, diz o que o intérprete diz que ele diz (Frank/Carcova/Ruiz/Grau, entre outros); e isso é a norma, razão por que se criam tantas quantas forem os intérpretes a lhes dar vida. Tal não significa que se possa superar o princípio da não-contradição (Atistóteles); e o ser – enquanto produto da linguagem – ser arbitrário, porque a compreensão – do mundo – deve (ou deveria) sempre pedir carona à sintaxe.

As palavras, enfim, não são vazias (Saussure) porque não dizem sobre os objetos (temos um acordo lingüístico sobre isso); estão para ser desconsideradas em face de não dizerem – isto é vero! – sobre o objeto Todo; eis a dimensão do vazio. Aí é que cada um diz o que quer; mas pode ouvir o que não quer. Afinal, as palavras que se ligam nas cadeias significantes têm uma permissão para tanto em razão do prévio acordo, que não pode ser burlado sem o necessário jeito. Por isto é que se não pode, quando o texto diz “fazer cursos”, dizer que ele diz “não fazer cursos”.

É preciso muita ousadia para arriscar tanto, a não ser que se imagine a ignorância por interlocutora, como faziam os porcos na famosa Revolução dos Bichos, de Orwell. Nela, porém, o Muro de Berlin também caiu!

Em suma, deste imbroglio todo que se criou inadvertidamente, a única conclusão a que se chega é de que nem sempre no Natal se pode esperar um bom presente do Papai Noel.

Notas de rodapé

1. GIANNINI, Massimo Severo. Diritto administrativo. Milano: Giuffré, 1970, p. 81. Tradução livre.

2. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 157.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!