Entre iguais

Procurador vai à Justiça para liberar casamento entre homossexuais

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18 de janeiro de 2005, 20h14

O Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública com pedido de liminar para obrigar que todos os estados brasileiros e o Distrito Federal permitam a realização de casamento entre homossexuais. A ação foi ajuizada em Guaratinguetá, interior de São Paulo, pelo procurador da República em Taubaté, João Gilberto Gonçalves Filho.

O procurador também pede que o juiz determine que o governo federal, os estados e o Distrito Federal se abstenham de aplicar qualquer ato administrativo punitivo ou retaliação em decorrência da orientação sexual dos servidores públicos.

Na ação, o procurador sustenta que “proibição estatal ao casamento de pessoas homossexuais interessa apenas às pessoas que não suportam ver a felicidade alheia”.

Num dos pontos de sua sustentação, o procurador afirma que o artigo 1.521 do Código Civil lista os casos em que o casamento é proibido, por exemplo, dos “ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil”. E afirma que em nenhum momento proíbe a união homossexual.

Leia a íntegra da ação

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUÍZ FEDERAL DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE GUARATINGUETÁ, ESTADO DE SÃO PAULO.

“Uma nação que pretenda ser verdadeiramente desenvolvida precisa respeitar as diferenças internas do seu povo, cabendo-lhe ser intolerante com a própria intolerância.” (Pedro Taques, Procurador Regional da República em São Paulo).

PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República que esta subscreve, diante do que disposto nos artigos 127 e 129 da Constituição Federal, vem à honrosa presença de Vossa Excelência propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face de:

1) UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno e externo, podendo ser citada e intimada no endereço de seus nobres representantes judiciais, os membros da ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO – AGU, no Estado de São Paulo;

2) O ESTADO DO ACRE, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JORGE NEY VIANA MACEDO NEVES, podendo ser localizado na Av. Brasil, nº 402 – Centro – CEP 69.900-100 Rio Branco – Acre;

3) O ESTADO DO AMAPÁ, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado ANTONIO WALDEZ GOÉS DA SILVA, podendo ser localizado no Palácio do Setentrião, situado na Rua General Rondon, 259, centro, Macapá;

4) O ESTADO DE ALAGOAS, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado RONALDO AUGUSTO LESSA SANTOS, podendo ser localizado no Palácio Marechal Floriano Peixoto, Praça Floriano Peixoto, 517, Centro- Maceió;

5) O ESTADO DO AMAZONAS, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado CARLOS EDUARDO DE SOUZA BRAGA, podendo ser localizado na Rodovia Vital de Mendonça, Km 09 – Bairro Flores – Manaus – AM;

6) O ESTADO DA BAHIA, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado PAULO GANEM SOUTO, podendo ser localizado na Avenida 3, 390, Plataforma IV, Ala Sul – CAB CEP: 41745-005;

7) O ESTADO DO CEARÁ, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado LÚCIO GONÇALO ALCÂNTARA, podendo ser localizado no Centro Administrativo Bárbara de Alencar – Palácio Iracema – Água Fria – Fortaleza, CE;

8) O ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado PAULO CÉSAR HARTUNG GOMES, podendo ser localizado Pça. João Clímaco, s/n – Palácio Anchieta – CEP 29015-110 – Vitória – ES;

9) O DISTRITO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador do Distrito Federal JOAQUIM DOMINGOS RORIZ, podendo ser localizado no Palácio do Buriti – Eixo Monumental, S/N, Brasília – DF

10) O ESTADO DE GOIÁS, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado MARCONI FERREIRA PERILLO JÚNIOR, podendo ser localizado no Palácio Pedro Ludovico Teixeira – Rua 82, S/N Setor Sul – Goiânia – GO – CEP – 74.088-900;

11) O ESTADO DO MARANHÃO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JOSÉ REINALDO TAVARES, podendo ser localizado na Avenida Jerônimo de Albuquerque, S/N, Calhau


São Luís-Maranhão, CEP 65070-900;

12) O ESTADO DE MATO GROSSO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado BLAIRO BORGES MAGGI, podendo ser localizado no Palácio Paiaguás, Centro Político Administrativo, CUIABÁ – MT, CEP 78.050-970;

13) O ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JOSÉ ORCÍRIO MIRANDA DOS SANTOS, podendo ser localizado no Parque dos Poderes – Bloco 08 – CEP: 79.031-902 – Campo Grande/MS;

14) O ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado AÉCIO NEVES DA CUNHA, podendo ser localizado na Praça da Liberdade, S/Nº – Funcionários, Belo Horizonte – CEP: 30.140-912

15) O ESTADO DO PARÁ, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado SIMÃO ROBINSON OLIVEIRA JATENE, podendo ser localizado no Palácio dos Despachos – Rodovia Augusto Montenegro, Km 09, Belém, Pará, CEP:66823-010;

16) O ESTADO DA PARAÍBA, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado CÁSSIO RODRIGUES DA CUNHA LIMa, podendo ser localizado na Av. João da Mata, s/n, Centro Administrativo – Jaguaribe – CEP: 58019-900- João Pessoa-PB

17) O ESTADO DO PARANÁ, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado ROBERTO REQUIÃO DE MELLO E SILVA, podendo ser localizado no Palácio Iguaçu – Praça Nossa Senhora de Salete, s/n – 80530-909 – Curitiba – PR;

18) O ESTADO DE PERNAMBUCO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JARBAS DE ANDRADE VASCONCELOS, podendo ser localizado no Palácio do Campo das Princesas, Praça da República, s/n, CEP 50010-050 Recife – Pernambuco;

19) O ESTADO DO PIAUÍ, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JOSÉ WELLINGTON BARROSO DE ARAÚJO DIAS, podendo ser localizado no Palácio de Karnak – Av. Antonino Freire, 1450 – Centro, CEP 64.001-040 – Teresina – PI;

20) O ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de sua representante legal, a Excelentíssima Senhora Governadora de Estado WILMA MARIA DE FARIA, podendo ser localizado na BR101, Km 0 – Lagoa Nova, CEP 59064-901 – Natal-RN;

21) O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado GERMANO ANTONIO RIGOTTO, podendo ser localizado no Palácio Piratini – Praça Marechal Deodoro, S/N, Porto Alegre, RS;

22) O ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de sua representante legal, a Excelentíssima Senhora Governadora de Estado ROSÂNGELA BARROS ASSED MATHEUS DE OLIVEIRA, podendo ser localizada no Palácio Guanabara – Rua Pinheiro Machado s/n°, Laranjeiras, Rio de Janeiro CEP: 22.238-900;

23) O ESTADO DE RONDÔNIA, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado IVO NARCISO CASSOL, podendo ser localizado na Praça Getúlio Vargas, s/nº CEP: 78900-000 – Porto Velho – RO;

24) O ESTADO DE RORAIMA, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado OTTOMAR DE SOUZA PINTO, podendo ser localizado na Av. Ville Roy, 1500E- Centro – Boa Vista – Roraima -CEP 69.301-150;

25) O ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado LUIZ HENRIQUE DA SILVEIRA, podendo ser localizado na Rod. SC 401 – km. 5, 4600 – Saco Grande, Florianópolis – SC;

26) O ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado GERALDO JOSÉ RODRIGUES ALCKMIN FILHO, podendo ser localizado no Palácio dos Bandeirantes Av. Morumbi, 4500 CEP 05650-905 – São Paulo;


27) O ESTADO DE SERGIPE, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado JOÃO ALVES FILHO, podendo ser localizado na Av: Adélia Franco, 3305 – Grageru, Palácio Gov. Augusto Franco – Aracaju-SE;

28) O ESTADO DE TOCANTINS, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citado e intimado no endereço de seu representante legal, o Excelentíssimo Senhor Governador de Estado MARCELO DE CARVALHO MIRANDA, podendo ser localizado no Palácio Araguaia – Praça dos Girassóis – Marco Central – CEP: 77003-020 – Palmas – TO;

pelas razões de fato e de direito adiante articuladas.

I – A PREMISSA NORMATIVA FUNDAMENTAL

1. Esta ação parte de uma premissa normativa inarredável, que por sua vez é condição necessária e suficiente do seu êxito: o Estado Brasileiro não pode discriminar pessoas em função de sua orientação sexual.

2. O princípio constitucional de dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1°, inciso III), ilumina incisivamente o respeito incondicional que as instituições estatais devem manter pela moral particular dos indivíduos.

3. Se a Constituição Federal garante a inviolabilidade da vida privada como direito fundamental do indivíduo (artigo 5°, inciso X), não pode o Estado Brasileiro, que é democrático e de direito (CF, artigo 1º, caput), querer manipular os comportamentos íntimos dos seres humanos por um sistema de segregação, tratando-os de forma diferente e discriminando-os no seu status jurídico apenas em virtude da opção sexual que escolheram para si.

4. Veja-se que, nos termos do artigo 3°, inciso IV, da Carta Maior, constitui objetivo da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (princípio da não discriminação).

5. Partindo-se dessa premissa normativa fundamental, qual seja, a de que as pessoas jurídicas estatais não podem discriminar brasileiros em virtude de sua orientação sexual, deixando-a irradiar sobre a leitura da legislação infraconstitucional e limpando os nossos corações de qualquer preconceito, a procedência da presente ação será inexorável.

II – O COMPORTAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO EM FACE DO HOMOSSEXUALISMO E O OBJETIVO DA PRESENTE AÇÃO.

06. Assentada a premissa normativa fundamental, resplandecendo firme o espírito de respeito, solidariedade e amor ao próximo, o que se almeja é discutir criticamente, sem as amarras de qualquer preconceito de índole pessoal, um dogma absolutamente enraizado na tradição cultural brasileira, qual seja, o de que o homem só pode casar-se com a mulher e vice-versa (casamento de sexos opostos), sendo vedado o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Pretende-se, então, fazer uma releitura crítica da norma veiculada pelo artigo 1517 do Código Civil, assim redigido:

“Art. 1517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.”

07. Todo o mundo sabe que homem só casa com mulher e mulher só casa com homem, não havendo a possibilidade de algo diferente e isso é tão certo que ninguém discute. Só que talvez as pessoas não parem para refletir, como deveriam, que existem certas coisas que são certas porque ninguém discute e ninguém discute porque são certas. Ou seja, existem práticas humanas tão enraizadas no espírito cultural coletivo que paira uma sensação geral de que as coisas foram assim, são assim e vão ser sempre assim. É exatamente esse dogma cultural que a presente ação civil pública vai combater, orientada pelo espírito de tolerância e de respeito com as diferenças. Afinal, trata-se de diretriz normativa que deflui do texto constitucional e que o Estado Brasileiro não poderá jamais olvidar.

08. Para realizar tal empreitada, será necessário analisar normas afins à temática em questão, tanto da legislação infraconstitucional como da própria Carta Magna que, numa primeira leitura, tão apressada quanto equivocada, poderiam dar a entender que respaldam a posição discriminatória. São elas, especificamente falando: os §§ 3° e 5° do artigo 226 da CF e o artigo 1565 do CC, verbis:

“ Código Civil, Art.1565: Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.”

“ Constituição Federal, Art. 226: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(…)

§ 3° Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.


(…)

§5° Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”

09. Uma leitura isolada desses dispositivos, associada ao teor do artigo 1517 do código civil e a todo um influxo cultural de preconceito, que ainda prepondera no seio da sociedade civil, conduzem à equivocada compreensão de que o casamento só pode ser mesmo realizado entre pessoas do mesmo sexo.

10. O objetivo desta ação é desnudar esse equívoco de leitura e combatê-lo, já que é fruto de graves injustiças contra significativa parcela de seres humanos.

III – AS PESSOAS, O ESTADO BRASILEIRO E A DEFESA DAS MINORIAS

11. As pessoas, no exercício individual de sua liberdade de crença, pensamento e opinião, podem ser particularmente contrárias ao homossexualismo, já cada um tem o direito de pensar o que bem entender. Contudo, diante do regime normativo albergado pela nossa Constituição Federal de 1988, que marcou posição contra preconceitos, as instituições estatais brasileiras não podem ter outra postura senão dispensar a todos os seus cidadãos igualdade de tratamento, independente do fato de serem ou não homossexuais.

12. Deve ficar bem claro que o Ministério Público Federal, como instituição propulsora da cidadania e defensora da ordem jurídica, não é contra e nem é a favor do homossexualismo como modo de ser e de viver, nem lhe cabe exercer tal juízo de valor, mas sim a favor do respeito pelas pessoas e contra as discriminações em virtude da orientação sexual.

13. O Estado Social e Democrático de Direito, como se enquadra a República Federativa do Brasil, caracteriza-se pelo respeito à diferença e pela tolerância com as minorias, de modo a que todos os seres humanos possam desenvolver suas aptidões pessoais e exercerem, pacificamente, o direito constitucional a ser feliz. O Estado não foi concebido para criar obstáculos à felicidade dos cidadãos, nem para impor a consagração de um determinado padrão de moral religiosa, ainda que por via indireta – negando direitos. Se a heterossexualidade é a orientação sexual da maioria da população brasileira, nem por isso a minoria homossexual deve ser tratada como pecaminosa ou doentia a ponto de o Estado fazer, como vem fazendo, discriminações gritantes na aquisição de direitos e no status jurídico desses indivíduos.

14. A propósito, cumpre trazer à baila a lição do eminente Juiz Federal ROGER RAUPP RIOS, lançadas em excelente monografia sobre o tema, verbis:

“No direito brasileiro, o princípio da igualdade formal, coerente com a vocação universal da norma jurídica, proíbe diferenciações fundadas na orientação sexual, impedindo a restrição a direitos fundada exclusivamente na homossexualidade.”

15. A consagração da inviolabilidade da vida privada como direito fundamental do indivíduo, somada à proibição de discriminações em virtude do sexo, à ausência de religião oficial e ao vetor de dignidade da pessoa humana, tudo isso será fundamental para concluirmos, sem sombra de dúvida, que se impõe ao Estado Brasileiro um dever de abstenção, consistente em não negar direitos com base nos padrões da moral católica, vale dizer, que não se pode discriminar pessoas homossexuais pelo só fato de terem escolhido, como modo de ser e de viver, esta orientação sexual.

16. Os dispositivos acima transcritos (artigos 1517 e 1565 do código civil; artigo 226, §§ 3º e 5º da Constituição Federal), portanto, deverão ser lidos num confronto sistemático com vários outros, também da própria Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, para que da análise conjunta de todos eles possa ser sacada a norma de direito aplicável que, como veremos, está sendo violada até o presente momento.

17. Sobre dispositivos de lei e normas jurídicas, a melhor doutrina ensina que não há correspondência biunívoca entre ambos, isto é, “onde houver um não terá obrigatoriamente de haver o outro”, como explica Humberto Ávila . Diz o eminente jurista: “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte .”

18. O insigne Ministro Eros Roberto Grau, em trabalho doutrinário, endossa este entendimento: “Além disso, no entanto, um aspecto importantíssimo deve ser explicitado, atinente ao equívoco reiteradamente consumado pelos que supõe que se interpretam normas. O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas. Daí, como as normas resultam da interpretação, o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, um conjunto de normas. O conjunto dos textos – disposições, enunciados – é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky]. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Por isso dizemos que as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; eles dizem o que os intérpretes dizem que eles dizem [Ruiz e Cárcova] ”


IV – O DIREITO COMO SISTEMA HARMÔNICO DE NORMAS

19. A lição é de Luis Roberto Barroso: “A despeito da pluralidade de domínios que, a ordem jurídica constitui uma unidade. De fato, é decorrência natural da soberania do Estado a impossibilidade de coexistência de mais de uma ordem jurídica válida e vinculante no âmbito do seu território.Para que possa subsistir como unidade, o ordenamento estatal, considerado na sua globalidade, constitui um sistema cujos diversos elementos são entre si coordenados, apoiando-se um ao outro e pressupondo-se reciprocamente. O elo de ligação entre esses elementos é a Constituição, origem comum de todas as normas. É ela, como norma fundamental, que confere unidade e caráter sistemático ao ordenamento jurídico .”

20. Considerando que o Direito é um sistema de normas, que coexistem harmonicamente entre si, veremos que os artigos 1517 e 1565 do código civil, junto com o artigo 226, §§ 3° e 5° da Constituição Federal, precisam ser compatibilizados com os seguintes dispositivos: a) da Constituição Federal: preâmbulo; artigo 1°, incisos II, III, IV e V; artigo 3°, caput e incisos; artigo 4°, inciso II; artigo 5°, caput, incisos I e X e seu § 2°; artigo 6°; artigo 19, caput e incisos I e III; artigo 170, caput; artigo 193; artigo 226, caput e § 4°; artigo 227, caput; b) da legislação infraconstitucional: artigo 1521 do código civil, vários artigos da lei federal 9.263/1996 e artigo 1º da lei 10.216/2001. A transcrição desses dispositivos será feita ao longo da exposição.

V – ARTIGO 1517, O ESTADO SOCIAL DE DIREITO E OS VALORE POSITIVADOS NO PREÂMBULO DA CARTA MAIOR.

21. O Estado Social e Democrático de Direito, como se enquadra a República Federativa do Brasil, caracteriza-se pelo respeito à diferença e pela tolerância com as minorias, de modo a que todos os seres humanos possam desenvolver suas aptidões pessoais e exercerem, pacificamente, o direito constitucional a ser feliz. O Estado não foi concebido para criar obstáculos à felicidade dos cidadãos, nem para impor a consagração de um determinado padrão de moral religiosa, ainda que por via indireta – negando direitos. Se a heterossexualidade é a orientação sexual da maioria da população brasileira, nem por isso a minoria homossexual deve ser tratada como pecaminosa ou doentia, a ponto de o Estado fazer, como vem fazendo, discriminações gritantes na aquisição de direitos e no status jurídico desses indivíduos.

22. O próprio preâmbulo da Constituição Federal, que serve para orientar a interpretação de todos os seus dispositivos, enfatiza o que o Estado Brasileiro destina-se a assegurar “a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (…).”

23. A axiologia constitucional, positivada no preâmbulo da Constituição, será fundamental para que possamos interpretar os artigos 1517 e 1565 do código civil, bem como o artigo 226, §§ 3º e 5º da Constituição Federal, já que nenhuma interpretação de texto legal pode conduzir à violação de todos esses valores ao mesmo tempo. Como veremos, a negativa estatal ao casamento de homossexuais alcança tamanha façanha.

VI – SEGUE: O ARTIGO 1517 DO CÓDIGO CIVIL, O DIREITO À CIDADANIA E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

24. O direito a receber do Estado Brasileiro o status jurídico de pessoa casada é uma projeção dos direitos da personalidade. Como é ato de outorga do Estado, refletindo seu poder de império, trata-se também de um direito inerente à cidadania. É preciso decidir, portanto, se o critério de discriminação em questão, usado até hoje na interpretação da lei civil, guarda nexo lógico e racional com a discriminação propriamente dita, tornando-a justificável.

