Batalha da água

Estados e municípios brigam por gestão de recursos hídricos

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14 de janeiro de 2005, 13h45

Desde que os contratos celebrados pelo extinto Plano Nacional de Saneamento (Planasa) começaram a vencer, ficou a pergunta no ar: a competência para fazer concessões do sistema de saneamento básico é dos estados ou dos municípios? Na mais recente batalha judicial sobre o assunto, o município de São Paulo, ainda sob a administração Marta Suplicy, tentou tirar do governo estadual o controle dos recursos hídricos hoje administrados pela Sabesp. Não conseguiu.

O término dos contratos e o conseqüente conflito de competência, somado ao estrangulamento do sistema de distribuição de água — que atende a 90% da população brasileira –, e de tratamento de esgoto — que chega a apenas 50% dos habitantes –, abriu o debate também para outro aspecto do setor: a privatização (ou concessão) das águas. À parte as divergências sobre os métodos a serem aplicados, os especialistas são unânimes num ponto: a concessão do serviço a entes privados é uma tendência de mercado irreversível.

Estados X municípios

O saneamento básico insere-se na chamada competência concorrente e preferencial. Segundo o artigo 22, inciso 4, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre energia, informática, telecomunicações, radiodifusão e águas. Mas, nesse último caso, pressupõe-se que o disposto valha apenas para os recursos hídrico que banhem dois estados da federação. Se, por exemplo, existe a intenção de se construir uma hidrelétrica no Rio Grande, que banha tanto São Paulo como Minas Gerais, cabe à União ditar as regras do jogo.

Nos outros casos, a responsabilidade é determinada pela posição de chegada. O artigo 26 da CF determina que as águas superficiais e subterrâneas, excluídas as que pertencem à União, estão entre os bens dos estados. E o artigo 30, em seu inciso I, diz que compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local (caso do saneamento), e de forma suplementar à legislação estadual e federal (inciso II).

Isso quer dizer que a bola passa para o estado quando a União, que teoricamente tem primazia, não legisla sobre o assunto. E que se o estado também for omisso e não tiver legislação sobre o assunto, caberá aos municípios controlar a distribuição das águas – o que inclui a escolha da concessão. Uma vez determinadas as normas pelo poder municipal, estado e União nada mais podem fazer.

Em Minas, por exemplo, não existe legislação estadual que verse sobre o sistema de saneamento básico. Em Uberaba, a exploração do serviço é, então, feita pela Codau, empresa de caráter municipal. Já em Belo Horizonte o processo de distribuição de águas e esgotos responde ao regramento estadual é de responsabilidade da Copasa, ente estadual. O mesmo acontece com São Paulo. “No que a União não dispôs e o estado não fez, o município pode fazer o que quiser”, diz o advogado especialista em Direito Ambiental, Diamantino Silva Filho.

Também o artigo 30 da Lei 9.433/97, que trata dos recursos hídricos, determina que a implementação da política do setor cabe aos poderes executivos estaduais, do Distrito Federal e municipais. Mas em seu artigo 31, a lei versa que os poderes executivos estaduais, do Distrito Federal e dos municípios são responsáveis pela integração das políticas locais de saneamento básico, uso das águas, ocupação e conservação do solo e do meio ambiente, sem ferir as políticas federal e estadual de recursos hídricos.

Para o professor de Direito da USP Alaor Caffé Alves, apesar de a competência ser do município (que conhece os interesses da região) e não da União, a titularidade do serviço deve ser limitada. “As decisões [do setor] devem ser tomadas numa espécie de conselho deliberativo composto por representantes dos estados e municípios”, diz. Isso porque, segundo ele, há situações especiais onde a questão do saneamento é mais grave e requer soluções integradas do ponto de vista administrativo e jurídico.

Seria, assim, inviável conceder a titularidade do serviço ao município paulista especialmente por ser ele parte de uma metrópole. “A Grande São Paulo não é um município que envolve a cidade, mas uma grande cidade que envolve vários municípios”, explica Alves. Ainda, seria impossível conceder a titularidade do serviço a cada um dos 39 integrantes da Grande São Paulo, que teriam diferentes soluções para o serviço como se fossem independentes dos demais.

Falência

Todo o imbróglio começou a tomar forma nas décadas de 80 e 90, quando o sistema centralizador desenvolvido pelo Planasa começou a se deteriorar. Com o objetivo de incentivar os municípios a assinar contratos com empresas estaduais, a política começou a degringolar a partir da falência do sistema financeiro de habitação(de responsabilidade do BNH), responsável pelo financiamento do saneamento básico.

A partir daí, os municípios começaram a reclamar o direito de conceder a exploração a outras empresas ao mesmo tempo em que os estados se negam a abrir mão de mercados lucrativos para ficar apenas no comando de regiões deficitárias.

