Dedo na ferida

Human Rights Watch critica sistema judiciário brasileiro

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13 de janeiro de 2005, 20h56

Os abusos do sistema judiciário brasileiro – incluindo torturas e assassinatos sumários cometidos pela polícia e por autoridades penitenciárias – continuam sendo os maiores responsáveis pelo desrespeito aos Direitos Humanos no Brasil. A denúncia está no capitulo dedicado ao Brasil do relatório anual da Human Rights Watch (HRW), organização não governamental americana de defesa dos direitos humanos, publicado nesta quinta-feira (13/12).

De acordo com o estudo, a corrupção e o difícil acesso à Justiça — em especial dos mais pobres, setor mais vulnerável da sociedade segundo a Human Rights –, somados à impunidade da grande maioria de crimes são as principais causas da violação aos Direitos Humanos no país. “Apesar da criação do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção pelo governo federal, são necessárias outras medidas para aumentar a transparência e assegurar que os que abusam dos direitos humanos serão punidos adequadamente”, diz o relatório.

Para o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Jorge Maurique, a impunidade é fruto do desaparelhamento e de certa complacência do estado, que ainda não se preparou para reprimir esse tipo de crime. O número de defensorias públicas, segundo ele, é insuficiente para atender a população, por exemplo. “A dificuldade vai além da falta de acesso à Justiça. Está no fato de que a parcela mais pobre nem sabe que tem direito a direitos”, diz.

A fragilidade da Justiça na área criminal atinge, segundo a Human Rights, as populações social e economicamente marginalizadas, que sofrem com o trabalho escravo, tráfico de seres humanos, com a violência rural e os conflitos agrários. “Como no passado, os responsáveis pelos abusos aos direitos humanos dispõem de impunidade na grande maioria dos casos”, afirma.

De acordo com o levantamento, os policiais civis e militares colocam-se na linha de frente da violação aos direitos humanos no Brasil, que inclui tortura, execuções sumárias, desaparecimentos e atos de racismo. Nos primeiros seis meses do ano passado, o ouvidor da polícia estadual de São Paulo registrou 109 homicídios cometidos por policiais. Mas, o relatório afirma que apesar de alto, “o número é 73% menor que no ano anterior, quando os assassinatos bateram um recorde de 11 anos”.

Segundo o relatório, a polícia do Rio de Janeiro matou 593 pessoas nos primeiros seis meses de 2004, o que representa uma queda de 25% em relação ao ano anterior. “Apesar do declínio, estimativas não oficiais dão conta de que os assassinatos cometidos por policiais chegam a cerca de 3 mil por ano. O número pode ser ainda maior, já que muitos estados não registram tais dados corretamente e outros não fazem qualquer registro”.

As denúncias de abuso policial tendem a citar brutalidade, assassinato, corrupção e a falta de interesse do estado em manter a ordem em certas regiões, afirma. De acordo com a HRW, em outubro de 2004, grupos de defesa dos direitos humanos acusaram a policia fluminense de assistir sentada à batalha travada na favela Vigário Geral, colocando em risco as vidas de seus moradores.

“Quando a violência é noticiada, descoberta, a Justiça funciona. O problema é que as vitimas não procuram as autoridades com medo de represálias”, diz o advogado criminalista Jair Jaloreto Junior. Já para Maurique, a omissão e a falta de aparelhamento do estado também decorrem do fato de parte da população considerar legítimos os maus-tratos cometidos pela polícia contra os criminosos.

Com ele, concorda a promotora de Justiça do estado de São Paulo Cláudia Mac Dowell. “É comum ouvir falar em ‘legítima limpeza’. É, muitas vezes, considerada lícita a execução de um marginal, assim como é quase lícito que presos sejam mantidos em cadeias superlotadas, o que é uma burrice da sociedade”, diz. Isso porque a superlotação favorece, segundo ela, a constituição de uma sociedade própria, na qual ninguém consegue entrar, nem mesmo os carcereiros das penitenciárias.