25. O critério de discriminação é a orientação sexual. É simples o que hoje ocorre: heterossexuais podem casar entre si, fazendo jus a esse direito da cidadania, enquanto homossexuais não podem e esse direito lhes é negado. Inexoravelmente, portanto, o critério para conceder a uns o direito ao casamento, negando-o a outros, é a orientação sexual das pessoas.

26. Nisso reside a violação ao princípio da igualdade: o Estado Brasileiro trata os cidadãos de forma diversa sem que o critério de discriminação esteja apoiado numa relevante razão lógica. Afinal, o bem jurídico tutelado com essa discriminação é apenas um padrão moral de conduta, alicerçado sobre a idéia preconceituosa de que o homossexualismo é pecado. Não há problema algum que as religiões pensem isso e divulguem essa idéia a seus fiéis, já que é admitida a liberdade de crença religiosa; não há problema algum que as autoridades dos Três Poderes também pensem assim, intimamente, já que fora garantida a liberdade de pensamento; contudo, o Estado Brasileiro, como pessoa jurídica que não se confunde com suas autoridades, como instituição que deve velar pelo igual tratamento dispensado a seus cidadãos, não pode valer-se de um código de ética moral para discriminá-los. A partir do momento em que vivemos num Estado de Direito, sendo separado de qualquer religião, que preza pelas liberdades individuais, cabe-lhe abrir os braços para o diferente, com tolerância e inclusão.


27. São irretocáveis as ponderações do Professor Alexandre de Moraes, quando ensina que “O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio poder executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possa criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, a obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (…) Importante, igualmente, apontar a tríplice finalidade limitadora do princípio da igualdade: limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular. O legislador, no exercício de sua função constitucional de edição normativa, não poderá afastar-se do princípio da igualdade, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Assim, as normas que criem diferenciações abusivas, arbitrárias, sem qualquer finalidade lícita, serão incompatíveis com a Constituição Federal. O intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias.”

28. Negar o casamento a homossexuais implica diferenciar cidadãos apenas em virtude de sua orientação sexual. Esse comportamento estatal viola o princípio da igualdade de todos perante a lei (CF, artigo 5°, caput), já que heterossexuais recebem tratamento privilegiado diante de homossexuais; assim, viola também, ainda como projeção do princípio da igualdade, a proibição constitucional de “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”, encartada no artigo 19, inciso III, da Magna Carta, já que brasileiros heterossexuais são tratados de forma diferente do que brasileiros homossexuais, com preferência para os primeiros. Resta violada, de forma inconteste, “a igualdade como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como consta do preâmbulo da Constituição Federal.

29. Ainda com relação ao princípio da igualdade, já se pode falar de uma das normas que, numa leitura isolada e apressada, poderiam colaborar para a interpretação equivocada e acolhedora do preconceito. Trata-se do § 5° do artigo 226 da Constituição Federal, que diz que “os direitos e deveres da sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” O dispositivo apenas procura encarecer, uma vez mais, a igualdade entre homens e mulheres, anteriormente estabelecida pelo artigo 5°, inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” .

30. Sabemos todos que a igualdade entre homens e mulheres é fruto de um longo e doloroso processo histórico, marcado por intensas lutas civis. Basta mencionar que o direito mais elementar da cidadania, que é o direito ao voto, só foi conquistado pelas mulheres no decorrer do século XX, fazendo parte, portanto, de capítulo recentíssimo da história brasileira. A mulher casada, para o código civil de 1916, era considerada incapaz e o marido exercia, soberanamente, a chefia da sociedade conjugal.

31. Apesar de já ser suficiente o artigo 5°, caput e inciso I, para ter-se o tratamento igualitário entre homens e mulheres no exercício dos direitos e deveres da sociedade conjugal, o Poder Constituinte resolveu esclarecer isso de uma vez por todas, especificando nitidamente essa idéia no comando posto no § 5° do artigo 226 . Nada mais do que isso, não se pode enxergar nesse dispositivo qualquer proibição ao casamento de homossexuais, primeiro porque não é expresso nesse sentido e segundo porque essa interpretação, implícita e restritiva, violaria todo o plexo de valores albergados pelo preâmbulo e demais normas anti-discriminação postas na Constituição Federal.

32. Finalizamos o tópico com as palavras lúcidas do eminente Juiz Federal ROGER RAUPP, em obra já citada:

“A proibição de discriminação em virtude da orientação sexual, engendrada pelo princípio isonômico, ordena que preconceito, desrespeito e intolerância não prevaleçam sobre o princípio fundamental de igualdade, alicerce indispensável para um convívio social que respeite a dignidade de cada ser humano.”

VII – SEGUE: O ARTIGO 1517 DO CÓDIGO CIVIL E A PROTEÇÃO AO NÚCLEO FAMILIAR

33. A esse passo devemos refletir e nos perguntar o seguinte: que mal faz à sociedade o casamento de pessoas homossexuais? Qual o bem jurídico tutelado que faria justificar a negativa estatal ao casamento de homossexuais?

33. A proibição estatal ao casamento de pessoas homossexuais interessa apenas às pessoas que não suportam ver a felicidade alheia. Só pode ser isso porque a permissão pretendida, que é absolutamente conforme à Constituição, não faria mal nenhum a ninguém.


34. Dizer que a união homossexual contraria os princípios éticos da família, ferindo a proteção ao núcleo familiar, também não convence, partindo sempre da mesma e preconceituosa premissa de que essa orientação sexual é pecaminosa ou doentia.

35. Quanto à concepção de pecado, cada religião pode crer no que quiser, valendo salientar que a religião católica ensina, até hoje, que sexo para o prazer também é pecado, só sendo possível praticá-lo para a procriação. Há outras religiões, por sua vez, que admitem e estimulam livremente o sexo, inclusive com múltiplos parceiros. O importante é salientar que não cabe ao Estado Brasileiro interferir no comportamento humano da sociedade civil com base nessas crenças, querendo impor algum padrão moral de conduta aos particulares. Se o que fazem os particulares não prejudica a ninguém, só os fazem felizes, não cabe ao Estado interferir, discriminando pessoas (em clara violação ao princípio da igualdade) apenas porque não se comportam conforme os padrões morais de conduta ou opções de escolha de vida da maioria.

36. Quanto ao homossexualismo como doença, acordando para a realidade, desde 1985 o Conselho Federal de Medicina extirpou a homossexualidade do seu catálogo de doenças, comportamento que passou a ser considerado “normal” com a evolução do conhecimento científico.

37. Homossexualismo não se contrapõe à idéia de família. A idéia de família deve sobrepor, acima de tudo, cooperação, respeito e harmonia. Há tantas famílias de casais heterossexuais que não têm isso: filhos consumidos pelas drogas, casais atordoados pela quebra do dever de fidelidade, separações e divórcios que se multiplicam, brigas por dinheiro, abandono e desamparo. O álcool, a miséria e a exaltação sem limites dos valores materialistas da nossa sociedade, que é explosivamente consumista, ajudam a engrossar o caldo de desagregação da família, não só no Brasil mas no mundo inteiro. De outra parte, há casais homossexuais, ainda não devidamente legalizados pelo Estado, que dão um exemplo de fraternidade e harmonia: mantêm-se fiéis aos parceiros sexuais, dão o apoio necessário na desgraça, na miséria e na doença, sabem falar e sabem ouvir, fazem da existência em comum uma fortaleza de cooperação, sem gritos nem brigas, com amor e compaixão. Não se quer com isso fazer apologia ao homossexualismo mas apenas ressaltar a idéia de que a proteção ao núcleo familiar é absolutamente compatível com essa orientação sexual, não havendo razão lógica plausível para a injusta discriminação estatal.

38. Por isso, quando o artigo 226, § 3°, da Constituição Federal, dispõe que “Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, deve-se compatibilizar o seu entendimento em consonância com todo o conjunto de normas e todo o complexo de valores do diploma fundamental.

39. É preciso considerar que entidade familiar não se refere apenas à união com o componente sexual, já que a união por relações de parentesco também constitui entidade familiar, o que se extrai do § 4° do mesmo artigo: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” A concepção jurídica de entidade familiar, portanto, não fica sob o monopólio da união afetiva entre o homem e a mulher, abrangendo também, na dicção desse dispositivo, “qualquer dos pais e seus dependentes”, acolhendo-se expressamente a família com laço de parentesco.

40. Ora, a lei não proíbe a adoção de uma criança ou um adolescente por um casal homossexual , ou mesmo por um único homossexual, que podem assim constituir uma entidade familiar com prole. É evidente que não se poderia conceber, nesse caso, a inexistência jurídica de proteção do Estado. Sendo inegável que o Estado deve outorgar a sua proteção para entidades familiares com um ou mais componentes homossexuais, a referência à união estável entre o homem e a mulher, posta no § 3° do artigo 226 da CF , deve ser compreendida como referência ao que normalmente acontece, sem extrair desse dispositivo uma chancela à postura preconceituosa, excludente e restritiva.

41. Normalmente, estatisticamente, considerando a conduta da maioria da população, os casais são heterossexuais e daí a referência ao homem e à mulher. A interpretação desse dispositivo não autoriza, contudo, a excluir do conceito de entidade familiar, portanto da proteção estatal, os casais formados por pessoas do mesmo sexo. Senão, vejamos.

42. Primeiro, já o dissemos e cumpre ressaltar, um casal homossexual pode perfeitamente adotar uma criança ou um adolescente, constituindo prole (que juridicamente não precisa estar ligada ao sexo), sendo inconcebível imaginar que, nessa situação, essa entidade familiar ficaria sem o amparo da proteção do Estado. Trata-se indiscutivelmente de uma entidade familiar porque o § 4° do artigo 226 da CF assim dispõe: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”


43. Segundo, e no mesmo sentido, se um casal homossexual pode adotar crianças e adolescentes, não se pode negar-lhe o direito de casar civilmente. Seria um paradoxo se a lei consentisse a adoção de crianças e adolescentes por um casal homossexual, como permite, mas proibisse a essa entidade familiar a chancela legal da sua união mediante a celebração de casamento civil, proibição que objetivamente não existe.

44. Terceiro, que a concepção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, como consta do preâmbulo da nossa Constituição, que deve promover o bem de todos, sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação, sendo esse um dos objetivos da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3°, inciso IV, da CF, não pode incorporar uma leitura preconceituosa, excludente e restritiva do § 3° do artigo 226 do mesmo diploma.

45. Quarto, que a concepção de família, mais propriamente, as razões teleológicas que justificam a sua proteção pelo Estado, podem ser perfeitamente encontradas num casal homossexual: vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos (que podem ser adotivos), fidelidade recíproca, respeito e consideração mútuos.

46. Quinto, que a norma do § 3° do artigo 226 da CF deve ser interpretada em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: não se compreende que pessoas homossexuais não sejam dignas do casamento, usufruindo dos benefícios do regime que institui e da proteção do Estado, enquanto essa dignidade é conferida aos casais heterossexuais.

47. Sexto, vale fazer um raciocínio para melhor reflexão. Analisemos o caput do artigo 5° da CF: ele diz que se garante a inviolabilidade do direito à vida aos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Uma interpretação apressada e isolada do caput do artigo 5° poderia levar ao entendimento de que os estrangeiros não residentes em nosso país não têm direito à vida, podendo ser condenados à morte, podendo ser torturados, podendo ter livremente confiscadas as suas propriedades, tudo sem direito a mandado de segurança ou habeas corpus. É claro que se trata de uma interpretação absurda, justamente porque desconsidera que a Constituição é um sistema, com princípios congruentes e regime harmônico de normas. Apesar da literalidade do dispositivo, ninguém sustenta, em sã consciência, que o estrangeiro não residente em nosso país pode ser privado dos mais elementares direitos fundamentais. Ocorre o mesmo com relação ao parágrafo 3° do artigo 226 da CF: uma interpretação sistemática desse dispositivo, alicerçada na convicção de que o seu texto não deve ser lido em tiras , destacado de todo o contexto normativo em que se insere, leva à vedação de uma interpretação preconceituosa, excludente e restritiva. Vale dizer: a redação literal desse dispositivo não exclui do âmbito de proteção estatal, como entidade familiar, a união estável de um casal homossexual, que também merece a fraternidade da sociedade, que também merece ser tratado com dignidade humana e sem distinções baseadas unicamente no preconceito moral.

48. A esse propósito, e em sétimo lugar, cumpre destacar que a legislação mais moderna fala em família e planejamento familiar para o homem, a mulher e para o casal, sem especificar, restritivamente, um conceito de casal que seja exclusivamente heterossexual. Trata-se da lei 9.263/1996, que logo em seu artigo 1° dispõe que “o planejamento familiar é direito de todo cidadão.” Se os homossexuais são cidadãos e não podem ser discriminados pelo só fato de terem escolhido essa orientação, então eles também têm direito ao planejamento familiar.

49. Se é objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária , as pessoas devem ter liberdade para escolher seus parceiros sexuais sem que essa escolha implique injustas restrições de tratamento por parte do aparato administrativo estatal. A solidariedade pressupõe acolher e dar apoio às escolhas individuais, abrindo oportunidade a qualquer pessoa para que possa concretizar o seu direito constitucional de ser feliz, mormente quando essas escolhas não atrapalham em nada os direitos individuais das demais ou os direitos coletivos em geral, como é o caso do casamento de homossexuais.

VIII – O DIREITO HUMANO INALIENÁVEL DE SER E A REPRESENTATIVIDADE DAS PESSOAS COM ORIENTAÇÃO HOMOSSEXUAL NO SEIO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA

50. No esteio do regime jurídico normativo consagrado pelo Poder Constituinte originário, considerando que o Estado deve propiciar condições às pessoas para que possam desenvolver suas aptidões pessoais, está coberto de razão o ilustre psicanalista Mário Luiz P. Quilici, manifestando-se em brilhante artigo datado de junho de 1999:

“Ontem foi o dia da passeata do orgulho Gay. É a terceira que ocorre. A primeira foi tímida, atrevida; uma conquista. A Segunda ganhou um pouco mais de volume e a terceira revelou-se uma surpresa. Segundo notícias, havia mais de 15.000 pessoas. A vida tem sido dura para os homossexuais em sua luta por um direito que, por si só, deveria ser natural. Mas não foi assim.


Tal número de componentes mostra uma coisa: os homossexuais começam a botar a cara para fora, perder o medo, apropriar-se do direito humano inalienável de ser. Acho que quem tem a ganhar é a nação como um todo. Homens que podem cumprir-se, sem obstáculos, são homens mais saudáveis e por isso, podem contribuir de maneira efetiva e brilhante para o progresso da nação e para a sanidade grupal.

Como disse antes, acho que esse, o direito de ser o que se é, deveria ser uma coisa natural. O respeito pelo ser do outro é absolutamente fundamental, é uma demonstração de civilidade que torna um povo melhor. Isso ficaria bem para o brasileiro que é muito afetivo e doce. Mas como povo, estamos ainda amadurecendo. Estamos conseguindo. Hoje temos os negros um pouco menos discriminados e, dessa forma, outras minorias são pensadas e vistas não como algo a ser rejeitado mas como grupos que tem muito a oferecer com suas peculiaridades. São mudanças tímidas ainda. Mas são os tijolos pequenos que fazem os grandes edifícios, por isso, essas pequenas mudanças são fundamentais.

Acho que uma nação só pode ser assim chamada se houver respeito pela dignidade do outro. Estamos caminhando para isso. Hoje o consumidor esboça reações mais efetivas ao ser enganado. O negro bota a boca no trombone ao ser discriminado. O homossexual briga quando é agredido em seu direito de ser. Alguns grupos vão à justiça brigar contra impostos desonestos e injustos. Estamos, como cidadãos brasileiros, começando a saber o que significa cidadania. É necessário amadurecer mais para que saibamos também escolher adequadamente nossos governantes. Temos que dirigir nossos políticos e determinar a criação e o cumprimento de leis que tenham como objetivo o respeito por todos , deixando de lado o paternalismo gosmento e asqueroso que só traz impotência e escravidão.

Muitas pessoas revelam-se escandalizadas com movimentos como esse de hoje, o dos homossexuais que reivindicam seus direitos justos. Dizem que é o fim do mundo. Talvez o que elas não percebam é que o fim do mundo é na verdade a violência que se instala quando perdemos o respeito pelo nosso próximo na medida em que queremos domar seu desejo só porque toca no nosso e isso torna-se insuportável. Alguns grupos pretendem com essa repressão, manter uma certa moral. Moral que lhes convém, moral sem dignidade. Moral que de forma egoísta, transforma a vida de centenas de pessoas num inferno. Isso vai acabar mais cedo do que eu imaginava: que bom!”

51. As palavras do culto psicanalista têm algo de proféticas. Sendo o seu artigo escrito há apenas cinco anos atrás, ele comemorou a presença de 15.000 (quinze mil) pessoas na parada do orgulho gay em São Paulo, salientando que esse número expressivo indicava que os homossexuais vinham perdendo o medo de se assumirem, o que significa que “vinham se apropriando do direito humano inalienável de ser.”

52. De fato, provavelmente ele não imaginaria que, cinco anos depois, em junho de 2004, a cidade de São Paulo faria a maior manifestação da “parada gay” do mundo, com mais de 1.000.000 (UM MILHÃO) de pessoas presentes.

“São Paulo tem a maior parada gay do mundo”

IVONE PORTES, da Folha Online

São Paulo fez hoje a maior parada gay do mundo, segundo dados da Polícia Militar e da Associação do Orgulho GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros). De acordo com os organizadores do evento, cerca de 1,8 milhão de pessoas participaram da parada que lotou as duas pistas da Avenida Paulista. Já a PM estima que mais de 1 milhão de pessoas compareceram. No final da tarde, a polícia chegou a divulgar que 1,5 milhão de pessoas participavam do evento. O número oficial da PM, no entanto, deve ser divulgado somente na segunda-feira. Os números, tanto da polícia como dos organizadores, superam o da parada de Nova York no ano passado, que contou com cerca de 1 milhão de participantes, e de Toronto (900 mil). No ano passado, a Parada Gay de São Paulo reuniu cerca de 1 milhão de pessoas, segundo dados dos organizadores do evento.

Diversidade

A parada foi aberta com o discurso da Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT). “A parada gay é o evento de São Paulo que mais reúne pessoas sem precisar fazer rifas ou distribuir prêmios, como carros”, disse a prefeita. De acordo com ela, a magnitude do evento mostra “o respeito e o reconhecimento que a população da cidade tem pela diversidade e pela pluralidade”. Durante seu discurso, no qual foi aplaudida, Marta destacou a importância de os homossexuais serem aceitos pela sociedade e, principalmente, pela família. “Aqui estão os avós, os filhos e os pais dos homossexuais.” O evento deste ano teve como tema “Família e Orgulho”.