A questão da competência também esbarra no fato de alguns dos municípios, que recebem água a granel de companhias estaduais, fazerem a distribuição por conta própria e reterem os recursos, sem repassá-los ao ente fornecedor. As cidades de Santo André e Mauá, que fazem parte do Grande ABC paulista, são dois exemplos dessa prática. Elas fazem o trabalho de captação e distribuição de água ou coletores de esgoto, cobram dos usuários os valores correspondentes, mas não repassam nenhuma parcela das verbas obtidas, que seria de direito da Sabesp.

A falta de regra para a exploração do serviço resulta em entrave ao investimento particular no setor. Hoje, apenas 5% das companhias de saneamento básico estão nas mãos da iniciativa privada, o que totaliza cerca de 45 operações que podem ser vista em regiões como Limeira (SP), Niterói (RJ) e Manaus (AM). Todo o resto é formado por empresas municipais, estaduais ou de capital misto, em que o setor público é o maior acionista. Mas o sistema é falho e os investimentos feitos no setor são muito mais baixos que o necessário para expandir o acesso à água e ao tratamento dela para toda a população e principalmente para implantar sistemas de coleta e tratamento de esgoto para metade da população brasileira.

Apesar de combatida por diversos setores da sociedade, que argumentam ser a água um bem essencial à sociedade e portanto um risco quando longe do controle público, a privatização é juridicamente viável. A Constituição Federal, em seu artigo 24, dispõe que compete à União, aos estados, municípios e ao Distrito Federal legislar sobre os interesses econômicos de determinada região, o que inclui os recursos hídricos.

Sendo viável, o baixo número de atuação de empresas privadas explica-se pela falta de normatização do setor no país. Apesar de ser um filão atrativo, muito menos dispendioso que a administração de estradas, por exemplo, ele ainda é carente de regras. “Não existe ainda no Brasil um marco regulatório que disponha sobre questões como de quem é a responsabilidade pela concessão ou estipule uma tabela de preços para o mercado. E esse é o principal entrave para o envolvimento das empresas”, diz o técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) José Gustavo Feres.

Faltam ser estipulados fatores como a porcentagem dos lucros que deve ser reinvestida no setor, metas de qualidade, regras de reajuste de preços e de remuneração do concessionário. Para tentar resolver o impasse, o Ministério das Cidades elaborou ante-projeto de lei que está sob a análise da Casa Civil para depois ser encaminhado para votação no Congresso.

De acordo com o diretor de articulação institucional da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades Sergio Gonçalves, o ante-projeto pretende garantir que os projetos de saneamento tenham qualidade de atendimento, estabelecer direitos e deveres dos usuários e operadores, relatórios de estabilidade ambiental e que cada concessão tenha um ente regulador para fiscalizar os contratos e tarifas do setor.

“Ele também aponta que as concessões não sejam dadas através de pagamento, mas de acordo com o melhor preço e qualidade dos serviços oferecidos”, diz. A intenção é que, assim, sejam garantidas tarifas razoáveis ao consumidor. Em contrapartida, o governo federal ofereceria transferência de verbas para as concessionárias. A prática pode ser caracterizada como uma espécie de Parceria Público Privada (PPPs).

O sistema seria uma das formas de enfrentar a realidade de aproximadamente 60 milhões de brasileiros, moradores em 9,6 milhões de domicílios urbanos, que não dispõem de coleta de esgoto, por exemplo. Ou o fato de 75% de todo o esgoto coletado nas cidades ser despejado “in natura” nos cursos d’água. Os dados são de um estudo elaborado pelo próprio Ministério das Cidades.

O ante-projeto de lei, no entanto, não agrada a uma grande parcela das empresas estaduais operantes no setor. Segundo o professor catedrático da Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, Arnoldo Wald, elas argumentam “que o modelo em vigor, que está bem montado e gerenciado, permite qualidade e níveis de abastecimento reconhecidos, e que será atingido mortalmente pelas novas regras”. Elas, também, “enfatizam a necessidade de verbas e técnica em municípios que terão dificuldade na obtenção de financiamentos”.

Outro problema das concessões à iniciativa privada seria o fim do chamado subsídio cruzado. Hoje, a Sabesp, por exemplo, transfere valores obtidos em regiões lucrativas para áreas deficitárias, numa espécie de fundo comum. A não ser que sejam estabelecidas regras, “a iniciativa privada não vai querer fazer o mesmo”, afirma o professor Caffé Alves.

A íntegra do ante-projeto de lei pode ser vista no site do Ministério das Cidades. O link para o documento está no canto direito da página sob o título “Seminários”.

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