Segundo a HRW, dados do Ministério da Justiça dão conta de que o número de detentos em penitenciárias brasileiras cresceu de 114 mil em 1992 para 300 mil em 2004. A superlotação e a violência institucionalizada – como espancamentos, torturas e execuções sumárias –, afirma o relatório, são crônicas e generalizadas nas prisões brasileiras.

O documento cita a rebelião do presídio Urso Branco, em Rondônia, que acabou com a morte de nove presos, dois dos quais foram decapitados. Calcula-se que o presídio mantinha cerca de mil presos além de sua capacidade. “Outro exemplo é o da penitenciária de Osasco, onde 500 presos foram espancados, o juíz-corregedor denunciado, mas absolvido pelo Tribunal de Justiça, que rejeitou a denúncia apresentada pelo Ministério Público”, diz Cláudia.

Segundo a promotora, poucos são os casos de denúncia de tortura levados adiante e mais raro ainda é ver a condenação de um policial.

“A tortura ainda é tabu. Eles dizem: mas eram presos, tinham se rebelado, qual o problema?”. Para Cláudia, no entanto, a superlotação constitui, por si só, uma tortura já que os presos são mantidos em “condições sub-humanas”.

Por outro lado, o relatório também cita a criação do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen), criado pelo governo, como um passo adiante para aumentar a transparência do sistema. Os dados seriam disponíveis online e atualizados regularmente pelas autoridades estaduais.

Infância e juventude

Os dados apresentados pela ONG também trazem denúncias de abuso contra menores nas Febem. “Apesar de protegidas pela legislação brasileira e internacional, as crianças são rotineiramente detidas em condições abusivas” e levadas para prisões “onde se deparam com a violência dos outros menores ou dos carcereiros e onde são mantidos presos em suas celas por um período mais longo que o necessário”.

Segundo o relatório, o Ministério da Justiça calculou em 13.489 o número de menores de 18 anos presos, metade deles somente no estado de São Paulo. O número excede a capacidade dos centros de detenção, projetados para manter 11.119 presos. Em maio de 2004, afirma, grupos de defesa dos direitos humanos pediram mais transparência no trato com os menores, depois de vir a público que 94% dos casos de denúncia de abusos no estado foram arquivados em um ano. “De acordo com esses grupos, fontes oficiais contabilizaram dez mortes [de adolescente] sob custódia e 26 rebeliões nos centros no mesmo período”.

A HRW também afirma que o país “arranhou sua reputação” de respeito à liberdade de expressão na forma como tratou o caso do correspondente do The New York Times, Larry Rother. Isso porque o governo cogitou extraditar o jornalista por ter escrito reportagem dizendo que o presidente Lula excedia na bebida. Depois de uma semana de polêmica em torno do assunto, o governo voltou atrás e permitiu que Rother continuasse no país.

Ainda na questão da liberdade de expressão, o relatório trata das criações do Conselho Nacional de Jornalistas, idéia que já foi abortada da pauta de discussões do Congresso, e da Ancine, que regulará a produção áudio-visual brasileira. Segundo a ONG, a agência poderá censurar programas que não condisserem com a “responsabilidade editorial”.

Trabalho escravo

Apesar de citar a morte de três inspetores da força-tarefa, em Minas Gerais, que fiscaliza o trabalho escravo no Brasil, a ONG cita avanços do Ministério do Trabalho ao promover campanha em parceria com a Organização Internacional do Trabalho que libertou 2.078 trabalhadores em situação de escravidão em 2004.

O relatório destaca a parceria com a Organização das Nações Unidas para combate ao tráfico de drogas e ao tráfico de seres humanos. Mas, ao mesmo passo, aborda o estado da violência rural. Dados da Pastoral da Terra, afirma, dão conta que 1.349 pessoas foram mortas em áreas rurais entre 1985 e 2003.

A Human Rights Watch também cita o relatório produzido pelo representante da ONU, Miloon Kothari que, em visita ao Brasil, criticou a remoção de comunidades indígenas da área de Alcântara, no Maranhão, para dar lugar à ampliação da base de lançamento de mísseis.

Veja o relatório completo (em inglês) no site da HRW.

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