53. É evidente que os dados sociológicos não alteram normas jurídicas positivadas, o que poderia levar à conclusão, tão precipitada quanto equivocada, que esses dados de fato da realidade social são insignificantes. Ledo Engano; os dados sociológicos, se não são capazes de alterar um quadro normativo, ao menos servem como vetores para auxiliar a interpretação do operador do direito, que não pode jamais ignorar a realidade social, já que um dos escopos da jurisdição é justamente o de permitir a pacificação social com a harmonia da convivência em sociedade.


54. Veja-se, estamos falando do “direito inalienável de ser” de uma minoria bastante representativa da população brasileira: os números mostram uma parcela realmente significativa. A “parada do orgulho Gay”, na cidade de São Paulo, reuniu MAIS DE UM MILHÃO DE PESSOAS, cabendo aqui destacar duas observações fundamentais: a primeira, estamos falando apenas da cidade de São Paulo, sendo certo que há outras manifestações do mesmo tipo que se espalham pelo Brasil inteiro ; a segunda, nem todas as pessoas homossexuais, ou seus familiares, dispõe-se a participar de manifestações desse tipo, até porque remanesce na tradição cultural brasileira um forte preconceito quanto a essa orientação sexual.

55. Os números mostram que não estamos falando de uma meia dúzia de marginalizados culturalmente e discriminados juridicamente; a presente ação tutela o direito de milhões de pessoas espalhadas difusamente por toda a sociedade civil, sendo talvez a minoria mais significativa e representativa de todas. Se todo o poder emana do povo, como enfatiza logo o artigo 1°, parágrafo único, da Constituição Federal, há que se reconhecer que essas pessoas sofridas, injustamente discriminadas, representam parcela expressiva do povo brasileiro, não se podendo mais tolerar que o Estado Brasileiro, querendo impor padrões morais de conduta, continue adotando práticas administrativas desrespeitosas ao direito de escolha dessas pessoas, ou seja, criando obstáculos ao direito constitucional de buscar a felicidade, inerente a todo ser humano.

IX – A QUEBRA DAS TRADIÇÕES ALICERÇADAS NO PRECONCEITO CULTURAL E A NECESSIDADE DE RELEITURA DA LEGISLAÇÃO INFERIOR SOB AS LUZES DO TEXTO CONSTITUCIONAL, SEGUINDO A TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO.

56. Antes de prosseguir, o Ministério Público Federal, como instituição propulsora da cidadania, “a voz da sociedade perante o Poder Judiciário ”, pede a Vossa Excelência, que lerá esta petição inicial, bem como a todos os demais magistrados que venham a tomar contato com esta ação, eventualmente e em grau recursal, que desnudem o vosso coração, sinceramente, de todos os preconceitos íntimos que nele estejam incrustados, focando as atenções no respeito que se deve ter com o próximo, no amor e na solidariedade que nos fazem criaturas realmente especiais. Enfim, que venham do fundo de vossas almas e corações os valores verdadeiramente cristãos – baseados na solidariedade, amor e respeito ao próximo, em contraposição com outros que possam ser estritamente apegados a determinada doutrina religiosa e seus padrões morais de conduta.

57. O Ministério Público Federal, agora como defensor da ordem jurídica, pede também que não se esqueçam do regime jurídico normativo estampado na Lei Máxima:

a) que a cidadania e a dignidade da pessoa humana, ao lado do pluralismo político, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil , sendo que o ser humano homossexual é cidadão com os mesmos direitos e merecedor da mesma dignidade que o ser humano homossexual;

b) que, dentre os objetivos desta mesma Republica, estão o de construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação , sendo que a redação aberta do dispositivo acolhe a vedação à discriminação por orientação sexual;

c) que a República Federativa do Brasil caracteriza-se, até mesmo nas suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos e toda a doutrina de proteção aos direitos humanos veda a discriminação em virtude da orientação sexual ;

d) que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade ;

e) que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas , sendo que a discriminação pela negativa ao casamento homossexual implica violação à vida privada, cerceando, ainda que indiretamente – com forte desestímulo, a liberdade de escolha do parceiro sexual;

f) que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si , não se concebendo, licitamente, o tratamento diferente e privilegiado em prol do brasileiro heterossexual, com relação ao brasileiro homossexual;

g) que, por tudo isso, retomando a premissa normativa fundamental desta ação, não cabe ao Estado Brasileiro, como instituição pública oficial, discriminar juridicamente as pessoas em virtude da orientação sexual que escolheram para si;

h) que o Estado Brasileiro não pode alicerçar suas práticas administrativas em padrões religiosos de conduta moral, querendo impô-los aos cidadãos com a negativa de direitos – portanto, de forma indireta, porque isso implica obstáculos injustificáveis ao direito constitucional de ser feliz.


58. Já o dissemos e não custa sublinhar que, rememorando esses postulados, firme nesse espírito de respeito, solidariedade e amor ao próximo, o que se almeja é discutir criticamente, sem as amarras de qualquer preconceito de índole pessoal, um dogma absolutamente enraizado na tradição cultural brasileira, qual seja, o de que o homem só pode casar-se com a mulher e vice-versa (casamento de sexos opostos), sendo vedado o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Pretendemos, então, fazer uma releitura crítica do artigo 1517 e, por arrastamento, do 1565 do Código Civil:

“Art. 1517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.”

Art. 1565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pela família.”

59. É muito difícil discutir uma idéia pré-concebida, plenamente viva no espírito cultural de um povo (ou ao menos a sua maioria). Também já o dissemos e não custa conferir: “Todo o mundo sabe que homem só casa com mulher e mulher só casa com homem, não havendo a possibilidade de algo diferente e isso é tão certo que ninguém discute. Só que talvez as pessoas não parem para refletir, como deveriam, que existem certas coisas que são certas porque ninguém discute e ninguém discute porque são certas. Ou seja, existem práticas humanas tão enraizadas no espírito cultural coletivo que paira uma sensação geral de que as coisas foram assim, são assim e vão ser sempre assim. É exatamente esse dogma cultural que a presente ação civil pública vai combater, orientada pelo espírito de tolerância e de respeito com as diferenças, diretriz normativa que deflui do texto constitucional e que o Estado Brasileiro não poderá jamais olvidar.”

60. A idéia da proibição do casamento homossexual tem firme presença na nossa cultura. É considerada como algo absolutamente “normal”, provavelmente tanto quanto era normal a mulher ser alijada do voto popular no século XIX, as pessoas serem submetidas à escravidão no século XVIII e outras tantas queimadas na “santa” inquisição do século XVII, sendo que naquele primeiro caso a discriminação era baseada no sexo biológico da pessoa, no segundo a discriminação era calcada na cor e, neste último, a morte na fogueira era a resposta punitiva a quem ousasse manifestar discórdia quanto às doutrinas da Igreja Católica, ou então se atrevesse a um comportamento destoante dos seus padrões morais de conduta: qualificados de bruxas ou bruxos, eram os serem humanos incinerados na fogueira, tudo em nome de Deus.

61. As idéias que apoiavam e alicerçavam estes comportamentos eram impregnadas na cultura e tidas por normais, tão normal quanto hoje em que aceitamos, resignadamente, que o próprio Estado pratique, sem pudores, a discriminação em virtude da orientação sexual. É preciso enxergar um pouco mais longe, desapegando da confortável posição de dizer que as coisas são assim porque o são e ponto final, tudo pela simples razão, assaz dita às crianças, que o “porque sim” não é resposta.

62. Se o Estado não serve para criar obstáculos ao legítimo sonho das pessoas de bem de serem felizes, não podendo discriminar as pessoas em virtude da orientação sexual, a norma contida no artigo 1517 do código civil, lida sob a perspectiva da Constituição Federal, qual seja, o da criação de uma sociedade mais livre, justa e solidária, sem preconceitos de qualquer índole, sem distinções ou preferências entre brasileiros e com a garantia da liberdade de ser e de viver, bem como da igualdade entre as pessoas, tudo conflui para que o seu entendimento, extraído de conformidade com esses valores constitucionais positivados, seja no sentido de que o homem e a mulher podem casar, sem restrições quanto ao sexo do cônjuge.

63. Interessante observar que o artigo 1517 do código civil, quando estatui que o homem e a mulher podem casar , não faz qualquer restrição expressa no sentido de que “apenas podem casar entre si”. Ou seja, a lei civil não é suficientemente clara em proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não fazendo isso expressamente; a proibição fica mais por conta do pensamento arraigado na cultura geral da população e da comunidade jurídica em particular, tão tradicionalista quanto preconceituoso. Parte-se de uma interpretação implícita para restringir direitos e excluir pessoas da sua aquisição, almejando simplesmente impor a observância de um padrão moral conduta.

64. Insista-se: a proibição para o casamento civil de pessoas do mesmo sexo não está expressamente posta na legislação civil, ficando apenas por conta de uma interpretação fincada na nossa tradição cultural, do tipo: “é proibido porque é proibido e ponto final”, que é ultrapassada, preconceituosa e desafinada com os supracitados valores constitucionais.


65. Logo, o artigo 1517 do código civil admite duas interpretações:

a) A primeira é a restritiva – sem norma expressa que autorize a restrição, ultrapassada, preconceituosa e desafinada com os valores maiores da nossa Constituição Federal, captando desse dispositivo que “o homem e a mulher podem casar apenas entre si, sendo vedado o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo”. Cumpre notar que essa parte sublinhada expressa o conteúdo restritivo, mas é inexistente no artigo 1517 do código civil. O conteúdo restritivo é uma criação exegética, presente apenas como conclusão extraída por essa primeira interpretação.

b) A segunda é a compatível com os valores maiores da nossa Carta Magna, respeitante da tolerância, da diferença, da dignidade com que o Estado deve tratar qualquer ser humano, sem preconceitos de qualquer índole, captando desse dispositivo que “o homem e a mulher podem casar, sem restrições quanto ao sexo dos cônjuges.” A parte sublinhada, que é corolário dessa segunda interpretação, vem compromissada com uma velha máxima da ciência exegética, qual seja, a de que as restrições à aquisição de direitos devem ser expressamente postas na norma; em outros termos, as normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente, não cabendo ao intérprete enxergar restrições aonde elas não existem.

66. Ora, por maior que seja o apego religioso do intérprete, por maiores que sejam os seus preconceitos pessoais, não lhe cabe inventar restrições em norma que não as prevê expressamente, mormente quando o conteúdo dessas restrições atrita com a força normativa da Constituição Federal, seu regime e os princípios por ela adotados, donde se destacam a vedação à discriminação, a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, a igualdade de todos perante a lei como seu valor supremo, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana e com prevalência para os direitos humanos.

67. Nessa mesma linha, o artigo 1565 do código civil também admite duas interpretações: uma primeira que, implicitamente, enxerga norma capenga e restritiva, excludente e preconceituosa, incompatível com a CF; uma segunda, agora sim conforme ao regime normativo da Constituição, percebe que essa norma foi editada com o objetivo de estabelecer a igualdade entre homens e mulheres no exercício dos direitos e deveres da sociedade conjugal, acabando com outra tipo de discriminação muito corrente, contra as mulheres, que é a discriminação em virtude do sexo biológico.

68. Ou seja, não houve a intenção, mesmo porque deveria ser explícita, de se proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo; apenas se acentuou a igualdade e o equilíbrio do homem e da mulher que, se são consortes, companheiros, assumem mutuamente a condição de responsáveis pelos encargos da família. Evidente que esse dispositivo vale para os casais homossexuais, que se são companheiros, consortes, também assumem mutuamente a condição de responsáveis pelos encargos da família.

69. Reforçando o entendimento preconizado por essa segunda interpretação, vem o próprio código civil, no seu artigo 1521, dispor, expressa e taxativamente, quais são os casos de impedimento absoluto para o casamento, não fazendo qualquer menção à proibição do casamento para pessoas do mesmo sexo. Consta do referido artigo:

Art. 1521. Não podem casar:

I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II – os afins em linha reta;

III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau, inclusive;

V – o adotado com o filho do adotante;

VI – as pessoas casadas;

VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

70. O artigo 1521 do código civil reforça mais a tese de que a restrição existe apenas como resíduo de uma tradição cultural arcaica e preconceituosa, sendo inexistente em norma expressa. Até que poderia haver mais um inciso nesse artigo, assim disposto: “art. 1521. Não podem casar: VIII – as pessoas do mesmo sexo”, MAS NÃO HÁ.

71. Se houvesse referido inciso, dispondo que não podem casar as pessoas do mesmo sexo, aí sim ficaria expressa na norma legal a restrição almejada pela primeira interpretação. Contudo, nesse caso hipotético, referida restrição legislativa seria manifestamente inconstitucional, já que o Estado Brasileiro não pode, a pretexto de impor um padrão moral de conduta, criar discriminações jurídicas em virtude da orientação sexual adotada pelos cidadãos brasileiros.

72. Cumpre insistir: se houvesse restrição legislativa como a aventada, como a imaginada num exercício hipotético de raciocínio, ela não seria compatível com a Constituição Federal porque conspurcaria várias de suas disposições normativas, chocando-se com o regime de solidariedade e os princípios humanísticos por ela adotados.


73. Então, se houvesse, na lei civil, restrição do teor da imaginada, ela colidiria com o sonho, refletido em múltiplas disposições normativas constitucionais, de uma sociedade fraterna, plural e sem preconceitos, que promove o bem de todos sem quaisquer formas de discriminação.

74. Há que se reconhecer uma esfera, na intimidade privada dos indivíduos, que as instituições oficiais não podem denegrir, nem por via indireta, negando a aquisição de direitos.

75. O Estado Brasileiro não pode pautar a sua conduta, como vem fazendo, pela imposição de restrições descabidas, inexistentes na lei, puramente alicerçadas no preconceito moral e com raízes em doutrinas religiosas. Se os Estados da Federação agem assim, com a complacência da União Federal, estejam certos de que sofrerão a resistência cidadã do Ministério Público Federal, esperando da Justiça Federal, que também é uma instituição de vanguarda na defesa da cidadania, que não compactue com essa postura arraigada no preconceito.

X – O PRECONCEITO CONTRA HOMOSSEXUAIS NO BRASIL E A OPORTUNIDADE DE UMA AÇÃO AFIRMATIVA PELO PODER JUDICIÁRIO COM A VALORIZAÇÃO DA VIDA HUMANA

76. Segundo LUIZ MOTT, eminente Professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, Doutor em Antropologia pela Unicamp e mestre em Etnologia pela Sorbonne, a homofobia é uma epidemia nacional. Ele assevera que o Brasil, que ostenta a fama internacional de ser uma das partes do mundo onde os gays e lésbicas são mais visíveis e socialmente aceitos, esconde uma desconcertante realidade: é o campeão mundial em assassinatos de homossexuais, sendo que a cada três dias um homossexual é barbaramente assassinado, vítima da homofobia.

77. Vale a pena colacionar alguns exemplos de manifesta discriminação e homofobia, colhidos do seu denso e excelente trabalho:

“Violação dos Direitos Humanos dos Homossexuais no Brasil

Tortura & Agressões

– DENUNCIA DA ANISTIA INTERNACIONAL: HOMOSSEXUAIS SÃO PERSEGUIDOS NO BRASIL

Ao lado do Irã, Turquia e Zimbábue, o Brasil é apontado como um dos países que mais persegue e discrimina os homossexuais, de acordo com o Relatório da Anistia Internacional. Diz o Relatório: “no Brasil centenas de membros das minorias sexuais foram assassinados nos últimos anos” [Jornal do Brasil, 23-6-97; O Globo, 24-6-97]

– MILITAR GAY SOFRE AGRESSÃO E VAI PARA UTI

O Tenente Coronel Zani Maia, 47, Comandante do Regimento Sampaio, após ter sido flagrado em setembro/96 em seu carro mantendo relações homoeróticas com um balconista, foi expulso das Forças Armadas. O Coronel Hugo Coelho de Almeida, do Rio de Janeiro, sugeriu a pena de morte contra o Comandante. Alguns meses depois, na esquina da Rua Padre Manoel da Nóbrega, sofreu um golpe com um paralelepípedo na cabeça, ficando com a testa fraturada, edema nas pálpebras e traumatismo craniano. Internado na UTI do Hospital Central do Exército, permanece diversas semanas em estado de coma. Segundo opinião do Deputado Fernando Gabeira, suspeita-se que o crime esteja relacionado ao fato de o militar ser homossexual. O deputado quer que a Câmara acompanhe todos os casos de morte envolvendo homossexuais, porque segundo ele, a polícia geralmente não trata esses crimes com seriedade.”[O Globo, 8-9-97; Veja, 16-4-97]

– MILITANTE GAY É AGREDIDO POR POLICIAL EM SP

O presidente do Grupo 28 de Junho de Emancipação Homossexual, Eugênio Ibiapino dos Santos foi abordado por policiais na Praça da República, no centro de SP, e ao identificar-se como ativista gay, foi vítima de insultos verbais e vários tapas na nuca. [Registro de Queixa na 3a Delegacia de Polícia, SP, 25-2-97, Boletim n.001566/97]

– ATOR É AGREDIDO POR CAUSA DE PERSONAGEM HOMOSSEXUAL

O ator André Gonçalves foi barbaramente agredido e ameaçado de morte por ter representado personagem homossexual numa novela da TV-Globo. Os agressores fazem parte de um grupo que há meses o xingava, zombando de seu personagem. “Eles me jogaram no chão, deram tapa na cara, mata-leão e quase quebraram meus braços.”[O Globo, 8-1-97]

– GAY TORTURADO VAI PARA A UTI EM SALVADOR

O gay F.T., de Salvador, foi encontrado em seu apartamento amarrado numa cadeira, tendo sido espancado, queimado com cigarro, seus pulsos quebrados e com grave golpe na cabeça, sendo socorrido dias depois, em estado de coma. Por medo do escândalo familiar, não registrou queixa na polícia. [Denúncia registrada no Grupo Gay da Bahia, dezembro/97]

– JOVENS DE BRASÍLIA CONSIDERAM NORMAL AGREDIR GAYS

Pesquisa realizada pela Unesco comprova que apenas 12% dos jovens de Brasília consideram crime humilhar travestis, prostitutas e homossexuais. Uma prática muito difundida entre os adolescentes de classe média de Brasília são as surras que aplicam em travestis e gays. No Distrito Federal, as travestis fazem ponto nos setores Comercial, Hoteleiro e de Diversões, locais com pouca iluminação e deficiente policiamento. Marcelo Kalil, 29 anos, disse que já presenciou este tipo de agressão. “Vi um cara quebrar um taco de beisebol nas costas de uma bicha, pela janela do carro em movimento. Foi uma selvageria. “ [Ag. Jornal do Brasil, 25-11-97; O Globo, 27-4-97]


– ANISTIA INTERNACIONAL DENUNCIA EXTERMÍNIO DE GAYS EM MACEIÓ

A Anistia Internacional incluiu na categoria de Urgent Action a denúncia de execuções extrajudiciais de três homossexuais de Alagoas, José Miguel dos Santos, 18 anos, Husles Souza Santos e outro não identificado. Aos 10-6-97 as travestis Aleska e Fabiana foram conduzidas à 2a DP da Polícia Civil onde foram torturadas barbaramente por três policiais sob alegação de não terem pago o pedágio à polícia. Foram forçados a limpar a delegacia, inclusive privadas imundas. [Anistia Internacional, Urgent Action 236/97, AMR, 19-19-97 de 25-7-97]

– GANGUE ATACA HOMOSSEXUAIS NO RIO

Uma gangue de rapazes jovens de classe média, com noções de artes marciais, está sendo investigada pela polícia como suspeita de ser a responsável pelos ataques a homossexuais freqüentadores de bares gays em Botafogo. No mês de julho/97, segundo denúncia do Grupo Arco Íris, 15 gays foram vítimas de agressões, dos quais 7 registraram queixa na delegacia. Dois deles, G, 47 anos, funcionário de Recursos Humanos de uma empresa da Zona Sul, e o garçom M, 24, foram atacados a socos e pontapés na Rua Voluntários da Pátria, na madrugada de 29-7, ao sair do Bar Jumping Jack, na Rua Real Grandeza. Segundo as vítimas, os agressores usavam roupa preta, tinham entre 15-18 anos, cabelo cortado à máquina. O ator F, 26 e o estudante I, 28, ao tentarem socorrer as vítimas, também foram espancados, escapando num táxi. Em maio do mesmo ano, o fotógrafo P, 32 anos, e o operador de telemarketing, R, 23, foram espancados também por um grupo de rapazes na mesma localidade. Apesar do registro de diversas queixas, não houve nenhuma investigação, declarou o presidente do Arco Íris, Cláudio Nascimento. [Correio Popular, Campinas, 8-7-97]

– TRAVESTI QUEIMADO VIVO EM S.PAULO

O travesti Paulo Sérgio de Jesus, 23 anos, dormia com outros colegas num colchão na passarela da Rua Avanhadava, bairro da Boa Vista, SP, quando rapazes de dentro de um Passat branco, jogaram álcool em seu corpo e atearam fogo. O travesti foi encaminhado à Santa Casa de Misericórdia, onde corre risco de vida. [Correio Brasiliense, 17-10-97]

– DISQUE DENÚNCIA RECEBEU 71 CHAMADAS DE VIOLÊNCIA ANTI-GAY

O Grupo Atobá, do Rio de Janeiro, recebeu pelo telefone 021-3320787, 71 denúncias de maltratos contra homossexuais, entre elas, a do diretor do próprio grupo, Daniel Pinheiro, que ficou com fraturas nos braços e costelas ao ser agredido por dois “carecas” no Realengo (zona Oeste do RJ). Outro gay denunciou ter sido agredido por policiais do exército que policiavam o Monumento dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, e que para humilhá-lo, obrigaram-no a fazer sexo oral numa travesti, levando uma coronhada no joelho. [Folha de S.Paulo, 13-8-97]

– PROFESSOR DE ARTES MARCIAIS NÃO ACEITA ALUNO GAY

Hélio Gracie, 84 anos, Mestre de Jiu-jítsu, declarou nas Páginas Amarelas: “Homossexualismo é uma doença, uma fraqueza que eu abomino, mas não posso condenar ninguém por ser fraco ou ter um defeito. Alguns alunos eu só descobri que eram homossexuais depois. Mas os que eram não se manifestavam como tal. Se tivessem se manifestado, eu rifava: dispensaria o aluno.” [Veja, 8-10-97]

– MÃE EXPULSA FILHO HOMOSSEXUAL DE CASA

EJSS, 17 anos, morador em Recife, denunciou que sua mãe o expulsou de casa após surpreendê-lo com o namorado, insultando-o e ameaçando-o de morte. Sem meios de se sustentar, mudou-se para Salvador para tentar arranjar emprego recebendo apoio do GGB. [Registro de Queixas de Violência e Discriminação, Arquivo do GGB, 2-4-97]

– PAI DESERDA FILHO HOMOSSEXUAL

Aos 26-4-97, o homossexual T.A.S., 17 anos, residente em Salvador, BA, após uma discussão doméstica, sua mãe e irmã telefonaram a seu pai revelando que o jovem freqüentava boates gays e que era homossexual. Seu pai declarou: “Você morreu para mim, a partir de agora não pagarei mais colégio particular, nem cursos de inglês: você escolheu, então fique com os viados!” O jovem disse ser obrigado a ficar trancado no quarto para não ouvir piadinhas e agressões verbais de seus familiares. [Registro de Queixa de Discriminação Anti-Homossexual, Arquivo do Grupo Gay da Bahia, 29-4-97]

– CRENTES DISCRIMINAM HOMOSSEXUAIS EM OUT-DOOR

O Diácono José Roberto Martins, da Assembléia de Deus, espalhou pelas principais avenidas de Maceió uma série de out-doors com os dizeres: “Homossexualismo é pecado!”[Tribuna de Alagoas, 7-1-97]

– TENENTE É PRESO POR INTERPRETAR HOMOSSEXUAL.

Carlos Machado, 31, tenente-dentista da Aeronáutica, foi preso por 15 dias por ter representado o papel de homossexual na peça Alta Vigilância de Jean Genet e por ter tirado foto na praia ao lado do uniforme militar. [Folha da Tarde, 4-2-97]

– MINISTÉRIOS EVANGÉLICOS RECUPERAM HOMOSSEXUAIS


A Assembléia de Deus divulga a existência de 6 Ministérios dedicados à recuperação de homossexuais, dirigidos pelo Pastor Carlos Henrique e Maurício César da Silva. Tais entidades baseiam-se na atuação internacional centralizada pelo grupo Exodus, dos Estados Unidos. A Associação Norteamerica de Psicologia condena essas tentativas de “curar” homossexuais [Folha de S.Paulo, 20-4-97]

– GAY E LÉSBICA BARRADOS NA IGREJA

O Chanceler da Cúria Metropolitana de S.Paulo, Cônego Antônio Trivinho e o Vigário Geral da Arquidiocese, D. Antônio Gaspar, negam o casamento religioso a Carlos José de Sousa e Lurdes Helena Moreira, sob alegação de terem provocado pernicioso escândalo ao se declararem gay e lésbica. Mesmo após terem concluído o curso de noivos e terem pago as taxas da cerimônia, a Cúria proibiu a realização do ato. [Jornal da Tarde, 13-3-97; Folha SP, 21-3-97]

Lesbofobia: violência anti-lésbica

– LÉSBICA É ESTUPRADA E HUMILHADA PUBLICAMENTE POR POLICIAL

Denúncia do Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Ceará, Deputado Mário Mamede: aos 5-1-97, um agente do Sistema de Segurança Pública do Ceará prendeu a jovem FLCV, 19 anos, que na ocasião portava um pequeno canivete tipo chaveiro, quando passeava de bicicleta com sua amiga, sofrendo a mais vil das humilhações, sendo estuprada dentro da 24a DP pelo investigador de polícia Sebastião Alves, onde foi obrigada a praticar sexo oral, vaginal e anal com o mesmo, ficando a jovem com graves seqüelas físicas e psicológicas. Além das sevícias sexuais, o policial percorreu diversos bares de Fortaleza, exibindo a vítima e divulgando que a mesma era lésbica e mantinha relação homossexual com a adolescente NNSM, 17 anos. O pai e ex-noivo da menor foram à Delegacia onde declararam que a vítima era uma vagabunda e tinha seduzido sua filha. [Ofício n.0086/97, Assembléia Legislativa do Ceará; Ofício 024/97 da Executiva do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua ao Ministro da Justiça, Nelson Jobim]

– LÉSBICAS VÍTIMAS DE DISCRIMINAÇÃO

De acordo com denúncia do Coletivo de Feministas Lésbicas de S.Paulo, através do Projeto Felipa de Sousa de Orientação Jurídica para Lésbicas Vítimas da Violência e Discriminação, em S.Paulo, entre Agosto/96-Agosto/97, foram registrados 21 casos caracterizados de lesbofobia, incluindo as seguintes ocorrências: ameaça de perda da guarda das filhas no processo de divórcio; pai leva filha de lésbica para exterior; lésbica ameaçada de expulsão de casa; lésbica ameaçada de ter sua homossexualidade revelada num processo judicial; lésbica agredida fisicamente por um membro da família; lésbica obrigada por irmão, de quem é dependente, a fazer tratamento psiquiátrico; lésbica discriminada no trabalho, é forçada a pedir demissão; lésbica impedida de visitar parceira doente no hospital; lésbica ridicularizada em sala de aulas em S.Paulo; lésbica discriminada num bar por manifestar carinho para companheira; lésbica ameaçada de violência física pela família de sua namorada; gerente de hotel em SP impede a montagem de exposição de artigos sobre lesbianismo durante o II Encontro Nacional de Feministas sobre a Violência contra a Mulher; lésbica é extorquida para não ter sua homossexualidade revelada à família. [Fonte “Lésbicas, gays e a legislação.” Coletivo de Feministas Lésbicas de S.Paulo, 1997]

– EMPRESA DISCRIMINA LÉSBICA

A promotora de vendas Sueli de Jesus A. Silva, 36 anos, foi demitida do emprego na Indústria de Biscoitos Aymoré e nos Supermercados EPA, de Belo Horizonte, depois de ter sido tachada de sapatão. Há dois anos ela não consegue emprego e sobrevive graças a ajuda de amigos. Tudo começou a partir de uma fofoca de que teria agarrado uma menina na porta do Palácio das Artes, numa festa de fim de ano da empresa. Aí o gerente dos supermercados divulgou que ela era lésbica. Sueli entrou com processo na 7a Vara Civil do Fórum Lafayete, ganhando a causa na primeira instância. [Jornal do Brasil, 15-12-97]

Golpes & Ameaças

– GAYS E LÉSBICAS SÃO VÍTIMAS DO GOLPE BOA NOITE CINDERELA

Até setembro/97 já tinham sido registrados mais de 20 casos de vítimas do golpe “boa-noite cinderela”, em que rapazes de programa e marginais colocam sorrateiramente no copo de bebida de homossexuais, substâncias psicotrópicas e soníferos, praticando a seguir roubos e violência. O mesmo golpe já foi aplicado em Campinas, Rio, Belo Horizonte, Salvador. [O Globo, 21-9-97]

– INTERNAUTA PREGA ESPANCAMENTO E MATANÇA DE HOMOSSEXUAIS

Um estudante da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, utilizando o pseudônimo de Rancora, divulgou diversas mensagens ultra-violentas contra os homossexuais e o movimento gay: “Estou criando um grupo anti-gay no país. Eu darei todo tipo de ajuda e até mandarei dinheiro se você se propuser a matar os gays. Quero representantes no Rio, S.Paulo, BH, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife e Fortaleza. Estou de precisando gente para meter porrada nos infelizes homossexuais e causar pânico no meio deles. Preferencialmente bichas da cor negra. Pretendo também incendiar a sede do Grupo Gay da Bahia. Os baianos geralmente são negros e por isso merecem apanhar dobrado…” Em outro Email, de 3-6-97, Rancora declarou: “Não é difícil espancar um gay. O ideal para espancar um gay é sair com pelo menos três amigos: use algum tipo de capuz para não ser reconhecido e leve um porrete. Quando ele estiver passando por alguma rua deserta, você o segura e o põe dentro do carro tipo furgão. Então vai até uma estrada para foder com o infeliz. Nunca deixe que perceba quem é você, pois do contrário terá que matá-lo para não ser denunciado. Dê chutes nele, na cabeça, barriga, saco escrotal e na espinha. Não tenha medo de aleijá-lo. Você estará fazendo um bem social. Deixe então o corpo do cara no mato sem que ninguém te veja. Se matá-lo, afunde o corpo num rio. E não esqueça de tirar as vísceras para o infeliz poder afundar e ninguém encontrá-lo. Ninguém deve te ver e saber quem você é!” A Reitoria da UFJF abriu sindicância mas até dez/97 ainda não revelou os resultados. [Jornal do Brasil, 19-8-97]


– PRESIDENTE DO GRUPO GAY DE ALAGOAS RECEBE AMEAÇA DE MORTE

Marcelo Nascimento, Presidente do GGA, um dos coordenadores do Fórum Permanente contra a Violência, recebeu ameaças de morte através de uma ligação telefônica, onde disseram: “’É melhor você e o advogado Pedro Montenegro se afastarem das investigações dos assassinatos de homossexuais porque os policiais inocentes não estão gostando disso. Nós sabemos onde vocês moram e em reunião os policiais decidiram fuzilá-los.” [Gazeta de Alagoas, 17-6-97]

Discriminação nos órgãos governamentais

– PRESIDENTE DO PFL E DEPUTADOS INSULTAM HOMOSSEXUAIS

“Deputados promovem algazarra ao votar proposta de casamento gay ” foi a manchete de vários jornais que registraram o preconceito de nossos parlamentares frente ao projeto da Deputada Marta Suplicy, onde piadas e risadas eram incompatíveis com o ambiente. O Deputado Inocêncio Oliveira (PFL/PE) levou o plenário à loucura quando subitamente começou a esbravejar contra a aprovação do que chamava de “casamento gay”, declarando: “Este projeto é uma pouca-vergonha, um desrespeito à Casa, é uma aberração contra a natureza!” gritava, embalado pelos aplausos e urros dos deputados que ocupavam quase todo o plenário. Enquanto isto, o Deputado Severino Cavalcanti (PPB/PE), o mais ardoroso opositor à proposta, elogiava o Presidente do PFL: “Inocêncio, você é a glorificação do homem de bem e meu candidato ao Senado!” O Deputado Nilson Gibson (PSB/PE) gritava: “Vamos votar é agora mesmo este projeto, queremos saber a verdade da Casa, quem é quem nesta casa”, pregando uma espécie de caça às bruxas e insinuando que os deputados que votassem a favor do projeto seriam homossexuais, enquanto o deputado Nelson Marquezzeli (PTB/SP) repetia aos gritos “baitola”, “baitola”. Ao defender o projeto de Marta Suplicy, o deputado Luiz Eduardo Magalhães (PFL/BA) recebeu de Inocêncio Oliveira o comentário depreciativo: “O Luiz Eduardo é mais evoluído do que eu, porque nasceu em Salvador. Eu sou de Serra Talhada!”[Jornal do Brasil, 6-12-97; A Gazeta, Vitória, 6-12-97]

– HOMOSSEXUAIS CONTINUAM DISCRIMINADOS NAS FORÇAS ARMADAS

Segundo o Capitão de Mar e Guerra Wellington Liberatti, diretor de relações públicas da Marinha, “a política de exclusão de homossexuais destina-se a preservar, promover e proteger valores e interesses legítimos das Forças Armadas e não há a mais remota razão para qualquer revisão desta conduta.”[O Globo, 11-5-97]

– DETENTO HOMOSSEXUAL É PUNIDO NO PARANÁ POR BEIJAR AMIGO

O Conselho de Prisão de Curitiba puniu com 10 dias de isolamento e a suspensão da visita ao preso José Antônio G. Silva, 38, por ter se despedido de seu companheiro com um beijo. Antes havia-lhe sido negado o encontro íntimo com o mesmo. [O Estado de S.Paulo, 14-2-97; Jornal do Estado do Paraná, 3-3-97]

– CONSULADO NORTE-AMERICANO DISCRIMINA TURISTAS GAYS

O Vice-Cônsul do Consulado dos EUA, Robert Olsen, demitido em l994, denunciou existirem ordens superiores orientando a negar visto a negros, chineses, descendentes de árabes e homossexuais. “Rapazes solteiros, de cabelo comprido e brinco na orelha tinham poucas chances.” [Veja, 21—5-97]

– CINCO MARINHEIROS GAYS DO ESPÍRITO SANTO SÃO PROCESSADOS

O cabo Rildo Duarte e quatro grumetes acusados pelo Ministério Público Militar de usarem as dependências da Escola de Aprendizes do Espírito Santo para a prática de atos homoeróticos, foram enquadrados em processo por desrespeito ao Código Penal Militar. “O comportamento homossexual é incompatível com os valores de hierarquia, disciplina e moralidade das Forças Aramadas”, define o Ministério da Marinha. A Juíza Maria Lúcia Karam, da 2a Auditoria Militar do RJ, rejeito a denúncia mas o Ministério Público Militar recorreu ao Superior Tribunal Militar. [O Dia, 9-9-97; O Globo, 17-9-97]

– POLÍCIA NÃO INVESTIGA ASSASSINATO DE HOMOSSEXUAL

O gay Sidkley Passos dos Santos, (Brunela), 19 anos, residente em Lobato, Salvador, foi barbaramente torturado, castrado, e encontrado morto com um pedaço de madeira dentro do ânus, e apesar dos ofícios de denúncia enviados pelo Grupo Gay da Bahia à Secretaria de Segurança Pública do Estado, não constou registro policial na Delegacia da área onde foi assassinado nem foram realizadas diligências para esclarecer o homicídio. [Ofício do GGB à Secretaria de Segurança Pública de Salvador, 14-4-97]

Travestifobia: violência contra travestis

– TRAVESTI ATROPELADA É ESPANCADA NA DELEGACIA

A travesti Jéssica Mastroiani Fife, 22 anos, denunciou junto ao GGB em reunião da Associação de Travestis de Salvador (ATRAS) que sofrendo um atropelamento na orla marítima de Salvador e perdendo os sentidos, foi colocada numa viatura policial e em vez de ser levada para o Pronto Socorro, conduziram-na à 7a DP onde foi espancada, ficando com várias escoriações pelo corpo. Segundo Lena Oxxa, Coordenadora da ATRAS, “as travestis de Salvador constantemente são violentadas por policiais, levadas para praias distantes, espancadas e obrigadas a beber água salgada.”[Tribuna da Bahia, 28-11-97]


– GUERRA AOS TRAVESTIS EM GOIÂNIA

O Primeiro Distrito Policial com apoio do Serviço Reservado da Polícia Militar de Goiânia prendeu 8 travestis acusadas de vadiagem e de estarem fazendo estripulias na Avenida Parnaíba. O Delegado Roberto Neme disse que “não pretende dar trégua aos travestis e disse ter recebido ordem do Diretor Geral de Polícia Civil, Dr.Hitler Mussolini (sic!) para prender também os michês e rapazes que ganham dinheiro para fazer programas com homossexuais. O tenente-coronel disse que tinha ordens de tirar de circulação todos os travestis que permanecem nas proximidades da Praça e ao longo da Avenida Anhanguera. [Diário da Manhã, 5/6-2-97]

– VINTE TRAVESTIS PRESOS EM CURITIBA

A Delegacia de Ordem Social de Curitiba realizou na madrugada de 7-3 a Operação Profilaxia, no centro da cidade, ocasião em que foram detidos 20 travestis e encaminhados ao Juizado Especial Criminal. [Jornal do Estado, 8-3-97]

– GUARDA MUNICIPAL ABRE GUERRA AOS TRAVESTIS NO RJ

Por determinação do Prefeito Luiz Paulo Conde, a Guarda Municipal deflagra uma série de operações visando reprimir a prostituição: ”os travestis e prostitutas flagrados serão detidos e encaminhados à 9a DP”. [O Globo, 25-3-97; 26-3-97)

– SEIS TRAVESTIS SÃO DETIDOS EM CUIABÁ

Policiais da Delegacia de Costumes detiveram seis travestis que faziam ponto nas Avenidas Tenente Coronel Duarte (Prainha) e na 15 de Novembro (Porto). Foram detidos 6 travestis e levados para a DP Metropolitana de Cuiabá. [Folha do Estado, Cuiabá, 19-3-97]

– TRAVESTI SOFRE ATENTADO EM CURITIBA

A travesti Yasmin Borboleta, (Ronaldo Vidal, 30 anos, foi atingida com um tiro no peito, em frente a Praça do Ouvidor Pardinho, no bairro do Rebouças, em Curitiba, acusando como autores do atentado rapazes que estavam dentro de um Gol branco. [O Estado do Paraná, 22-8-97]

– POLÍCIA AFASTA TRAVESTIS DA RUA NA VISITA DO PAPA

Durante a última visita de João Paulo II ao Rio de Janeiro, a PM carioca retirou travestis e prostitutas de Copacabana e da Glória, ameaçando os desobedientes com prisão durante o período da visita papal. A travesti Dandara, 22 anos, perguntou: “Vou ter de usar roupa de homem para sair na rua?” [Correio Popular, Campinas, 2-10-97]

– TRAVESTI BALEADA EM BAURU, SP

O travesti Adilson Miranda Jackson Jr, 18, afirmou que o PM Clayton Thomaz Ferreira, 24, foi o autor do disparo que atingiu suas pernas e mão direita no dia 22-3 próximo ao Cemitério da Saudade. A vítima alega que o policial recusou pagar os R$10, 00 pelo programa. O PM para despistar o crime, trocou o cano da arma. O PM ficou em prisão administrativa no CPA/I-9. [Jornal da Cidade, Bauru, 18-4-97]

– TRAVESTI LEVA TIRO EM SP

A travesti Amanda, 22 levou três tiros no ombro e peito, de um cliente, armado com uma 765 automática, na Avenida Indianópolis em out/97 e outra travesti, Bárbara, levou um tiro na perna de um cliente que não queria pagar pelos serviços sexuais. [Folha de S.Paulo, 23-11-97]

– CASA DE TRAVESTI É CRIMINOSAMENTE QUEIMADA EM GOIÂNIA

Um incêndio ocorrido na Rua Jaó, 61, Vila Coronel Cosme, em Goiânia, destruiu completamente a casa da travesti GMS, “Gláucia”, sendo acusado o marginal Amarelinho como o principal suspeito de ter ateado fogo, pois tinha prometido roubar o travestis, arrombando a porta da casa horas antes. [Diário da Manhã, 5-5-97]

– MORADORA É PROIBIDA DE RECEBER TRAVESTIS NO APARTAMENTO

“A enfermeira Adalgisa de Santana Ribeiro, militante da organização não governamental Água Viva, que presta assistência a travestis e portadores de HIV/Aids, promove reuniões de esclarecimento em sua casa. O síndico de seu prédio, no Catete, RJ, a denunciou ao proprietário do apartamento e distribuiu circular entre os condôminos, dizendo que ela recebia pessoas estranhas que estavam comprometendo a segurança dos moradores. A enfermeira teve de contratar um advogado para defender-se das acusações.” [O Globo, 21-9-97]

– TRAVESTIS DE SALVADOR SÃO VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA POLICIAL

Nos Arquivos do Grupo Gay da Bahia constam os seguintes Registros de Queixa de Violência e Discriminação de que foram vítimas as travestis: Cláudia Horrana, 23 anos, permaneceu mais de duas horas dentro do xadrez de uma viatura policial (n. 1818) sendo abandonada numa estrada deserta, altas horas da madrugada, simplesmente porque estava fazendo pista na Pituba, na orla de Salvador, 8-9-97; na mesma noite, Carol Igor, 26 anos, fazendo ponto da Pituba, foi levada numa viatura para a 7a Delegacia do Rio Vermelho, onde policiais obrigaram-na a fazer sexo oral com os mesmos, extorquindo-lhe R$15, 00; Débora Cazumbar, 25 anos, foi espancada nas costas por um PM branco de 30 anos, o qual lhe deu coronhadas, disse que merecia morrer, extorquindo-lhe R$40, 00 em 21-8-97 e R$30, 00 aos 27-8-97; Fabíola, 29 anos, aos 21-8-97 declarou que policiais da viatura n.1623, roubaram-lhe R$35, 00, agarraram-na pelos cabelos e a jogaram nas pedras na Orla da Pituba, ficando com profundos cortes e cicatrizes nas pernas e uma semana após, foi novamente espancada nos rins e nádegas, levando soco no ouvido, sendo extorquida por policiais que lhe levaram um relógio e R$20, 00, 28-8-97; Gabriela, 24 anos, foi espancada por um PM num matagal nas imediações da Rodoviária de Salvador, que lhe roubou o celular e a féria da noite, ficando com uma mão quebrada, a 21-8-97; Tailane Keli, 16 anos, foi espancada nas pernas por um PM de nome José Luiz, viatura n.1628, que lhe roubou máquina fotográfica e dinheiro, a 28-8-97; Débora Rios, 18 anos, foi agredida por policiais na Pituba, os quais disseram estar se vingando por terem sido denunciados, a 4-9-97; André Sousa dos Santos, estava sentado com seu namorado na Praça da Piedade, quando um policial à paisana começou a agredi-los e com o auxílio de outro policial, os quais deram cinco tiros nos dois, levando um para a 1a.Delegacia e o outro para o Hospital Geral do Estado, sendo ainda espancado na viatura e exigiram R$5, 00 para colocar gasolina, a 6-10-97.


Insulto, difamação e propaganda discriminatória

– ARCEBISPO DE MACEIÓ OFENDE HOMOSSEXUAIS

D.Edivaldo Amaral, arcebispo de Maceió, declarou: “A união de homossexuais é uma aberração. Um cachorro pode até cheirar o outro do mesmo sexo, mas eles não tem relação. Sem querer ofender os cachorros, acho que isso é uma cachorrada! Esta é a opinião de Deus e da Igreja.”[O Jornal, Maceió, 27-6-97]

– PROFESSOR DEFENDE EXTERMÍNIO DE HOMOSSEXUAIS

O Diretor do Colégio Universitário da Universidade Federal de Viçosa, Laurindo Silva, escreveu no Boletim do Colégio que os homossexuais deveriam ser todos exterminados e jogados dentro de uma cova e cobertos com água ráz para não sobrar nem os ossos. [Informação prestada por um professor da UFV, nov/97]

– JORNALISTA DIZ QUE GAYS SÃO REPUGNANTES

O jornalista José Augusto Berbert, do jornal A Tarde, “o maior do Norte e Nordeste”, que por duas vezes escreveu: “Mantenha Salvador limpa, mate uma bicha todo dia!”, agora declarou: “Num debate com estudantes, pediram que eu definisse os invertidos com uma só palavra: são repugnantes, respondi. E fui aplaudido de pé!” Comentando o filme Mutação, disse que “se para acabar com a Aids, descobrissem pessoas com genes modificados e os usassem contra os boiolas, poderia acabar com as bichas mas provavelmente surgiria coisa ainda pior, embora seja difícil se imaginar o que pode ser pior que os falsos-ao-corpo.”[A Tarde, 8-7-97]

– VEREADOR ACUSADO DE SER GAY É DISCRIMINADO

Em Pedrinhas, Sergipe, o vereador Irecê Messias, 31 foi vítima de calúnia, perseguição e discriminação sexual. Influente família local, Alves Andrade, ligada ao PFL, fez proposta de suborno a um rapaz da cidade para manter contato mais íntimo com o vereador a fim de descobrir eventuais amizades homossexuais para dar publicidade ao escândalo. Chegaram a divulgar a calúnia de que o vereador usava a associação de moradores para fazer reuniões de um grupo de homossexuais e praticava prostituição infantil. [CINFORM, Aracaju, 30-6-97]

– CARDEAL DO RJ DIZ QUE HOMOSSEXUAIS TEM ANOMALIA

O Cardeal-arcebispo do RJ, D. Eugênio Salles, afirmou que ”os homossexuais têm anomalia e a Igreja é contra e será sempre contra o homossexualismo.” O Grupo 28 de Junho, de Nova Iguaçu registrou queixa na 52a Delegacia de Polícia de Nova Iguaçu (RJ) contra o Arcebispo que se auto-intitula “xerox do Papa”. [Protocolo E-09/7344/1052/97; SESP-CPB – 52o DP; Jornal do Brasil, 10-8-97;O Dia, 1-10-97; Jornal do Grande ABC, 2-10-97]

– DEPUTADO PASTOR DIZ QUE HOMOSSEXUALISMO É IMORALIDADE

O deputado H.Takayama (PFL/PR) pastor da Assembléia de Deus, declarou: “O homossexualismo é uma anomalia e a Casa de Leis do Paraná não pode descer a este nível tão baixo e aprovar esta imoralidade que por si só, é inconstitucional e choca-se com a Constituição Maior contida nas Sagradas Escrituras que condena tais atos de espíritos imundos e das profundezas das trevas.” Num cochilo da oposição, os deputados aprovaram a moção de repúdio ao Projeto da Deputada Marta Suplicy, moção que em dias posteriores foi rejeitada. [Folha de Londrina, 16-4-97]

– VEREADOR EVANGÉLICO CONSIDERA IMORAL UNIÃO CIVIL

O vereador evangélico Paulo Emílio (PSD/Praia Grande/SP) apresentou requerimento em repúdio ao Projeto de Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo sexo. “Reconhecer legalmente tais uniões significará a concordância da sociedade brasileira com situações anormais e imorais.”[Gazeta da Praia Grande, 20-4-97]

– VEREADORES DE BAURU REPUDIAM UNIÃO HOMOSSEXUAL

Por 16 votos a 4, os vereadores de Bauru, SP, aprovaram a moção de protesto ao projeto de lei sobre a parceria civil registrada. O autor da moção, o vereador Luis Carlos Vale (PPB) afirmou que a união de homossexuais infringe a Lei natural da vida. [Jornal da Cidade, Bauru, 7-5-97]

– PSIQUIATRA DIZ QUE HOMOSSEXUALISMO É DOENÇA

O Psiquiatra pernambucano Lamartine Holanda disse num programa de televisão “ o homossexualismo é doença e deve ser tratado”, em total contradição com o Conselho Federal de Medicina que desde l985 retirou a homossexualidade da classificação de doenças. [Jornal do Commércio, 16-3-97]

– PARTIDO CRISTÃO FAZ MANIFESTO CONTRA UNIÃO HOMOSSEXUAL

O Presidente do Partido Progressista Cristão, Eurípides Farias, no Manifesto do PPC, declarou que “casamento de macho com macho é semente de satanás!” [Correio Brasiliense, 28-3-97]

Contra a liberdade de movimento, associação e trabalho

– PM PRENDE CABO QUE NAMORAVA GAY

Agentes policiais da ROTA prenderam em Campo Belo, zona sul de SP, o cabo Eduardo Aparecido Teixeira, do 12o Batalhão da PM, e o Ajudante geral Francisco dos Santos Limeira, ambos de 30 anos, após um morador do local ter denunciado à polícia que os dois trocavam carícias na rua. Ambos foram detidos pela Rota 09106 e levados ao 27o Distrito, Ibirapuera, onde a delegada registrou ocorrência, obrigando os dois a se apresentar em juízo. [Diário Popular, 15-10-97]


– TRAVESTI É IMPEDIDA DE ANUNCIAR NO JORNAL A TARDE

A Travesti Lena Oxxa, atual coordenadora da Associação de Travestis de Salvador, foi impedida de anunciar na coluna de “encontros” do jornal A Tarde, sob alegação de que uma Circular Interna da Redação proibiu qualquer anúncio que caracterizasse relações homossexuais. [Queixa registrada na 1a Delegacia de Polícia de Salvador, 29-12-97]

– GAYS SÃO EXPULSOS DE BAR

André Vítor e um grupo de homossexuais da cidade Balneário Camboriú, SC, foram obrigados a retirar-se de uma boate na cidade “para evitar que esse espaço se tornasse conhecido como boate gay”. [Revista Sui Generis, n.21, 1997]

– BANCOS DISCRIMINAM GAYS

O bancário A., 49 anos, de Campinas, SP, declarou que a chefia do banco nunca aceitou sua homossexualidade. Apesar de excelente funcionário, nunca foi promovido, sendo-lhe proibido atuar no atendimento ao público por considerarem seu comportamento efeminado. O Sindicato dos Bancários de Campinas recebeu proposta para que os casais homossexuais sejam beneficiados com os mesmos direitos dos casais heterossexuais. Segundo o Advogado do Sindicato dos Bancário de Campinas, Eduardo S. Matias, o Sindicato teve de interferir no caso de um gay que estava sendo ameaçado de demissão por pintar as unhas e ter comportamento afetado. [Correio Popular, 14-9-97]

– QUARENTA DETIDOS EM SAUNA GAY EM SÃO PAULO

A Polícia Civil de S.Paulo, distrito de Perdizes, invadiu uma sauna gay à Rua Doutor Cândido Espinheira, 758, neste mesmo bairro, seqüestrando vídeos, lubrificantes e outros objetos eróticos. Apenas um rapaz de programa presente tinha antecedentes criminais. A maioria dos presentes eram casados. [O Estado de S.Paulo, 13-3-97]

– VIGILANTE É DEMITIDO POR SER HOMOSSEXUAL

O vigilante Carlos Augusto Félix, 32 anos, foi demitido da Empresa Brasileira de Segurança de Curitiba, por ser homossexual e portador de HIV. Entrou na justiça e conseguiu uma indenização de R$7 mil: “Foi uma vitória parcial pois eu merecia muito mais pela humilhação que passei.” Ele pretendia receber no mínimo 30 mil. O Diretor da empresa declarou: “Fora do trabalho ele poderia fazer o que quiser com seu corpo, até colocar o revólver e o coldre lá”. [Folha de Londrina, 5-8-97]

– GAYS PAGAM PEDÁGIO EM MACEIÓ PARA NÃO MORRER

Segundo denúncias do Presidente do Grupo Gay de Alagoas, Marcelo Nascimento, Policiais Civis estão cobrando R$10, 00 dos homossexuais que freqüentam a Av. Duque de Caxias e Praia do Sobral, sofrendo violentas surras e prisão com algemas os que recusam pagar. Policiais usam carros particulares para a realização das blitz. O Presidente do GGA denuncia que as representações enviadas à Secretaria de Segurança Pública não são atendidas. [Gazeta de Alagoas, 22-6-97]

– POLICIAIS EXPULSAM CASAL GAY DE PARQUE EM BELO HORIZONTE

Dois homossexuais dirigiram-se ao PROCOM-BH para reclamar dos policiais que tomam conta do Parque Municipal mandaram-nos se retirar do Parque simplesmente por serem gays e estarem conversando em local isolado. [Hoje em Dia, 3-5-97]

– SEGURANÇA IMPEDE GAY DE ENTRAR NA PRÓPRIA CASA

Em Salvador, no Conjunto Sussuarana, Bloco I, o homossexual Roque da Silva, 35 anos, comerciário, foi impedido de entrar em sua própria casa e ameaçado com arma em punho por um segurança do condomínio, por estar acompanhado de outro gay. [Registro de queixa de Discriminação Anti-Homossexual, Arquivo do GGB, 30-4-97]

– HOMOSSEXUAIS SÃO OS MAIS DISCRIMINADOS NO TRABALHO

Segundo denúncia da TV-Globo, em Pernambuco, os homossexuais são as maiores vítimas da discriminação entre candidatos em exames de seleção para empregos. Em Belo Horizonte, segundo a Consultora em Recursos Humanos, Elizete Araújo, pesquisa realizada em l994 comprova que mais de 20% das empresas não contratam homens solteiros acima de 35 anos – “uma objeção velada contra o homossexual”. [Jornal Nacional, TV-Globo, 21-4-97; Estado de Minas, 5-10-97]

– GAYS HUMILHADOS EM BOATE NA BAIXADA FLUMINENSE

Aos 4 de agosto de l997, vários policiais civis e militares invadiram a boate gay Por Opção, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense e levaram detidos 102 homossexuais, obrigando alguns dos presentes a fazer sexo oral com os policiais. Os freqüentadores foram forçados a sair para a rua de mãos dadas, sob uma sessão de piadinhas e xingamentos.” [O Globo, 21-9-97]

– MILITANTE GAY É DISCRIMINADO EM SELEÇÃO PROFISSIONAL

Paulo César Vieira, 36 anos, costureiro, militante do Grupo 28 de Junho, ao se inscrever num emprego para a vaga de costureiro na Firma Babbo Modas, R.Carolina Machado 258, Madureira, RJ, ao chegar sua vez de ser atendido, o gerente da firma falou na frente de todos presentes: “Agora você saia da fila porque não admitimos pessoas da sua espécie.” [Denúncia enviada ao Arquivo do GGB por Eugênio Ibiapino, do Grupo 28 de Junho de Nova Iguaçu, RJ, 10-9-1997


78. Seguindo ainda o trabalho espetacular do Professor Doutor Luiz Mott, feito em 1998, convém conferir o seguinte trecho do seu artigo, bastante esclarecedor quanto á violência que se comete nesse país contra seres humanos, em total afronta ao princípio constitucional de dignidade da pessoa humana, verbis:

“ Assassinato de homossexuais no Brasil – 1997

Conforme antecipamos, o Brasil é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais. O Grupo Gay da Bahia dispõe de um dossiê onde estão documentados 1600 homicídios contra gays, lésbicas e travestis no Brasil entre 1980-1997. Para 1997 dispomos de informação documentada de terem sido assassinados 130 homossexuais em nosso país – um aumento de 4 casos em relação a 1996. Tais números certamente são inferiores à realidade, pois não cobrem todo o território nacional, faltando, p.ex., dados sobre o Maranhão, Piauí, Paraíba, Espírito Santo e outros estados da região norte. Manteve-se a mesma trágica média: a cada 3 dias é assassinado um homossexual no Brasil, destacando-se nesta listra macabra os estados de S.Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Alagoas.

Homossexuais Assassinados no Brasil (1997)

ESTADO GAY LÉSBICA TRAVESTI TOTAL

Alagoas 3 1 7 11

Amazonas 4 – 1 5

Bahia 11 – 1 12

Ceará 4 – – 4

Distrito Federal 4 – – 4

Goiás 5 – – 5

Minas Gerais 2 – 2 4

Mato Grosso – – 1 1

Pernambuco 7 – 2 9

Pará 3 – 1 4

Paraná 6 – 3 9

Rio de Janeiro 12 5 3 20

Rio Grande do Norte 1 – – 1

Rio Grande do Sul 4 – – 4

Santa Catarina – 1 1

Sergipe 2 – 3 5

São Paulo 14 – 17 31

TOTAL 82 6 42 130

Quanto à orientação sexual das vítimas, nota-se que as lésbicas representam o grupo menos atingido pelos homicídios – diferentemente do que acontece na sociedade global-heterossexual, onde as mulheres são as principais vítimas de violência física e morte. A menor visibilidade e o estilo de vida mais recatado da subcultura lésbica, expõe-nas menos a situações de risco – exatamente o contrário do que ocorre com as travestis, que por viverem em ambientes mais violentos, como são as pistas onde fazem trottoir, tornam-se alvo mais fácil de tais crimes. Proporcionalmente as travestis são as principais vítimas dos homicídios homofóbicos pois representando nacionalmente número inferior a 8 mil indivíduos, chegaram a 40 as travestis assassinadas em 1997 – enquanto foram 80 gays assassinados, para uma população estimada em mais de 16 milhões indivíduos.

Quanto à idade das vítimas, o mais jovem homossexual assassinado tinha 15 anos e o mais velho, 85, sendo que 5% deles eram menores de idade. A faixa etária mais vitimada está entre os 25-35 anos – 31%. A idéia de que são sobretudo os homossexuais mais velhos as vítimas mais constantes de tais homicídios é falsa pois 86% dos mortos tinha menos de 50 anos.

Os homossexuais assassinados ocupavam mais de trinta profissões diferentes, de rico empresário a mendigo – o que comprova a presença da homossexualidade em todas as classes sociais. 28% das vítimas eram profissionais liberais ou funcionários públicos, seguidos de 19% de gays que viviam da prestação de serviços: autônomos, garçons, secretários, etc. Embora via de regra mais de 90% das travestis no Brasil sejam profissionais do sexo, somente em 7 casos a notícia do jornal indicava tal ocupação. Seis dos mortos eram cabeleireiros, categoria portanto muito exposta à criminalidade homofóbica. Apesar das religiões cristãs condenarem a homossexualidade e as religiões afro-brasileiras se posicionarem de maneira hipócrita em relação à esta questão, entre as vítimas, seis ministros religiosos, dos quais, dois pais-de-santo. Entre as lésbicas, destaque para uma Vereadora de Sergipe, vítima do ciúme assassino de seu marido.

41% dos crimes foram praticados com arma de fogo – o que torna tais ocorrências mais graves, pois o assassino andava armado e em muitos casos houve premeditação do delito. 28% destes homossexuais morreram vítimas de objetos perfuro-cortantes: facas, peixeiras, facões, garrafas quebradas e cacos de vidro, machados. 15% das mortes foram decorrentes de múltiplas causas: tortura, espancamento, asfixia, mutilações, pedradas, pauladas, coronhadas. 9 gays foram estrangulados e um teve sua cabeça decepada. Tais crimes de ódio caracterizam-se pela extrema violência, seja pelo grande número de golpes desferidos contra a vítima, pela crueldade do ferimento, seja pelo concurso de diversos modos de violência. Por trás de muitos destes crimes, mais do que a simples motivação de matar para roubar (latrocínio), ou “queima de arquivo” (para impedir de ser denunciado pela vítima), evidencia-se claramente a conotação homofóbica da agressão, o imenso ódio que o “machão” tem do “viado”, seja porque o considera “descarado”, um traidor da categoria dos machos, portanto merecedor de violência e morte, seja porque assumiu práticas sexuais e um estilo de vida que o machão gostaria de assumir mas que pela homofobia internalizada, reprime e desconta na “bicha” toda sua frustração de homossexual mal-resolvido. Na maioria dos casos o assassino manteve prévia relação sexual com a vítima – e não raras vezes, assumiu a posição passiva no ato homoerótico.


Infelizmente as notícias dos periódicos sobre os autores de homicídios contra homossexuais são raras e lacunosas. Menos de 30% dos criminosos são identificados quando do assassinato, daí a dificuldade – acrescida da má vontade da polícia – em identificar os responsáveis por tais crimes.

Aproximadamente 20% dos autores destes homicídios eram menores de idade – e mataram não para se defender do assédio sexual de parceiros mais velhos, mas por estarem imbuídos da ideologia machista que repete: “viado tem mais é que morrer!” O mais jovem assassino tinha 14 anos! O desdém e agressividade como meninos de rua costumam tratar os homossexuais quando cruzam seus caminhos, revela o grau de desprezo com que a juventude se relaciona com a homossexualidade, daí 9 destes assassinos estarem na faixa entre 14-17 anos.

Quase a metade destes assassinos tinham de 18 a 24 anos quando mataram algum homossexual (48%). Tão alta freqüência de delinqüência juvenil explica-se de um lado pela preferência de muitos gays por rapazes mais jovens, mas maiores de idade, por outro lado, pela maior curiosidade e atividade sexual dos adolescentes após os 18 anos, que munidos de sua carteira de identidade, sentem-se compelidos a explorar novos espaços e experiências relacionais

79. Delineado esse quadro de fato chocante, que expõe, apenas com dados de 1997 (notícias e estatísticas incompletas de assassinatos desse ano), o grau absurdo de violência bárbara que ainda é praticada contra pessoas, nesse país, tão só em virtude de sua orientação sexual, cumpre frisar que a procedência da presente ação representará uma ação afirmativa do Poder Judiciário, uma medida concreta que irá arrefecer o preconceito social, daí contribuindo para diminuir, efetivamente, esses números da violência.

80. Ora, se o Estado Brasileiro começar a celebrar o casamento civil de pessoas do mesmo sexo (homossexuais), como impõe a vontade constitucional e não restringe a lei, certamente que as orientações sexuais começarão a serem mais respeitadas, sendo as “discrepantes da maioria” a serem vistas como algo mais “normal”, se é que é possível ter um conceito técnico de normalidade após tantas idas e vindas no fluxo histórico e cultural da humanidade.

81. Nesse sentido, se desde 1985 o Conselho Federal de Medicina extirpou a homossexualidade do seu catálogo de doenças, sendo algo considerado “normal” com a evolução do conhecimento científico, não se justificam os aberrantes atos de violência física contra pessoas com essa orientação sexual.

82. Falando em violência, nela se pode incluir, ainda que de forma mais sutil e velada, a postura estatal de negar a celebração do casamento civil para os parceiros homossexuais, privando-os de um status jurídico conferido aos parceiros heterossexuais. Trata-se de restrição administrativa não baseada em lei e intolerável, já que pretendemos construir uma sociedade da tolerância, do respeito com a diferença e da fraternidade ao próximo.

83. Não é preciso dizer que o Poder Judiciário tem uma elevada responsabilidade social pelo conteúdo de suas decisões. Prova incontestável disso vê-se nesta ação: julgada procedente, o preconceito social diminuirá e a violência gerada pela homofobia também; julgada improcedente, infelizmente, será dada chancela definitiva à voz da exclusão e do preconceito, com a eficácia inerente à autoridade da coisa julgada. Cabe-lhe a importante missão de decidir se aceita a discriminação humana quanto a direito fundamental, inerente à cidadania, tão só em virtude da orientação sexual.

84. Saiba Vossa Excelência, portanto, que a procedência da presente ação representará uma medida adequada e necessária para a promoção do respeito ao próximo, colaborando concretamente para que vidas humanas sejam salvas, contribuindo para o escopo magno da jurisdição, que é a pacificação social. Julgada improcedente, fomentará ainda mais a proliferação do preconceito no seio social.

XI – SEGUE: O ARTIGO 1517 DO CÓDIGO CIVIL E O DIREITO CONSTITUCIONAL À FELICIDADE.

85. O artigo 1517 do código civil deve ser lido com a perspectiva de que o Estado Brasileiro só existe para disseminar a felicidade das pessoas.

86. Assim, perfilhamos da posição adotada pelo Dr. Luiz Alberto David de Araújo, eminente Professor de Direito Constitucional da PUC/SP, quando ensina:

“Não se concebe a idéia de que o Estado Moderno deva buscar caminho diferente daquele que pressupõe a felicidade de seus componentes. O homem se organiza para obter felicidade. Submete-se ao regramento do Estado, aceita suas regras, paga os impostos, limita-se, sabendo, no entanto, que os fins dessa associação só podem levar à busca da felicidade. Não foi por outra razão que o constituinte de 1988 tratou de anunciar os princípios fundamentais na Constituição Federal, inaugurando o texto, logo depois do preâmbulo.


(…)

Ao arrolar e assegurar princípios como o do Estado Democrático, o da dignidade da pessoa humana e o da necessidade da promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito, o constituinte garantiu o direito à felicidade. Não o escreveu de forma expressa, mas deixou claro que o Estado, dentro do sistema nacional, tem a função de promover a felicidade, pois a dignidade, o bem de todos, pressupõe o direito de ser feliz. Ninguém pode conceber que um Estado que tenha como objetivo a promoção do bem de todos possa colaborar para a infelicidade do indivíduo. Portanto, a interpretação constitucional leva à busca da felicidade do indivíduo, não de sua infelicidade. E, como veremos adiante, felicidade pressupõe atenção aos valores da minoria.

Portanto, a busca da felicidade será o motivo do Estado Democrático brasileiro. As regras constitucionais serão analisadas dentro desse objetivo fundamental” .

87. Postas essas relevantes considerações jurídicas, trazemos do respeitável jornal “A Folha de São Paulo” a seguinte notícia:

Gays sonham com casamento tradicional

AURELIANO BIANCARELLI

da Folha de S.Paulo

Casais heterossexuais estão se separando, o casamento ortodoxo está em crise, a família está dispensando as bênçãos da igreja. Na contracorrente, pares homossexuais estão buscando tudo isso. Querem viver juntos, formar famílias, adotar filhos e casar de papel passado. Se possível, querem subir ao altar.

Alguns se sentem bem quando saem pela noite à procura de parceiros. Pode-se lembrar que existem “dark rooms”, onde homossexuais fazem sexo no escuro sem saber com quem. Mas um universo cada vez maior da população homossexual está buscando um parceiro para dividir projetos e cuidar um do outro quando ficarem velhinhos –o mesmo que desejam os casais heterossexuais.

O tema da parada gay de hoje em São Paulo é justamente “Temos família e orgulho”. O evento pretende reunir 1,5 milhão de pessoas e se tornar a maior parada do gênero já realizada no mundo.

“Gays e famílias não são opostos”, diz Reinaldo Pereira Damião, presidente da associação da parada. A palavra família aponta para direitos de cidadania, como parceria civil, pensão, divisão de bens, diz o texto da parada. A aceitação e o respeito à homossexualidade começam na família. Ainda há registros de filhos expulsos de casa ou humilhados na escola ou no trabalho quando revelam sua orientação sexual.

Buquê de flores

Alguns vão além da luta pela união estável, até agora só conseguida na Justiça. Sonham em cuidar um do outro, em ouvir a frase “até que a morte os separe”.

O bispo Isaias Rodrigues dos Santos, 35, da Igreja Católica Ortodoxa, já celebrou quatro casamentos de parceiras lésbicas. Na fila, segundo ele, estão vários outros casais. Seu projeto –que ele diz já estar em andamento– prevê uma chácara em Atibaia, próxima a São Paulo, com toda a infra-estrutura para um casamento.

“Os casais homossexuais serão abençoados por um rito de consagração. A festa terá bufê, lembrancinhas e mesmo o buquê de flores, que será jogado para os participantes.”

O designer Kleber, 23, e o DJ César, 26, já se inscreveram na fila para se casar. “Deus é um só para todos. A fé está acima de tudo”, diz Kleber. “Não é porque alguns não concordam com minha orientação sexual que perderei meus direitos”, diz.

Segundo d. Rodrigues dos Santos, a chácara-capela será utilizada para batizar filhos de homossexuais e até ordenar padres de sua igreja. “Entre os católicos, gays são excluídos da eucaristia.”

Para a maioria dos gays e lésbicas, o casamento tem um significado político, de cidadania. “O importante é ter o direito de ter essa opção, pois defendemos leis iguais para todos”, diz Miriam Martins, coordenadora-geral da ONG Um Outro Olhar, voltada para a saúde e os direitos das lésbicas. Enquanto essa igualdade não chega, gays e lésbicas procuram atalhos, como o reconhecimento da união estável.

88. Se o sonho de milhões de homossexuais é casar legalmente, regularizando a sua situação perante o Estado Brasileiro, deixando-as felizes, o que não prejudica ninguém, eis aqui mais uma contundente razão para reforçar a interpretação não restritiva, não excludente e não preconceituosa dos artigos 1517 e 1565 do código civil, vale dizer, a permissiva do casamento de parceiros com essa orientação sexual.

89. Ainda conforme o Professor Luiz Alberto David de Araújo, “a felicidade, como visto acima, não pode ser uma só, um padrão determinado por um grupo de pessoas. A felicidade é um estado de ventura, que atende à multiplicidade de valores e anseios do ser humano, individualmente considerado. Não se pode falar de felicidade geral, mas da felicidade de cada ser humano. A felicidade geral é a soma das felicidades individuais atendidas. Portanto, a busca do fim social do Estado deve, obrigatoriamente, fundar-se na busca da felicidade. Os anseios individuais, a captação das mudanças sociais pelo Estado, o atendimento às necessidades básicas do ser humano estão, certamente, entre os fins objetivados pelo Estado e reconhecidos pelo constituinte de 1988.”


XII – UMA RESPOSTA PRÉVIA AOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS: A NECESSIDADE DE LEI E O HOMOSSEXUALISMO COMO PRÁTICA CONTRA A NATUREZA.

90. Antes que as vozes lastreadas naquela primeira interpretação do artigo 1517 do código civil, que é restritiva, ultrapassada, preconceituosa e conflitante com o plexo de valores consagrados na Constituição Federal, venham a argumentar contrariamente à presente ação, o Ministério Público Federal, neste tópico, antecipando-se aos ataques da força reacionária, rechaçará os dois argumentos mais contundentes que poderiam ser levantados. O primeiro diz com a necessidade de alteração legislativa para a implantação da medida pretendida; o segundo pretende encarar o homossexualismo como prática “contra a natureza”, já que no reino animal não se constata o relacionamento sexual entre casais do mesmo sexo.

91. Não há necessidade de qualquer alteração legislativa para que os Estados passem a celebrar o casamento civil de pessoas do mesmo sexo, dando a essas pessoas, injustamente discriminadas em função de sua orientação sexual, as mesmas benesses decorrentes do status jurídico de casado, outorgado aos casais heterossexuais.

92. A resposta à possibilidade jurídica do casamento de pessoas do mesmo sexo pode ser, de duas alternativas, só uma: ou o sistema jurídico atual permite o ato ou ele o proíbe, não havendo qualquer indicação normativa no sentido de se admitir uma postura intermediária. São duas e apenas duas, portanto, as respostas logicamente possíveis a esse problema da vida humana. Refletindo cuidadosamente sobre as duas interpretações possíveis ao artigo 1517 do código civil, acima analisadas, podemos concluir, sem sombra de dúvida, que não há proibição nesse sentido e se houvesse seria inconstitucional.

93. Se aquilo que não está proibido é permitido , a única resposta compatível com a Lei Maior é a de que o casamento, nessas condições, é permitido pelo sistema jurídico, não cabendo ao aparato administrativo do Estado negar a realização do ato, em franco desrespeito ao direito de escolha do ser humano e ao direito de ser feliz dessas pessoas, vertente maior do princípio da dignidade da pessoa humana.

94. Basta interpretar o artigo 1517 do código civil em conjunto com o artigo 1521 do mesmo diploma, verificar que não há restrição legislativa expressa a respeito, extraindo desses dispositivos a norma aplicável, devidamente sintonizada com os valores jurídicos albergados pela Constituição Federal, tudo para concluir que o Estado Brasileiro não pode pretender impor padrões morais de conduta aos indivíduos, discriminando-os apenas em função de sua orientação sexual, nem mesmo de forma indireta, negando a prática de ato jurídico de sua responsabilidade .

95. No mesmo viés, ressalte-se que, se ninguém é obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, nos termos do artigo 5°, inciso II, da Constituição, o Estado Brasileiro não pode sujeitar os parceiros do mesmo sexo a não casarem entre si, já que não há proibição legal expressa nesse sentido e se houvesse seria inconstitucional.

96. Ora, se o Estado Brasileiro, administrativamente, não se comporta como deveria, negando a realização de ato administrativo com base em discriminação preconceituosa e indevida, desrespeitando o sistema jurídico vigente, contrariando as normas já positivadas, não há necessidade da superveniência de uma nova lei para declarar isso e obrigá-lo ao cumprimento das já existentes.

97. Se o Estado Administração não cumpre a lei, esta última entendida como o ordenamento jurídico e todas as normas que dele possam ser extraídas logicamente, sendo que o ordenamento é um sistema conexo e harmônico de normas, tendo no seu ápice hierárquico a Constituição Federal, então o caso é de propositura de ação judicial, já que o Poder Judiciário é quem tem a missão de fazer cumprir, se necessário coercitivamente, as normas já positivadas pelo ordenamento jurídico.

98. A intervenção do Poder Legislativo só seria necessária se fosse o caso de alterar o ordenamento jurídico, modificando algumas de suas normas. Quando se quer alterar as normas jurídicas, seja criando, extinguindo ou alterando o conteúdo jurídico das obrigações de qualquer pessoa, pública ou privada, compete então ao Poder Legislativo essa importante e nobre tarefa.

99. Não é o caso destes autos porque a resposta jurídica do ordenamento já foi dada, vindo da Constituição Federal para o código civil. Se o casamento de pessoas do mesmo sexo não está proibido normativamente (e só poderia fazê-lo o Poder Constituinte Originário), então está permitido, já que ninguém será obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (devendo essa obrigação, diga-se de passagem, ser constitucional).

100. Importante notar, nas observações entre parênteses acima, que mesmo que houvesse proibição legal expressa da celebração do casamento civil para pessoas do mesmo sexo, essa proibição seria inconstitucional e o Estado Brasileiro remanesceria obrigado ao ato ora almejado. Se não o faz administrativamente, não resta ao Ministério Público Federal outra alternativa senão buscar a implementação forçada desta obrigação mediante a competente provocação do Poder Judiciário, que é o que ora se faz.


101. Vamos ao segundo argumento, que merece resposta porque pretende gozar de um ar de cientificidade, pregando que na natureza não se constatam casais de animais do mesmo sexo biológico mantendo relações sexuais, daí porque o homossexualismo seria uma conduta contra as leis da natureza, não merecendo proteção estatal.

102. Ocorre que, de acordo com essas mesmas leis da natureza, nas quais pretendem enquadrar, sem ressalvas, o ser humano, os animais defecam uns na frente dos outros; os animais se matam entre si para a satisfação de sua fome; os animais não viajam ao espaço; os animais não têm a capacidade de sentir, com a mesma intensidade, a paixão e o amor humanos pelo próximo. Fosse essa teoria do homossexualismo como prática contra a natureza levada a sério, então os seres humanos deveriam defecar uns na frente dos outros, deveriam ser matar para a aquisição de comida, jamais ousariam viajar ao espaço e nunca sentiriam a leveza do amor.

103. Essa teoria se esquece que há uma diferença fundamental entre seres humanos e animais, já que nós pensamos, temos sentimentos complexos e conseguimos – via de regra – controlar nossos impulsos primitivos diante das normas sociais, enquanto que os animais não têm essa extraordinária capacidade.

104. Essa diferença entre os homens e os demais animais é que torna absolutamente despropositado o argumento em questão, de que a escolha humana pelo homossexualismo seria “contra a natureza”. É da natureza do ser humano o seu direito de escolha, a sua liberdade de ser, fazer e viver que pode conduzi-lo, eventualmente, para um distanciamento completo das práticas de vida adotadas pelos demais animais.

105. Todos sabemos que a aranha viúva negra mata o seu parceiro sexual após a cópula: imaginem o caos que seria à raça humana se resolvesse seguir essa mesma prática, “conforme à natureza”.

106. Ainda com relação a homossexualismo e natureza, para destruir de vez essa teoria “científica”, deve-se registrar que mesmo no reino puramente animal há algumas constatações de práticas homossexuais. É o que evidencia a notícia abaixo, divulgada dia 25/12/2004 no sítio do jornal “Folha de São Paulo” na Internet, confira-se:

“ 25/12/2004 – 09h36

Cientistas japoneses identificam pingüins homossexuais

da Agência Lusa

Um grupo de biólogos japoneses anunciou que pingüins dos jardins zoológicos do país têm mostrado um comportamento considerado homossexual, anunciou hoje a Universidade Rikkyo, de Tóquio. A equipe de pesquisadores, dirigida por Keisuke Ueda, professor de ecologia do comportamento da Universidade Rikkyo, atribuiu as atitudes ao reduzido número de pingüins existentes nos cativeiros, o que dificulta as relações heterossexuais. Ueda disse não ser possível determinar se os pingüins que vivem em liberdade agem da mesma maneira, pois é difícil monitorar essas atitudes na natureza. Os cientistas filmaram vários tipos de ações consideradas homossexuais, desde a partilha do ninho por indivíduos do mesmo sexo a práticas de caráter sexual. Segundo os cientistas japoneses, este comportamento já tinha sido observado em aves marinhas que vivem em liberdade, no seu habitat, como gaivotas .”

107. Pode-se concluir, em arremate a este tópico, que o homossexualismo não é uma prática contra a natureza porque faz parte da natureza do ser humano, eventualmente, seguir escolhas e adotar práticas de vida que diferem da maioria dos demais animais, sendo exatamente essa diferença que traz a beleza e caracteriza a essência do ser humano. De outra parte, não há necessidade de qualquer alteração no quadro normativo, sendo desnecessária a intervenção do Poder Legislativo porque o caso não é de modificação do ordenamento jurídico, mas sim o do cumprimento de uma medida que dele deflui, cabendo ser implementada coercitivamente pelo Poder Judiciário já que está sendo desrespeitada pelo aparato administrativo do Estado Brasileiro.

XIII – OS EFEITOS ECONÔMICOS BENÉFICOS DA DECISÃO DE PROCEDÊNCIA E SUA RELAÇÃO COM OS VALORES SUPREMOS DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

108. Asseveramos anteriormente que a proibição discriminatória ao casamento de homossexuais ofende todos os valores jurídicos positivados no preâmbulo da Constituição Federal, daí que essa postura estatal, juridicamente, não se sustenta. Sendo o direito um sistema harmônico de normas, não se pode imaginar que qualquer delas venha a ofender, frontalmente, todos os valores maiores acolhidos no diploma normativo fundamental.

109. O preâmbulo da CF de 1988, como mensagem inaugural a quem vai tomar um primeiro contato com seu texto, explica que os representantes do povo brasileiro se reuniram em Assembléia Nacional Constituinte “para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.”


110. Já dissemos que essa vedação o viola o princípio da igualdade, fazendo preconceituosa distinção entre brasileiros heterossexuais e homossexuais para o fim de constituir direito civil fundamental (o status jurídico de casado é constituído por ato administrativo estatal), apoiando essa discriminação no fator ilegítimo que é a orientação sexual do ser humano.

111. Já dissemos que essa vedação viola o princípio da liberdade no seu aspecto de liberdade de escolha, já que incita forçosamente as pessoas a escolherem parceiro heterossexual, desestimulando a escolha do homossexualismo como modo de ser e de viver a partir da negativa de direito da cidadania;

112. Dissemos também que essa vedação viola o valor de bem-estar dos indivíduos, constituindo óbice à consagração do direito constitucional à felicidade das pessoas que optaram pela homossexualidade, sem que nenhum benefício individual ou social justifique tamanha restrição;

113. Falamos, portanto, de igualdade, liberdade e bem-estar. Trataremos neste tópico de todos os demais valores acolhidos no preâmbulo da Constituição. Principiaremos pelo desenvolvimento: uma decisão de procedência contribuirá para incrementar, sob o ponto de vista econômico, o desenvolvimento nacional.

114. O Poder Judiciário, como um dos três poderes do Estado, pode ajudar a salvar vidas, diminuindo o preconceito e, conseqüentemente, a homofobia, que é responsável por infindáveis agressões e assassinatos contra pessoas de orientação sexual diversa da padronizada, que é a heterossexual.

115. Bobagem imaginar que o Poder Judiciário não deve pensar nos reflexos sociais de suas decisões: essa postura implica não encarar, de frente, as altas responsabilidades sociais que lhe foram confiadas, traindo a confiança depositada pelo Constituinte e pelo povo brasileiro. É preciso, sim, considerar quais são os reflexos sociais de uma decisão judicial, inclusive do ponto de vista econômico, já que o direito não existe por si mesmo mas apenas enquanto elemento capaz de manter a ordem, a paz e a harmonia social, não devendo ser usado para a própria destruição da sociedade.

116. É claro que os reflexos econômicos não podem servir, sempre, como motivos bastantes para julgar dessa ou daquela maneira, contrariando a ordem jurídica constitucional. O Poder Executivo assaz vezes pretende isso, principalmente em causas tributárias, nas quais avulta o interesse econômico do Estado. É claro que a Constituição Federal não pode ser contrariada frontalmente para servir a interesses econômicos secundários do Estado, mesmo porque, se for sempre, bem e corretamente observada, nunca sucederá colisão entre os interesses primários do Estado e o texto constitucional .

117. Mas, e esse é o ponto, diante de duas interpretações igualmente possíveis do texto normativo, é imprescindível que se adote aquela compatível com a melhor otimização de reflexos sociais positivos, já que o direito serve à realidade e não o contrário.

118. Pois bem, uma decisão de procedência nesta ação favorecerá dois ramos de atividades econômicas: a indústria do casamento e o turismo.

119. É claro que um casamento custa aquilo que os noivos podem pagar, mas vamos considerar o casamento de pessoas com um nível econômico um pouco mais favorecido, da classe média para cima. Segundo o sítio www.guiadenoivos.com.br , os preços podem começar de R$ 10.000,00 (dez mil reais), chegando até a R$ 70.000,00 (setenta mil reais). São gastos com decoração, música, fotografia, roupas, convites e a festa propriamente dita.

120. Todos os profissionais envolvidos com a celebração do casamento poderão ser beneficiados com a procedência dessa ação, já que existem pessoas homossexuais em todas as classes sociais, valendo ressaltar que, certamente, haverá casais homossexuais que pagarão fortunas pela satisfação pessoal de celebrarem casamento. Ganha, com isso, a economia nacional e, por tabela, enrijece o desenvolvimento nacional.

121. O turismo também será beneficiado. Os estrangeiros que sejam homossexuais verão o Brasil sob melhor perspectiva, mais acolhedora e fraterna, incentivando o seu turismo para o nosso país e trazendo, junto consigo, os dólares que pretendem gastar, favorecendo a movimentação econômica de todo o país.

122. É evidente que esses benefícios não vão tirar o Brasil da lama de miséria que o assola, mais certamente contribuirão, ainda que em pequena medida, para favorecer a nossa economia, girar dinheiro no setor privado e, com isso, concretizar o valor constitucional de desenvolvimento.

123. Assentada a importância desta ação para a realização do valor de desenvolvimento, tratemos dos demais valores positivados no preâmbulo da Constituição.

124. Uma decisão de procedência também concretizará o valor segurança em dois aspectos: pela garantia da integridade física e pela consagração da segurança jurídica.


125. Primeiro, pela garantia da integridade física dos homossexuais decorrente da diminuição do preconceito: será maior a aceitação social dessa orientação sexual, menor a homofobia e, portanto, a tendência será diminuir os casos de agressões e assassinatos pertinentes.

126. Segundo, pela garantia de segurança jurídica aos casais homossexuais: os cônjuges terão acesso a todos os direitos e deveres instituídos pelo regime jurídico do casamento, podendo exigi-los uns dos outros, inclusive perante terceiros, bem como provar esses direitos jurídicos pela mera apresentação da certidão de casamento. São exemplos: poderão cobrar dever de fidelidade do cônjuge, terão direito a pleitear alimentos, direitos sucessórios, terão a proteção do bem de família, a venda dos imóveis de cada um dependerá de outorga do outro cônjuge e etc. Realizado ficará, portanto, o valor da segurança, neste duplo enfoque apontado.

127. Uma decisão de procedência contribuirá para termos uma sociedade mais “fraterna, pluralista e sem preconceitos”: acabará com uma postura estatal baseada no preconceito pela orientação sexual, ajudando a integrar as pessoas homossexuais ao harmônico convívio social, prestigiando a inclusão, que é própria do amor fraterno, bem como aceitando a diferença, que é própria de uma sociedade pluralista.

XIV – SEGUE: O ARTIGO 1517 DO CÓDIGO CIVIL E O COMBATE À DISCRIMINAÇÃO.

128. Há mais alguns pontos que merecem destaque. Quando o artigo 227, caput, da Constituição Federal , enumera um extenso rol de direitos das crianças e adolescentes, determinando que eles devem ficar “a salvo de toda forma de discriminação”, não significa apenas discriminação contra a criança e adolescente, mas também discriminação praticada perante a criança e o adolescente.

129. A vedação à discriminação é clara em vários dispositivos constitucionais, sendo contundente o disposto no artigo 3°, inciso IV, que alça à condição de objetivo da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação.” O artigo 227, caput, da CF, apenas realça isso.

130. É verdade que o adolescente maior de 16 (dezesseis) anos já pode casar, sendo essa a idade mínima posta no artigo 1517 do código civil; assim, os adolescentes entre 16 e 18 (dezesseis e dezoito) anos, que sejam homossexuais queiram casar, estão sendo efetivamente discriminados.

131. Mas a vedação à discriminação, posta pelo artigo 227, caput, como proteção à criança e ao adolescente, vai mais longe: eles devem ficar a salvo de discriminações praticadas perante eles, e não apenas contra eles.

132. Noutra senda, as crianças e adolescentes eventualmente adotados por um casal homossexual, ou apenas por uma pessoa homossexual, têm direito a que seus familiares sejam tratados com dignidade e respeito pelo Estado porque a discriminação contra essas pessoas atinge, reflexamente, a própria criança ou adolescente, que vê diminuída a sua auto-estima e começa a sentir que o preconceito é uma atitude normal, e não o respeito no seio da sua família.

133. Arrimada na forte axiologia constitucional, a legislação mais recente já expõe, expressamente, a vedação ao preconceito pela orientação sexual. Seguindo a senda da prevalência dos direitos humanos , sem distinção entre brasileiros , inspirada na idéia de uma sociedade pluralista e sem preconceitos , A Lei 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, estabelece em seu artigo 1° que:

“Artigo 1°. Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.”

134. A legislação apenas salientou, expressamente, o que já estava determinado pela Constituição Federal. O que nos cabe salientar é que, se não pode haver discriminação pela orientação sexual das pessoas com transtorno mental, igualmente não pode haver com relação às pessoas saudáveis, já que a saúde do ser humano não é razão suficiente para que ele possa ser discriminado quanto à sua orientação sexual.

XV – A DISCRIMINAÇÃO CONTRA HOMOSSEXUAIS NAS FORÇAS ARMADAS.

135. A discriminação contra homossexuais nas Forças Armadas é mais um capítulo do preconceito doentio e injustificado. Não é preciso ser antropólogo, biólogo ou cientista de qualquer gênero para saber que um soldado homossexual pode ter muito mais coragem, disciplina, educação e amor à pátria que um soldado homossexual, ou não. É que o fato de ter essa ou aquela orientação sexual simplesmente não tem influência sobre esses atributos pessoais, considerados importantíssimos para a qualificação de um excelente militar.


136. A discriminação contra os homossexuais, portanto, fica apenas por conta do preconceito cultural, já que logicamente não se justifica. Contudo, considerando que as Forças Armadas fazem parte do Estado Brasileiro, como órgãos integrantes da estrutura do Poder Executivo, subordinados ao Ministério da Defesa e também à Presidência da República, não podem os seus ilustres comandantes discriminar os seus subordinados como decorrência da orientação sexual que adotem, mesmo que tenham essa vontade íntima, impulsionada por um sentimento pessoal de preconceito. Se têm esse tipo de preconceito – esperamos que não tenham, devem guardá-lo para si, pois no exercício da função pública estatal os comandantes militares têm o dever de abstenção, consistente em não discriminar os seus subordinados em função de sua orientação sexual.

137. Há vários casos, contudo, nos quais o preconceito venceu a razão, o ódio se sobrepôs ao respeito, a intolerância sobrepujou a fraternidade; infelizmente são muitos, sendo que, sem maiores delongas, citaremos apenas um, paradigmático e esclarecedor:

– HOMOSSEXUAIS CONTINUAM DISCRIMINADOS NAS FORÇAS ARMADAS

Segundo o Capitão de Mar e Guerra Wellington Liberatti, diretor de relações públicas da Marinha, “a política de exclusão de homossexuais destina-se a preservar, promover e proteger valores e interesses legítimos das Forças Armadas e não há a mais remota razão para qualquer revisão desta conduta.” [O Globo, 11-5-97]

138. Daí a necessidade de se impor determinação judicial, também pleiteada nesta ação, para evitar discriminações contra homossexuais no âmbito do serviço público militar.

XVI – NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS ORA TUTELADOS, TIPICAMENTE DIFUSOS.

139. A presente ação tutela o direito das pessoas indeterminadamente consideradas, difusamente espalhadas pela sociedade, de não sofrerem discriminações indevidas pelo Estado Brasileiro em virtude da orientação sexual que escolheram para si. A acepção de Estado Brasileiro inclui os Estados Federados e a União Federal, aqui figurantes como réus no seu pólo passivo.

140. Não é possível determinar todas as milhões de pessoas a serem beneficiadas com a medida postulada, nem todas as vidas que serão salvas pelo arrefecimento do preconceito no seio da sociedade civil. Se existe um direito a que o Estado respeite a dignidade das pessoas humanas, os seus titulares não são determináveis, estando difusos na sociedade, ligados entre si pelo só fato de fazerem parte da população brasileira.

141. O direito em questão não pertence só aos homossexuais que pretendem casar civilmente e adquirir este status jurídico do Estado, nem a todos os que possam vir a ser discriminados no serviço público militar (ou civil) da União Federal, mas sim a todos os seus milhões de familiares, a todos os heterossexuais que um dia possam alterar a sua orientação sexual e desejarem ser respeitados, bem como a todos os que, independente da orientação sexual, querem que o Estado Brasileiro trate as pessoas sem preconceitos, sem discriminações de qualquer natureza, respeitando as escolhas individuais de cada um e também a normativa jurídica expressada nos valores positivados pelo texto constitucional. É direito, portanto, que não pertence a um ou a alguns indivíduos em particular, transcendendo o indivíduo para alcançar, indeterminada e difusamente, toda a sociedade brasileira.

142. Por outro lado, diversamente dos direitos patrimoniais, o direito em questão também não pode ser cindido, como se cada pessoa tivesse uma quota, matematicamente mensurável, do direito a ser respeitada na sua dignidade e vida privada, sendo portanto indivisível.

143. Estamos, portanto, diante de um típico interesse ou direito difuso, já que os seus titulares são pessoas indeterminadas, ligadas pela circunstância de fazer parte da população brasileira , sendo indivisível e transindividual.

144. Cabe ao Ministério Público a proteção de direitos difusos, atribuição que lhe fora conferida pela Constituição Federal:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;”

145. Deve-se salientar, outrossim, que a celebração de casamento é atividade estatal, delegada aos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, bem como exercida diretamente pela União Federal através dos seus consulados e representações diplomáticas no exterior, sendo que essa atividade reflete o exercício típico do poder de império estatal.

146. Assim, fica reforçada a presença do Ministério Público Federal no pólo ativo da lide, já que também é sua atribuição “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.”, conforme dispõe o inciso II do artigo 129 da Magna Carta.


XVII – DA COMPETÊNCIA FEDERAL

147. Nos termos do artigo 109, inciso I, da Constituição Federal, compete à justiça federal julgar as causas em que a União Federal figure como ré. Como se verá do pedido adiante formulado, ela é ré por dois motivos: primeiro porque também deverá ser impelida, junto com os Estados, a celebrar casamento civil de pessoas do mesmo sexo, através dos seus órgãos consulares sediados no exterior. Afinal, quanto a brasileiros que estejam no exterior, dispõe o artigo 18 da Lei de Introdução ao Código Civil que: “Tratando-se de brasileiros, são competentes as autoridades consulares brasileiras para lhes celebrar o casamento e os mais atos de Registro Civil e de tabelião, inclusive o registro de nascimento e de óbito dos filhos de brasileiro ou brasileiros nascidos no país da sede do Consulado.”

148. Trata-se de ato que envolve a atribuição administrativa da União Federal: logo, ela deve figurar como ré, culminando então com a incidência do artigo 109, inciso I, da CF: “Aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”

149. O segundo motivo pelo qual a União Federal é ré nesta ação decorre do segundo pedido: proibição de discriminação a homossexuais nas forças armadas, pelo só fato de terem escolhido essa orientação sexual. As Forças Armadas se enquadram dentro da estrutura do Poder Executivo Federal, subordinadas hierarquicamente à Presidência da República. Se ela está agindo em contrariedade a direitos fundamentais, demandando-se ordem de correção ao Poder Judiciário, a competência é certamente da Justiça Federal.

XVIII – DO PEDIDO, DA POSSIBILIDADE E DA NECESSIDADE DE MEDIDA LIMINAR

150. Já tratamos à saciedade da plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni juris), consistente em tudo o quanto já foi assentado. Cabe-nos, agora, tecer considerações com relação ao periculum in mora, que é o outro requisito necessário á concessão de medida liminar, ora pleiteada.

151. Sejamos realistas: a sociedade não tem condições de ficar esperando longos (realmente longos) anos até o Poder Judiciário desfeche a questão definitivamente, com decisão transitada em julgado. Permitir isso implica permitir que, durante todo esse tempo, seja o sistema normativo escancaradamente descumprido. Daí a necessidade de decisão que proporcione antecipação dos efeitos da tutela, liminarmente.

152. Caso não fosse aplicado o instituto em comento, uma decisão final, transitada em julgado, seria ineficaz para todo o (longo) tempo pretérito a ela. É dizer: não haveria remédio para sanar a violação do direito difuso tutelado por todo o tempo anterior à decisão judicial definitiva. A Constituição Federal continuaria sendo descumprida por longos e longos anos, nada mais podendo ser feito.

153. É justamente para evitar situações como essa que existe o artigo 461, § 3º, do código de processo civil, verbis:

“Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.”

154. Ressalte-se que, nos termos do mesmo dispositivo, a medida liminar poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, criando uma brecha de flexibilidade para a decisão judicial, permitindo ao juiz alterar o seu conteúdo caso mude de opinião, já que a precariedade é da própria natureza das medidas liminares.

155. Cumpre esclarecer que, antes mesmo do supracitado artigo 461, § 3°, do código de processo civil, cuja redação foi dada pela Lei 8.952/94, já existia autorização legislativa para a concessão de pleito liminar em ação civil pública, como se observa a partir do artigo 12 da Lei 7.347/1985, verbis:

Art. 12. Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo.

156. Com efeito, a concessão da medida liminar revela-se necessária se o Poder Judiciário realmente estiver preocupado com a efetividade prática de suas decisões, o que se impõe como uma exigência para a proteção de toda a sociedade, ameaçada nos seus direitos pela consagração da impunidade, além de uma questão de sobrevivência para esse próprio Poder de Estado, já que as suas instituições só irão ser respeitadas se ele for realmente capaz de implementar as decisões tomadas, imprimindo efetividade às medidas necessárias para a aplicação do direito material violado.


157. Como explica o insigne LUIZ GUILHERME MARINONI, verbis:

“Como é sabido, a doutrina processual contemporânea tomou consciência de que o processo não pode ser pensado à distância do direito material. Nessa linha a doutrina fala em efetividade do processo e em tutela jurisdicional dos direitos, sempre preocupada com um processo que seja capaz de dar ao autor o resultado que o próprio direito material lhe outorga.”

158. Ora, quando a ação proposta vem respaldada por uma forte probabilidade jurídica de êxito, como é o caso, mostra-se injusto impor exclusivamente ao autor os ônus pela demora no processo, deixando intacta a posição jurídica do réu, que descumpre a legislação, viola direitos materiais e fica aguardando todo o longo itinerário procedimento que deve ser observado para o seu desfecho definitivo, sem ser incomodado, além de estar municiado com uma ampla gama de recursos.

159. A possibilidade de concessão de medida liminar, prevista na legislação, quer justamente impedir que os ônus pela demora recaiam sobre a parte processual que, aparentemente (porque não houve julgamento definitivo), tem maior razão. Antes das normas invocadas, o autor tinha de suportar sozinho a longa demora dos tramites processuais, podendo o réu regozijar-se com essa situação de grave injustiça, torcendo para que o processo se perpetuasse.

160. Hoje, com as normas surgidas pelas sucessivas reformas e a evolução da doutrina processual, não mais se admite que o autor, numa primeira vista coberto de razão, tenha de suportar pacientemente a espera pela concessão de um provimento judicial definitivo, enquanto que o réu, agressor do direito material violado e responsável pela própria existência do processo, passe longos anos sem ser molestado e, durante o próprio processo, continue a violar o direito material.

161. Quando o artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, também quis dizer que a legislação não pode criar obstáculos, nem mesmo processuais, para que o Poder Judiciário possa tomar medidas eficazes contra qualquer lesão ou ameaça a direito, já que esses obstáculos processuais implicariam, por via transversa, na impossibilidade pelo Poder Judiciário de apreciação e estancamento efetivos de lesão a direitos. Uma das formas da lei subtrair do Poder Judiciário a apreciação de lesão a direitos é criar obstáculos processuais despropositados, impedindo a ação efetiva deste Poder no cumprimento de sua missão constitucional.

162. Ocorre que, no caso, a legislação é amplamente favorável à concessão da medida pretendida. Além do poder geral de cautela do magistrado, temos o artigo 12 da lei da ação civil pública e o artigo 461, § 3°, do código de processo civil .

163. Além desses dispositivos legais, surge outro, agora com estatura constitucional, recém criado pela emenda constitucional n° 45, que veiculou a comumente chamada “Reforma do Poder Judiciário”, cujo intuito foi o de torná-lo mais ágil para a população. O dispositivo referido está alocado no rol dos direitos fundamentais, assim redigido:

“Artigo 5°. Inciso LXXVIII: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

164. Não prospera o argumento utilizado por alguns no sentido de que, se já se passaram vários anos com a presente Constituição, tudo permanecendo do jeito que está, sem a interferência da medida pleiteada, então as coisas podem continuar um pouco mais do jeito que estão, não havendo periculum in mora. O argumento é falacioso: um erro não justifica o outro; um erro praticado por longo tempo não justifica a sua perpetuação, nem que seja por “um pouco mais …”. Ora, um funcionário público não pode ser corrupto se pensar que todos os seus colegas de repartição estejam sendo; o motorista não deve passar no farol vermelho se pensar que todos os demais passam; não se deve agredir o próximo ao pensamento de que as coisas só se resolvem com violência. É dizer: não se pode tolerar mais tempo o descumprimento da Constituição só porque, até hoje, ela foi resignadamente descumprida, devendo-se ter a consciência, também, que esperar o trânsito em julgado não significa esperar “um pouco mais”, mas sim esperar longos, incalculáveis e intermináveis anos, dada a imensa crise de morosidade do Poder Judiciário, que é fato notório e o juiz não pode desconsiderar, sob pena de anuir, tacitamente, à continuidade temporal de violação do direito material.

165. Considerando que a negativa de concessão da medida liminar implica admitir que a Constituição Federal continue sendo violada, dia após dia, até o fim do longo itinerário procedimental, fazendo permanecer o desrespeito a direito humano fundamental de não discriminação, o que não se pode admitir, então resta cabalmente comprovada a presença do periculum in mora, tornando inexorável a concessão da medida liminar pleiteada.


XIX – DA ABRANGÊNCIA NACIONAL DOS EFEITOS DA DECISÃO.

166. A lei 9.494/1997 mudou a redação do artigo 16 da lei 7.347/1985 (lei da ação civil pública), estando hoje redigido nos seguintes termos:

“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado insuficiente por falta de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento.”

167. Imaginemos uma ação civil pública proposta perante uma das varas federais no estado de São Paulo, dedicada a fazer incluir, no edital de um concurso público de nível nacional (por exemplo, concurso para ingresso na Polícia Federal), reserva de vagas para pessoas portadoras de deficiência. Se essa ação for julgada procedente, seria uma paradoxo que as pessoas portadoras de deficiência residentes em São Paulo tivessem reserva de vaga e as do resto do país não tivessem.

168. Essa situação criaria franca discriminação com os jurisdicionados residentes em outros cantos do país, deixando um abismo de desigualdade (violação ao princípio da igualdade). Traria problemas com a segurança jurídica, já que o critério desarrazoado de discrímen, criado artificialmente pela lei – a residência do beneficiado, provocaria tumultos no sentido de averiguar se a decisão estaria mesmo tendo seus efeitos limitados à competência do órgão prolator, isto é, exigiria uma comissão de análise e investigação só para saber se a pessoa beneficiada é ou não residente no Estado de São Paulo.

169. Tamanha confusão obrigaria, em franco contraste com o princípio da eficiência, a serem propostas tantas ações quanto os estados da federação, pulverizando na burocracia judiciária um problema de magnitude nacional. Alguns membros do Ministério Público em outros estados, ao argumento de sua independência funcional, poderiam simplesmente se recusar a propor a ação de igual fundamento e escopo; se a ação já tiver sido proposta, alguns juízes poderiam indeferir medidas urgentes (a liminar do artigo 12 da lei 7.347/1985 ou a antecipação de tutela do artigo 273 do Código de Processo Civil) ou julgá-la improcedente. Ou seja, criar-se-ia um estado de confusão que ofende o princípio da segurança jurídica, quebrando as condições propícias para uma uniformização decisória.

170. Vale conferir as agudas ponderações de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery:

“Limitação Territorial. A L 9494/97, que modificou a redação da LACP 16, para impor limitação territorial aos limites subjetivos da coisa julgada, não tem nenhuma eficácia e não pode ser aplicada às ações coletivas. Confundiram-se os limites subjetivos da coisa julgada erga omnes, isto é, quem são as pessoas atingidas pela autoridade da coisa julgada, com jurisdição e competência, que nada têm a ver com o tema. Pessoa divorciada em São Paulo é divorciada no Rio de Janeiro. Não se trata de discutir se os limites territoriais do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território, atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas pela sentença paulista. O equívoco da MedProv 1570/97 demonstra que quem a redigiu não tem noção, mínima que seja, do sistema processual das ações coletivas. (…)”

171. De fato, numa ACP proposta contra a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, versando sobre a defesa de direitos individuais homogêneos pertinentes ao código de defesa do consumidor, assim nos manifestamos sobre o dispositivo ora em análise :

“o artigo 16 da lei 9494/97, no ponto em que restringe os efeitos erga omnes da coisa julga aos limites territoriais do órgão julgador, é inconstitucional porque limita o acesso à justiça (CF, art. 5, XXXV), atenta contra o princípio constitucional da eficiência (CF, art. 37, caput) e também porque vulnera o princípio da segurança jurídica. Evitar decisões judiciais contraditórias é respeitar a segurança jurídica, de modo que não pode se conceber essa ação procedente em São Paulo e, com o mesmo objeto (pedido e causa de pedir), improcedente em outro federativo. É algo absurdo, incongruente com a justiça e com o tratamento equânime de todos os brasileiros. Se a Corte Superior e a própria Suprema Corte reclamam que estão atoladas de processos, uma melhor reflexão sobre o influxo do princípio constitucional da eficiência no exame desse dispositivo pode mostrar a sua inconstitucionalidade. Nos casos de defesa de direito individual homogêneos, milhares, quiçá milhões de ações podem ser evitadas com a atribuição de efeitos erga omnes à sentença de procedência, sem limitações territoriais. O argumento de desafogar os Tribunais de superposição não é meramente sociológico; ao revés, encontra no princípio constitucional da eficiência parâmetro normativo determinante. A eficácia da sentença de procedência, por sua própria natureza, não se compadece com a limitação territorial dos seus efeitos, sendo manifestamente artificial, inoportuna e mesmo inconstitucional a inovação legislativa que introduziu a limitação territorial. Alem do mais, fere-se a garantia de amplo acesso à Justiça na medida em que se dificulta a proteção do direito material. A despeito da unidade constitucional do Ministério Publico, seus membros gozam de independência funcional e não se pode obrigá-los a propor ação idêntica em cada uma das vinte e seis demais unidades federativas. Ou seja, a limitação territorial dos efeitos da decisão pode deixar uma grande massa de brasileiros ao desabrigo da proteção de seus direitos. Nem se diga que a possibilidade de propositura da ação individual repele o argumento de violação ao acesso à Justiça: primeiro que isso não afasta a possibilidade de decisões conflitantes entre si, depois que se mostra incompatível com a eficiência constitucionalmente exigida e ainda, ao cabo, a questão reside em que a artificial limitação legislativa (lei 9494/97) só veio para complicar a defesa do direito material violado em juízo, prejudicando o amplo acesso à justiça, que é o que procura albergar Lei Maior.”


172. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, mais recentemente, vem percebendo referida anomalia:

PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE

INCONSTITUCIONALIDADE – POSSIBILIDADE – EFEITOS.

1. É possível a declaração incidental de inconstitucionalidade, na ação civil pública, de quaisquer leis ou atos normativos do Poder Público, desde que a controvérsia constitucional não figure como pedido, mas sim como causa de pedir, fundamento ou simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal, em torno da tutela do interesse público.

2. A declaração incidental de inconstitucionalidade na ação civil pública não faz coisa julgada material, pois se trata de controle difuso de constitucionalidade, sujeito ao crivo do Supremo Tribunal Federal, via recurso extraordinário, sendo insubsistente, portando, a tese de que tal sistemática teria os mesmos efeitos da ação declaratória de inconstitucionalidade.

3. O efeito erga omnes da coisa julgada material na ação civil pública será de âmbito nacional, regional ou local conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano, atuando no plano dos fatos e litígios concretos, por meio, principalmente, das tutelas condenatória, executiva e mandamental, que lhe asseguram eficácia prática, diferentemente da ação declaratória de inconstitucionalidade, que faz coisa julgada material erga omnes no âmbito da vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado.

4. Recurso especial provido.”

(RESP 557.646, Relatora a Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, votação unânime, julgado em 13.04.2004 e publicado no DJ de 30.06.2004)

173. Imagine-se que a ação fosse julgada procedente com efeitos restritos apenas ao Estado de São Paulo. Seria absurdo: os soldados e oficiais das Forças Armadas lotados em São Paulo não poderiam ser discriminados pela orientação sexual, enquanto os do resto do país poderiam (violação ao princípio da igualdade); ademais, os homossexuais que quisessem contrair casamento civil, residentes em outros Estados, teriam de se deslocar por grandes distâncias (imagine-se quem mora no Amazonas ou em Roraima), apenas para que pudessem exercer esse direito básico da cidadania. Observe-se que, nesse caso, haveria o reconhecimento da procedência do direito material deduzido em juízo, mas seriam criados óbices práticos para a sua concretização por todo o território nacional. Seria a perpetuação da discriminação, mas agora por outra maneira, obrigando as pessoas com orientação homossexual, residentes em outros Estados, a fazerem longas peregrinações para a constituição de um direito que existe em todo o território nacional.

174. A aplicação do comando emergente da Constituição Federal não pode ser mutilada, sob pena de violação ao princípio da eficiência, do amplo acesso à justiça, da segurança jurídica e da igualdade. Sobre este último, é impecável a lição de Alexandre de Moraes: “Ressalte-se que, em especial o Poder Judiciário, no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito ao caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar interpretação única e igualitária às normas jurídicas. Nesse sentido a intenção do legislador constituinte ao prever o recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (uniformização na interpretação da Constituição Federal) e o recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (uniformização na interpretação da legislação federal). Além disso, sempre em respeito ao princípio da igualdade, a legislação processual deverá estabelecer mecanismos de uniformização de jurisprudência de todos os tribunais”.

XX – DO PEDIDO

175. Diante de tudo o quanto exposto, requer-ser:

a) Seja concedida medida liminar obrigando os ESTADOS FEDERADOS, o DISTRITO FEDERAL e a UNIÃO FEDERAL a celebrarem o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Sendo proferida a almejada decisão, o Ministério Público Federal se encarregará de comunicá-la a todos os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais desse país, comprovando a comunicação em juízo e propiciando assim o seu cumprimento no âmbito interno, sem prejuízo da intimação dos réus na mesma oportunidade em que serão citados. Quanto ao cumprimento da decisão pelos órgãos consulares, requer-se a Vossa Excelência que expeça intimação ao Excelentíssimo Senhor Ministro das Relações Exteriores, solicitando-lhe as providências administrativas nesse sentido.

b) Seja concedida medida liminar para determinar, tanto à União Federal como a cada um dos Estados Federados e ao Distrito Federal, que se abstenham da prática de qualquer ato administrativo de caráter punitivo, ou retaliação de qualquer natureza, como decorrência da orientação sexual dos seus servidores públicos, civis ou militares, sob a pena de imposição de multa em valor arbitrado pelo juízo, sem prejuízo das medidas judiciais cabíveis, penais e por improbidade administrativa, contra as autoridades responsáveis pelo ato discriminatório. Como a grande maioria das discriminações do gênero, até hoje noticiadas, ocorreram no âmbito do serviço militar federal e do serviço policial, sem prejuízo da intimação dos réus – que já é suficiente para o dever de cumprimento da decisão, o Ministério Público Federal se encarregará de comunicá-la aos três ilustres Comandantes Gerais das Forças Armadas, bem como ao Diretor Geral da Polícia Federal e aos Secretários de Segurança nos Estados e no Distrito Federal, para que procedam às devidas comunicações internas. A comunicação feita pelo MPF não impedirá, contudo, que o próprio ente federativo réu nesta ação assim o faça de ofício, mesmo porque é a pessoa jurídica de direito público interno, ré nesta ação, quem tem o dever de cumprir a decisão judicial proferida.

c) Sejam as decisões liminares acima pleiteadas concedidas em definitivo, mediante sentença;

d) Sejam os réus citados por mandado para, querendo, oferecer resposta no prazo legal;

e). Sejam permitidas, ao autor, a produção de todos os meios de prova em direito admitidos, sem exclusão de nenhum, qualquer que seja, exemplificando com a realização de audiência para a oitiva de testemunhas, juntada de mais documentos, realização de perícias, inspeção judicial, etc.

176. Atribui-se à causa o valor de R$ 182.306.407 (cento e oitenta e dois milhões, trezentos e seis mil, quatrocentos e sete reais – valor que corresponde a um real para cada brasileiro, conforme população estimada pelo IBGE, informação extraída do seu sítio oficial na Internet).

Respeitosamente,

Pede Deferimento.

Procuradoria da República no Município de Taubaté,

18.JANEIRO.2005

JOÃO GILBERTO GONÇALVES FILHO

PROCURADOR DA REPÚBLICA

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